Um homem célebre, mais tarde ou mais cedo, tem o seu biógrafo. Todo aquele que neste mundo fez qualquer coisa de notável – bem ou mal, não interessa – e que espigou acima do tamanho médio das espigas desta enorme seara que o tempo nunca mais se cansa de ceifar, mais cedo ou mais tarde há-de ter a sua vida esquadrinhada, divulgada aos quatro ventos, com os seus segredos mais íntimos desvendados, o seu carácter interpretado à vontade do narrador e os seus passos contados desde a hora do nascimento até à hora da morte.
Emil Ludwig, Stephan Zweig, Giovani Papini, Elaine Sanceau, o casal Henry e Dana Thomas e tantos outros gigantes da Literatura – que sei eu ignorante das Letras? – não se cansaram e não se cansam de investigar para nos darem, sempre em aspectos cintilantes, a história maravilhosa da vida de guerreiros e santos, mártires e heróis, conquistadores e navegadores, sábios e investigadores, poetas e prosadores, filósofos e artistas, políticos e aventureiros, déspotas e ditadores.
E às vezes penso por que estranha razão, ninguém ainda se deteve a contar a vida do homem menos que mediano, do homem medíocre, daquele que, na sua passagem por este vale de lágrimas nada fez, nem de bom nem de mau, nada descobriu, nem nada inventou, nada escreveu nem nada sofreu, ninguém venceu nem em ninguém mandou. Como terá sido, com efeito, a vida desses anónimos? Não teriam eles feito mesmo nada, enquanto, no mesmo tempo, outros tanto fizeram? Em que gastaram eles toda essa enorme fortuna de tempo, essas dezenas de milhar de dias e essas centenas de milhar de horas? De uma maneira geral, não sei, francamente não sei. E nenhum daqueles campeões da Literatura se deu ainda ao trabalho de investigar. Mas conheci um homem que devia ser um espécime daqueles cuja vida eu gostaria de ver narrada num grosso volume de 500 ou 600 páginas. E sinto tentação de esboçar, a traços largos, a sua história, já que as sumidades não lhe pegam.
É o que vou tentar fazer para os leitores do “Re-nhau-nhau” mas sempre lhes quero dizer, aqui à puridade, que a figura e os factos desta história são fictícios e qualquer semelhança com figuras e factos da vida real é simples coincidência, em relação à qual o autor declina desde já toda a responsabilidade.
* * *
Por estranho que pareça e por invulgar que seja, o Tio Frederico quando nasceu era já mesmo tio. Com efeito, Frederico foi um filho serôdio, de pais já avançados em idade e com filhos já casados. O pai ia perto dos sessenta e a mamã – mais de dez anos mais nova que o marido – andaria pela perigosa casa dos quarenta e muitos. Mas Frederico apareceu e, embora inconvenientemente, nasceu.
Como filho de pais senis, veio fraquito.
Não chegava a pesar dois quilos quando viu a luz e o Dr. Sequeira, velho médico da família, chegou a não dar nada por ele. A parteira, então, dizia à boca pequena que o menino quase que cabia numa caixa de charutos.
Aos seis meses, uma terrível enterite ia-o fazendo apagar-se e a inflamação era de tal ordem que o intestino grosso chegou a estar saído quase um palmo. Mas o Dr. Sequeira com a sua velha ciência, muito paciência e o conhecimento da história patológica da família, lá o salvou milagrosamente. E Frederico criou-se, contra todos os prognósticos e diagnósticos.
Ficou órfão muito novo e os irmãos já casados tomaram conta dele e deram-lhe o quinto ano dos liceus.
Entretanto, Frederico fez-se homem e revelou-se um temperamento artístico e um carácter muito independente.
Nas partilhas tinha-lhe cabido um prédio de rez do chão e 1º andar, às Olarias, e Frederico, altivo como era, abandonou a tutela dos irmãos e foi morar, com uma velha criada, para o 1º andar, passando a viver da renda do rez do chão. Não era muito, mas com a sábia administração da governante e a sua moderada vida, dava para viver dignamente com independência.Com o produto da venda de umas inscrições, que também herdara dos pais, o Tio Frederico fez uma viagem ao estrangeiro. Percorreu os portos de Espanha e de Itália, visitou a Grécia, o Egipto e a Palestina. E quando regressou, habilitado com esta viagenzinha, umas leituras nacionais e francesas e o quinto ano dos liceus, decidiu-se a entrar na vida prática. O sobrinho mais velho arranjou-lhe um emprego no Estado. Foi quando Frederico se enamorou duma visita de casa dos sobrinhos. Mas foi um amor tímido e platónico. Frederico tinha um tremendo receio das responsabilidades e a situação de homem casado e chefe de família aterrava-o. Fez um soneto lírico e calcou fortemente os sentimentos que tão espontaneamente lhe surgiram para manter intacto o seu isolacionismo. Nunca mais pensou na pequena e solenemente decidiu-se ficar solteiro.
Aos quarenta anos, beneficiando da sua fraqueza física congénita, aposentou-se. E de então em diante é que o Tio Frederico passou a gozar a vida, como se poderia dizer, à sua maneira.
Tinha lido muito e a sua delicadeza e primorosa educação refinara com a entrada na idade madura. Vestia com impecável correcção, sabia estar à mesa como ninguém – não se ouvia um sorvo de sopa, de chá ou de café, mantinha impecavelmente os cotovelos junto ao tronco e colocava sempre cuidadosamente os talheres sobre o prato em rigorosa perpendicular com o corpo. Em recepções elegantes, em casa de parentes, praticava elegantemente o beija-mão, naquela ciência quase hermética e esotérica de troca de cartões dava preciosas consultas aos sobrinhos e a raros amigos em momentos de aflição. Da sua viagem, feita muitos anos antes, guardava preciosos conhecimentos que enriquecia com leituras actualizadas.
Os sobrinhos tinham-se casado e posto casa e como a conversa do Tio Frederico fosse sempre interessante e o seu porte impecável em dia de convidados, um dos convivas era sempre ele.
Os sobrinhos tinham chegado à conclusão de que ele era um extraordinário ornamento de uma mesa de jantar.
Adquiriu fama de conversador delicioso, culto e viajado.
E quando se apercebia que os convidados nunca tinham passado a fronteira, ou tinham feito apenas uma excursão a Sevilha ou a Madrid com pesetas de contrabando, exclamava:
- “Não sei se conhecem o Egipto? Pois um dia, na terra dos faraós, ia eu a caminho da Pirâmide de Keops...”
E aquela aventura de há vinte e tantos anos era “leit motiv” para a conversa do resto da noite.
Os sobrinhos ouviam-no encantados e as visitas saíam embevecidas. O Tio Frederico era, na verdade, um grande ornamento e os sobrinhos por nada deste mundo o dispensavam em dia de festa, nomeadamente quando ao jantar ia gente de muita categoria e cerimónia.
* * *
Assim, diletantemente, Frederico gastava o seu tempo.
A toilette da manhã, a leitura dos jornais e dum pedaço de livro, um passeio, um jantar e uma vez por mês a passagem do recibo do inquilino do rez do chão e a maçada de ir receber a pensão à Caixa de Aposentações – eram todo o seu mundo de actividade.
O verão passava-o na praia, na casa de um dos sobrinhos, instalada a um quilómetro do litoral no meio de uma quintinha com muitos marmeleiros, que rescendiam em Setembro, e malmequeres bravos.
Frederico adorava a paisagem que se desfrutava da quintinha que ficava num alto. No outeiro defronte, um velho moinho de grandes velas de lona muito brancas, com cabaças de barro postas ao longo do cordame, compunha o panorama e entoava um cântico harmonioso que enchia de ternura, por vezes, o coração frio do Tio Frederico. Era amigo antigo do José Moleiro, o dono do moinho. E as compridas tardes das suas extensas férias que iam sempre desde Junho até Outubro bem entrado, passava-as no moinho a falar vagamente com o moleiro e a ouvir, enlevado, a canção das cabaças de barro e a observar o crepúsculo maravilhoso que caía sobre o mar. O Zé Moleiro, obsequiosamente, e à falta de melhor assento, oferecia-lha um tampo solto de cadeira, cheio de buraquinhos. E o Tio Frederico, com muito cuidado, colocava o tampo da cadeira sobre uma pedra enorme e, alternando a vista por um livro e a paisagem de sonho, passava ali horas esquecidas numa quietude de Parnaso.
No começo das férias de um certo ano, Frederico teve uma tremenda desilusão. Naquele inverno o velho moleiro, cansado da faina com o velame e tentado pelos argumentos persuasivos de um negociante de maquinaria, tinha substituído o seu romântico moinho de velas de lona por um gigantesco engenho de ferro. Era monstruoso, na verdade, espetando-se para o céu em torre metálica, de pás enormes e leme descomunal, oferecendo resistência violenta ao vento que o fazia girar vertiginosamente. Era pintado de uma cor e respirava óleo de lubrificação por todos os lados quando rodava naquela velocidade louca.
Frederico ficou horrorizado. Nem sentia coragem para ir observar de perto o monstro. Mas um dia subiu o cerro para ir insultar o moleiro:- Infeliz, que fizeste tu? Estragaste toda a beleza da tua terra. Lançaste um borrão na paisagem, inutilizaste o magnífico quadro em que tu próprio vivias!...
O velho moleiro, surpreendido com aquela inesperada ira, timidamente aduziu as suas razões. Mas Frederico não as atendeu e furibundo ameaçava o moleiro e o moinho com o punho cerrado:
- Oh! Desgraçado materialismo humano, como tudo pervertes!
Revoltado, desceu até casa. Fechou-se no quarto durante dois dias e nunca mais foi visitar o seu ex-amigo Zé Moleiro.
* * *
Foram umas férias estragadas. Quando foi de regresso a Lisboa, já em pleno Outono, o Tio Frederico teve uma gripe. Ficou mais enfermiço depois da doença que chegou a assustar a família.
Naquele longo inverno continuou a ornamentar a mesa dos chás e dos jantares de cerimónia dos sobrinhos e no verão seguinte quebrou a tradição e não foi passar as férias à praia, como sinal de protesto contra o borrão na paisagem. Antes fizera diligências para intimar o moleiro a repor a paisagem na sua forma original. Mas não encontrou Grémio, Junta ou Repartição Pública com competência para aceitar e decidir sobre uma longa exposição acerca daquela “enormidade da ganância de um industrial ignorante e materialista que preferia um engenho de discutível maior rendimento e que adulterava torpemente a paisagem, às românticas, serenas e tradicionais velas de lona dum alvo moinho no cimo de um outeiro”, como rezava o texto laboriosamente composto por Frederico.
A exposição era lida a toda a gente com o pedido de uma influência ou um conselho quanto ao destino a dar-lhe, com o objectivo de deitar abaixo aquele monstro de aço que respingava óleo lubrificante e que até estragava a farinha, segundo já dizia o povo. Um antigo colega recomendou-lhe que mandasse a exposição para a Secretaria de Turismo.
E como no começo do verão, o documento ainda não tivesse merecido qualquer despacho, Frederico naquele ano, revigorando o seu protesto, não foi para a praia.
Estava a família, de novo, toda em Lisboa e no mesmo dia o Tio Frederico recebeu a visita dos sobrinhos mais dilectos. Vinham ambos convidá-lo, cada um para sua casa, para o jantar que davam no dia seguinte com a presença de pessoas de categoria.
Ambos faziam questão na sua presença. O Tio Frederico admirou-se da coincidência – logo os dois com jantares de festa no mesmo dia! – Compreendem – dizia o tio – não me posso dividir! Juntem os jantares ou mudem a data de um!
Mas não era possível. De qualquer dos lados já estava a combinação feita havia dois dias e não se podia modificar as coisas assim de repente. Os convidados eram de cerimónia.
Cada um dos sobrinhos insistia por que o tio se decidisse por ele. Tentaram vários critérios: o da importância social dos convidados; o da idade dos sobrinhos; até o grau de amizade do tio por eles.
Mas Frederico não se queria decidir: - Não, não! Adiem um dos jantares e vou aos dois, senão não vou a nenhum, embora isso muito me custe.
Mas não podia ser, já se sabia. Quase se zangaram.
O tio não se decidia e os dois sobrinhos resolveram retirar-se, deixando ao seu critério a escolha do convite. Frederico ficou, com efeito, hesitante sem saber o que fazer.
* * *
No dia seguinte, à hora do jantar, cada um dos sobrinhos aguardava a chegada do tio. Cada um deles alimentava vagamente a esperança de que o tio se decidira por ele. O seu talher estava na mesa. Os convidados já tinham chegado e ambos anunciaram a provável vinda do tio.
Mas à hora em que o jantar devia ser servido, um telefonema veio preveni-los de que o tio não podia comparecer. Era a Gertrudes, a velha governante, a avisar que o tio adoecera de repente, à tardinha, e não podia ir ao jantar,
Os sobrinhos compreenderam a delicadeza e sorriram. Os jantares começaram.
Mas meia hora depois novos telefonemas da Gertrudes vieram alarmar as casas dos sobrinhos. O tio piorara. Estava com o médico à cabeceira e pedia a comparência deles.
A coisa então era verdade! Um tanto alarmados, cada um dos sobrinhos desculpou-se dos seus convidados e correu a casa do tio, às Olarias.
Quando chegaram deram de facto com Frederico estendido no leito, pálido como um círio, e com o médico à cabeceira. O tio a muito custo, balbuciou-lhe uma desculpa: - Bem viam, naquele estado era-lhe impossível ir a casa de um ou de outro. E num murmúrio: - Contem-lhes a aventura da pirâmide.
O médico explicou-lhes que tinha sido um colapso cardíaco ocorrido naquela tarde. O estado era grave, deviam estar preparados para o pior.
Os sobrinhos, com os olhos marejados, olharam-se compreensivamente. Ainda na véspera estava tão bem! Como a vida era frágil...
E foram para os seus convidados contar-lhes a aventura do tio, quando um dia, no Egipto, ia a caminho da pirâmide de Keops.
.............................................................................................................................
O Tio não resistiu ao ataque cardíaco e apagou-se no dia seguinte.
Mas da cabeça dos sobrinhos nunca mais saiu a ideia acertada de que o Tio Frederico adoecera de hesitação e deixara-se finar só para não desgostar um deles com a preferência que tinha de dar ao outro.
* * *
Os leitores não ficam agora convencidos que uma vida destas merecia bem ser tratada pela pena privilegiada de um dos grandes escritores que eu ao princípio citei com tanta erudição?
Cícero Galvão
Dezembro de 1951