Livro de Contos - Cícero Galvão


Os contos e crónicas recolhidos neste blog foram todos publicados no jornal “Re-nhau-nhau”, trimensário humorístico do Funchal, nos números do seu aniversário, coincidente com a época do Natal. Recolheram-se 36 contos e crónicas publicados no jornal nas edições dos meses de Dezembro dos anos de 1946 a 1977.

Partida para o Funchal em 1946

À Balinda


As palavras ditas voam, as palavras escritas permanecem




O pequeno grande milagre da escrita é este: deixa-nos ouvir o seu autor para além do tempo e do espaço.

Esta recolha dos contos que o nosso Pai escreveu, um conto por ano, num jornal do Funchal, ao longo de mais de trinta anos, deixa-nos ouvir outra vez a sua voz e entrever a sua maneira de ser, que continuam gravadas na nossa memória.

E é para memória do nosso Pai, e em homenagem à nossa Mãe, que hoje completa a bonita idade de quatro vezes vinte anos, que aqui deixamos a todos este livro.

6 de Maio de 2002

Anália e Artur

Clemente e Rosarinho

Maria Antónia (Bébé) e António

ESTÁ REUNIDA A ASSEMBLEIA GERAL DA “SOCIEDADE FILARMÓNICA OS AMIGOS DA SEMI-COLCHEIA”

O leitor certamente já passou umas férias numa pequena terra do campo. Quando os nervos perdem o vigor após meses de trabalho na cidade buliçosa, um fim de semana, umas curtas férias ou umas férias grandes no campo são o tratamento indicado. Não há nervos que resistam à terapêutica por mais franjados que se apresentem.

Os costumes simples das gentes, o ar fresco e sadio filtrado por pinheiros antes de chegar aos nossos pulmões, a água cristalina das fontes que bebemos na origem sem passar por quilómetros de canalização e a fruta que se come colhida das árvores e das cepas sem passar pela mercancia, põe-nos outra vez em condições de voltar à cidade para estragar todo o bem que obtivemos no campo.

Levanta-se uma pessoa com o sol e, à noite, depois da ceia, se se perde a cabeça e se joga uma partida de bisca de três e nos vamos deitar às 10 horas – foi uma noitada!

Mas também há a sua política na aldeia.

As instituições locais são o pároco, o regedor, o dono da venda (centro de má língua) e numa ou noutra terra a Sociedade Filarmónica local.

Foi numa aldeia onde passei umas férias...

As férias estavam no fim e após sucessivas noites em que nada havia que fazer, a notícia da realização da Assembleia Geral da “Sociedade Filarmónica os Amigos da Semi-Colcheia” causou sensação e despertou enorme interesse entre os 30 veraneantes que se tinham deslocado até ali.

A Assembleia Geral da Sociedade foi convocada “para a apreciação da atitude assumida pelo regente da banda no último concerto” (pois corria o boato que o maestro não suportando uma fífia dum músico durante a execução do “Bailado das Horas”, lhe tinha enfiado a flauta pelas goelas abaixo, gesto que mereceu a reprovação de toda a banda e a eclosão duma greve de todos os artistas).

A Assembleia estava marcada para as 9 horas, mas “os passantes” para não perderem pitada já tinham ocupado, às 8,30, todas as cadeiras da sala onde se realizava a sessão.

Pouco antes das 9 começaram a chegar os sócios, os componentes da banda, os membros da Direcção e do Conselho Fiscal e por fim a mesa da Assembleia Geral que ocupou a presidência da sala. Mas os sócios, os músicos e os directores, dada a exiguidade da sala, tinham ficado mal instalados - ocupavam as coxias rentes às paredes, e atravancavam as portas num cacho de pessoas. Dali era impossível participar nos debates da Assembleia sobre problema de tamanha acuidade: se o regente devia ser demitido ou não. Era bem um problema de regência.

Os sócios mal instalados, “bilhardavam” entre si.

Uns pensavam que o regente tinha razão. Que diabo o “flauta” tinha estragado a execução do “Bailado das Horas”, que todos tanto apreciavam e era a coroa de glória dos “Amigos da Semi-Colcheia”. Não tinha entrado a tempo e, por culpa dele, o da “bateria”, teve de bater mais horas do que as marcadas pela partitura do “”Bailado”. Foi de perder a cabeça!

Mas o público que realmente tinha de participar na Assembleia sentia-se mal. A sala pequena asfixiava. E eles ali mal instalados à entrada das portas ou espalmados contra a parede ao longo das coxias! Como é que o Freitas, orador de fama, podia pedir a palavra e fazer um dos seus brilhantes discursos, uma das suas catilinárias de arrasar montanhas, instalado como estava em cima dum banco cozinha, à entrada duma porta, por detrás dum magote de sócios?! Era demais! E aqueles veraneantes, que nada havia de lhes interessar os assuntos que motivaram a assembleia, ali repimpados nas cadeirinhas, comodamente instalados no meio da sala!

O Presidente da mesa declarou aberta a sessão e, depois de lida e aprovada a acta da sessão anterior, um sócio pediu a palavra para tratar dum assunto no período de “antes da ordem do dia” – como disse o Presidente. – “Da noite”! emendou o Freitas, ortodoxo em matéria de Assembleias Gerais.

- Seja da noite, Sr. Freitas! Exclamou o Presidente.

O orador começou a falar mas não se ouvia nada. A indignação aumentou pois cada vez era mais angustiosa a situação dos sócios que tinham de participar na Assembleia e que estavam sentados! O banco onde o Freitas estava empoleirado partiu-se e houve estrondo e burburinho. Felizmente foi só o susto.

- Pede a palavra, pede a palavra e reclama!

O Freitas que com todo o carinho tinha fundado aquela sociedade, que estimava como se fosse uma filha, sacudindo-se da poeira e esfregando um cotovelo que magoara na queda, pediu a palavra.

Fez-se silêncio na sala. O Freitas ia falar. Os veraneantes que, optimamente instalados, havia já uma boa meia hora gozavam tudo aquilo com todos os requintes de malvadez, viraram-se para trás e apuraram os ouvidos para escutar o verbo do Freitas tão gabado.

O Freitas, dominando o silêncio, rumorejou, afinando a garganta, endireitou as lunetas, passou os dedos finos pelos lábios e pelo bigode e falou assim:

- “Senhor Presidente: Nesta sala há sócios que não são sócios e que estão sentados e sócios que são sócios e estão de pé. Eu, Manuel Joaquim de Freitas Cara d’Anjo, que fui sócio fundador desta Academia e seu tesoureiro durante 25 anos sem praticar um desfalque – estou de pé. Tenho disse!”


Cícero Galvão
Dezembro de 1946

O BUROCRATA

Débil, enfezado e olheirento, o Tarquínio, desde muito novo, foi sempre um rapaz sossegado, cumpridor e excessivamente metódico e arrumado.

Em criança era apontado aos meninos endiabrados e irrequietos das relações da sua família, como exemplo a seguir. Os seus fatos, os brinquedos e os seus livros e cadernos estavam sempre irrepreensivelmente conservados e limpos.

Quando o Tarquínio entrou no liceu, rapidamente se distinguiu dos colegas, pela atenção que prestava às lições dos mestres, a assiduidade, e pontualidade e o inteiro desprezo pelas brincadeiras dos outros rapazes.

As suas aspirações também eram moderadas.

Ao passo que os rapazes da sua idade aspiravam ser, quando homens, militares, marinheiros, engenheiros e médicos, o Tarquínio sentia uma estranha vocação – ser funcionário público como o papá. Trabalhar sossegado no rame-rame metódico do estudo de processos numa Secretaria, era o seu ideal de vida.

E o Destino satisfez-lhe essa ambição. Não podendo prosseguir os estudos, a conselho dos médicos, o Tarquínio, já homenzinho, ingressou na secretaria Geral da Fazenda e do Fomento e dois anos depois, com o seu futuro assegurado, casou. A sua actuação como funcionário zeloso foi logo alvo da atenção dos superiores. E a sua carreira foi rápida. Sucessivamente galgou a escala hierárquica, ultrapassando os colegas de trabalho, pela dedicação e estudo que dedicava aos serviços.

Metódico como era, regulava o aparecimento dos frutos do seu matrimónio com as suas possibilidades financeiras – e cada promoção no seu emprego era celebrada com o aparecimento de um rebento.

Os seus três filhos eram designados pelos colegas de Tarquínio pelo 3º, pelo 2º e pelo 1º oficial, conforme as épocas do nascimento correspondiam às categorias do papá.

A sua vida particular, desde o casamento, passou também a ser regulada com a mesma disciplina burocrática que o seu trabalho impunha.

Assim, o Tarquínio dividia todos os meses o seu vencimento, honestamente ganho, em trigésimos, e cada parte tinha de ser gasta dia a dia, com o melhor critério administrativo.

Viveu anos assim e parecia que era feliz com a vida pautada entre a casa e a repartição, sem relações e sem dívidas. A mulher adaptara-se àquele estilo de vida e era uma leal colaboradora – mais, era uma fiel secretária e tesoureira dos bens do casal.

Mas um dia o Tarquínio foi mais uma vez premiado. Atingira, enfim, a meta da sua carreira burocrática – por distinção fora nomeado chefe da Repartição. Já não tinha idade para premiar o acontecimento com mais um rebento na sua árvore genealógica e o desafogo financeiro que advinha do novo vencimento iria proporcionar-lhe uma vida mais larga. Assim o pensava a sua fiel companheira. Pensava mas enganava-se redondamente.

O Tarquínio continuava a administrar avaramente a sua casa, cada vez apertando mais as despesas domésticas. A mulher conhecia as disponibilidades do marido e um dia atreveu-se a pedir-lhe um casaco de peles. Era a única ambição de toda a sua vida de casada. O marido franziu o sobrolho com aquela extravagância mas, no fundo, concordou com o desejo tão feminino da mulher e mandou saber o preço de três casas fornecedoras do artigo para ser comprado naquela que fizesse mais barato.

Mas as pequenas exigências da mulher começaram a surgir – os pedidos para compra de uns sapatos com 7 centímetros, 2 pares de meias de vidro, um vestido de noite, um chapéu modelo, etc., foram objecto de cuidadoso exame do Tarquínio que, embora contrariado, foi sempre deferindo.

Mas uma resolução inabalável foi tomada no foro íntimo de Tarquínio: não autorizar mais despesas sumptuárias da mulher. E ao seu primeiro pedido depois desta resolução – um casaco de bombazina, como era então moda – o Tarquínio respondeu secamente, - “Faça-me a proposta por escrito”. E por escrito o Tarquínio respondeu, desancando as extravagâncias da mulher que há tempos a esta parte, vinha a tornar-se impossível com tantas exigências, aconselhando-a a ser sóbria e comedida nos seus gastos particulares como tinha sido até ali.

As relações matrimoniais sofriam horrivelmente.A atmosfera do lar tornou-se carregada. A mulher já não podia fazer qualquer pedido verbal. A aquisição do artigo mais simples, quer fosse para seu uso pessoal, ou dos filhos ou ainda para fins domésticos tinha de ser sempre feita por escrito. E o Tarquínio a indeferir, indeferir, indeferir.

A vida tornou-se insuportável para a pobre senhora. Alguma autorização que lá apanhava de vez em quando, para adquirir qualquer coisa de inadiável obtenção, estava cheia de peias burocráticas, por despacho do marido:

Consultas a várias casas fornecedoras, anúncios nos jornais, exigências de garantias, etc., etc... E a senhora não podia com tais trabalhos.

Esta maneira de viver levou-a a praticar um acto de desespero – abandonar o lar conjugal e refugiar-se em casa da mamã. Mas antes de praticar tal acto deixou uma carta ao marido – a clássica carta destes momentos graves – em que, numa boa dúzia de laudas de papel, se queixava amargamente da vida miserável que o marido sempre lhe dera, dos sacrifícios feitos e da falta de gratidão e de generosidade dele, num momento em que não havia preocupações de ordem financeira, e em que ele podia perfeitamente satisfazer pequenos desejos, durante tantos anos recalcados.

O Tarquínio leu tranquilamente a carta de ponta a ponta. E como o casamento nunca tinha sido para ele mais do que um contrato em que, nos termos do Código Civil, deviam verificar-se as condições essenciais da capacidade dos contraentes, do mútuo consenso e do objecto possível, friamente despachou à margem da carta: “Rescinda-se o contrato” e devolveu o documento à mulher.

O processo do divórcio correu os seus termos e foi rápido.

O Tarquínio, vítima do seu método e arrumação, encontra-se hoje sozinho e sente falta do calor, da ternura e do desalinho duma mulher no seu lar. E em cumprimento da deliberação tomada, mais uma vez por unanimidade, no seu foro íntimo, resolveu de novo casar. Mas dentro dos rígidos princípios nos quais toda a sua vida decorre, vai abrir concurso público para a admissão de uma esposa e as condições são as seguintes: Não ter mais de 40 anos de idade nem menos de 25; ter robustez física e não sofrer de doença contagiosa, especialmente tuberculose evolutiva; ter sido vacinada há menos de 5 anos, devidamente comprovado por atestado de vacina, e possuir algumas habilitações literárias, científicas e de arranjos domésticos.

As leitoras que estejam interessadas em ocupar o lugar podem enviar os seus requerimentos, com assinatura devidamente reconhecida, juntando todos os documentos necessários.

Mas desconfiamos bem que o Tarquínio venha a ter uma tremenda desilusão porque o concurso, vai com certeza, ficar deserto.


Cícero Galvão
Dezembro de 1947

A CAPICUA

De cabeça caída sobre o peito, pendente sobre as orelhas e a nuca uma cabeleira grande acinzentada, de bigode grande, cobrindo-lhe a boca como uma cortina, não lhe deixando ver os dentes amarelos, de mãos muito magras com dedos finos, de unhas bem tratadas, alto como um círio e corcovado com o peso de muitos lustres, fisicamente o Sequeira era assim.

Muito observador, investigador incansável, numismata distinto e activo sócio do “Grupo de Arqueologia” – intelectualmente era assim o Sequeira.

Profissionalmente o Sequeira era funcionário público aposentado, tendo exercido com muita dedicação e zelo durante mais de 40 anos o lugar de 1º conservador do antigo “Arquivo Geral de Numismática e Filatelia” e estava satisfeito com a recente melhoria da sua pensão.

Era, também, muito supersticioso. Não podia ver uma tesoura aberta que não corresse logo a fechá-la.

- Corta-nos a felicidade! – dizia enquanto a fechava.

Uma cadeira de costas para a mesa, um chapéu em cima da cama, calçar uma meia do avesso, passar por debaixo de uma escada, acender três cigarros com o mesmo fósforo, ver um homem de raça diferente da sua, etc. etc. constituíam factos que muito o preocupavam quando lhe sucediam e que o levavam – para quebrar o enguiço – a cuspir três vezes em cruz.

O Sequeira não era hipócrita e confessava sinceramente as suas apreensões aos amigos.

- Oh filhos! – dizia-lhes ele, às vezes, à mesa do café – a estas minhas apreensões a que vocês chamam superstições – continuava ele triunfante – chamo eu “o ritmo das coincidências”.

E explicava:

- Sim, meninos, as ciências observam fenómenos ou factos, as suas causas e os seus efeitos e determinam as suas leis.

E precisava:

- Observou-se que os corpos abandonados caíam para a terra. Os corpos sozinhos não executam movimentos, concluiu-se que alguma força os obrigava a cair – foi assim que se descobriu a atracção da Terra sobre os corpos – a gravidade. Portanto foi a observação destas e doutras coincidências que levou o homem às maiores descobertas em todos os campos científicos!

E o Sequeira, satisfeito com o seu raciocínio que todos seguiram com atenção, espalmando a mão comprida e fina de dedos amarelados pela nicotina de mau tabaco, afirmava:

- “Isto” é científico! Estudei já suficientemente a repetição de determinados factos e as suas consequências, que posso tirar conclusões certas, tão rigorosas como as que nos dão por exemplo, a Estatística!

Evidentemente que ao Sequeira aconteciam coisas que lhe davam azar, outras lhe sucediam que lhe causavam sorte. O Sequeira já tinha tudo isso devidamente classificado e dentro destas últimas destacava-se a seguinte: quando viajava de eléctrico ou de combóio o número do bilhete ser capicua.

* * *

Sentado à mesa da casa de jantar, defronte do seu quotidiano café com leite, o Sequeira desdobrou o jornal, como era seu hábito todas as manhãs.

- Já sabes a novidade? perguntou-lhe a mulher.

- O que há? – Respondeu o Sequeira, molhando o bigode no café com leite que levava à boca.

- O Sousa da Farmácia, está doente. Adoeceu ontem de repente em Sintra, em casa da filha. Tens de ir vê-lo.

O Sequeira não podia faltar a esse sagrado dever. O Sousa, coitado, que se interessava sempre pelas suas miudezas e preparava com tanto cuidado os papeizinhos de bicarbonato de sódio para as suas indisposições de estômago. Iria vê-lo naquele mesmo dia.

- Vou já agora de manhã a Sintra ver o Sousa, disse ele à mulher numa decisão.

* * *

Comprou um bilhete de 3ª classe na Estação do Rossio e, já na carruagem, dava voltas ao pequeno bilhete de cartão azul-pardo quando reparou no número.

Mas era uma capicua, não havia dúvida!

Tanto se lia da esquerda para a direita como da direita para a esquerda. Era o mesmo número para qualquer dos lados!

O Sequeira não queria acreditar naquele prenúncio de felicidade, mas de repente lembrou-se que o empregado da Estação, em Sintra, ficava com os bilhetes à saída dos passageiros.

O combóio já largara e o Sequeira levou toda a viagem a dar voltas à imaginação para ver se descobria a forma de ficar com o bilhete. – Pedi-lo muito simplesmente ao empregado que estivesse à porta? Mas isso era ridículo... Era vergonhoso... Não encontrava solução e estava a chegar a Sintra.

O combóio estacou e os passageiros precipitaram-se para a saída. Lá estava o empregado na porta a receber, um por um, os bilhetes dos passageiros. Não escapava nenhum. Se o Sequeira saísse por ali ficava sem a capicua, era garantido.

O Sequeira olhou ao longo do cais, tentando lobrigar uma saída salvadora. Com efeito, no lado esquerdo, lá ao fundo, numa confusão de linhas de um desvio, havia uma cancela de ferro, de lanças aguçadas que dava para a estrada.

Numa correria o Sequeira aproximou-se daquela saída clandestina que lhe garantia a posse do bilhete da sorte. Trepou a cancela cheio de entusiasmo mas, ao lançar a perna, a calça prendeu-se numa lança que lhe fez um enorme rasgão e uma arranhadura num joelho.

Já na estrada, ciente da ilegalidade que tinha cometido, o Sequeira fugiu desordenadamente e um cão, de um guarda de uma passagem de nível que havia próximo, saltou-lhe às pernas, ladrando furiosamente.

Com as calças feitas em tiras, o Sequeira fingia atirar pedras para afastar o animal e deu outra corrida para atingir uma calçada.

Estava, enfim, na rua onde o Sousa se encontrava doente; era íngreme, no caminho da Pena. A filha do Sousa morava lá em cima. O Sequeira, desembaraçado de obstáculos, meteu-se resolutamente ao caminho.

E quando chegou ao cimo, com o peito arfando, o coração batendo fortemente, as fontes latejantes, as calças aos farrapos e as pernas ensanguentadas, o Sequeira tirou a capicua da algibeira do colete e sorriu triunfalmente.

Temos de convir que o Sequeira, na realidade, tinha começado aquele dia cheio de sorte!


Cícero Galvão
Dezembro de 1948

O HOMEM QUE CHEGAVA SEMPRE ATRASADO

No largo corredor da sua casa solarenga, Pacheco passeava nervosamente já havia umas longas horas. Há alguns dias que sua extremosa esposa esperava, de um momento para o outro, o primeiro fruto do casal, mas o acontecimento estava difícil de se dar.

O Dr. Costa, velho médico da casa, que há mais de quarenta anos assistia ao nascimento e passava as certidões de óbito de todos os membros da família Pacheco, garantira que a “coisa” devia dar-se no princípio da semana mas já se estava no sábado e nada!

Debalde Pacheco passeava no longo corredor da sua casa provinciana, no clássico transe, e o silêncio terrível não havia meio de ser cortado pelo choro alegre de um recém-nascido.

O Dr. Costa saiu do quarto, congestionado, atravessou apressadamente o corredor, lançando a Pacheco um sorriso amarelo e desapareceu. Passado pouco tempo voltou acompanhado do cirurgião do hospital da Misericórdia e de enfermeiros que traziam o ferramental necessário a uma intervenção cirúrgica.

O futuro pai, lívido, cessou de passear, encostou a cabeça à parede fria e não se sabe quanto tempo esteve naquela posição.

Despertou quando ouviu abrir a porta e saírem do quarto os gritos esperançosos dum pimpolho. O Dr. Costa apareceu-lhe de braços abertos: - Parabéns, parabéns, o rapaz chegou atrasado mas sempre chegou!

Pacheco Filho tinha vindo a este mundo com um atraso de cinco dias, pelo menos, e após uma penosa e hábil cesariana.

* * *

Pacheco Filho foi débil – os dentinhos vieram-lhe tarde e só andou à beira dos dois anos.

Quando chegou à idade escolar custava-lhe a sair da cama, por ser friorento, e chegava ao colégio sempre tarde.

Foi um castigo para fazer a instrução primária e o liceu. Foi à custa de colégios caros, explicadores exigentes, bilhas de azeite e barris do melhor vinho das propriedades do pai que Pacheco Filho acabou o curso dos liceus na idade em que se é chamado a cumprir os deveres militares. Neste aspecto Pacheco Filho ia sendo dado por refractário - como sempre, no dia da inspecção chegou atrasado.

Valeu-lhe um pedido do tio avô, o coronel Pacheco, de muito prestígio nos meios militares.

Depois deste incidente Pacheco Filho tentou empregar-se. O pai arranjou-lhe um lugar de amanuense no cartório da vila.

Mas a breve trecho o Dr. Camacho, o notário, procurava solenemente Pacheco pai no solar da família e explicava-lhe que o rapaz não tinha vocação para aquilo. Por mais de uma vez cometera graves erros ao copiar escrituras do “Livro de Notas para Actos e Contratos entre Vivos” e sobretudo não era pontual, falta imperdoável para aquele emprego onde tudo se fazia com horas marcadas. Que não visse daquela informação má vontade mas devia dar-se outro destino ao rapaz. Atrevia-se até a dar um conselho – o rapaz que se dedicasse aos negócios. Capital não lhe faltava, era uma actividade independente, podia chegar a qualquer hora ao escritório…

A despedida do Dr. Camacho foi fria mas…Pacheco pai ficou a pensar maduramente no caso. Não havia dúvida, aquela falta de pontualidade do filho não lhe permitia seguir qualquer carreira. E no seu foro íntimo resolveu estabelecê-lo na vila com comércio geral, na primeira oportunidade.

* * *

Havia dois anos que Pacheco Filho se enamorara da Isabelinha, filha de amigos da família, casamento de muito agrado dos pais.

Dirigia agora molemente a casa comercial que o pai lhe montara e os sentimentos do amor, que aparecem na primavera e na adolescência, tinham-no invadido, embora tardiamente.

O casamento estava ajustado, os noivos formavam um amoroso par, não lhes faltando projectos e ilusões.

Apenas as frequentes vezes que Pacheco Filho chegava tarde aos encontros e à hora do namoro, toldavam aquele idílio.

Isabelinha enervava-se de esperar. Noite em que ele chegasse tarde encontrava-a triste e fria. Levava tempo a passar a nuvem.

Em vão Isabelinha lhe pedia que se emendasse, que fosse pontual, que a não fizesse sofrer. Pacheco prometia, prometia...mas não tinha forças, aquilo era superior à sua vontade, e cada vez chegava mais atrasado.

Um dia Isabelinha, quando a demora foi demasiada, perdeu a cabeça. Era demais. Ou ele se corrigia ou era preferível acabar com tudo. Pacheco chorou – mas não se emendou!

O dia do casamento foi marcado, e o noivo devia estar ao meio dia em ponto na Igreja.

Na véspera, Isabelinha, os futuros sogros, os pais e os amigos tinham-lhe recomendado, insistentemente, que desta vez fosse pontual.

Pacheco deitou-se com essa preocupação mas no dia seguinte tudo começou a correr ao contrário. Aquele dia de Dezembro amanheceu extraordinariamente frio e Pacheco começou por se levantar extraordinariamente tarde. Faltou a água para o banho quente, a velha criada não tinha posto toda a roupa em ordem, por fim não se sabia do botão do colarinho. Já haviam batido as doze badaladas do meio dia do relógio da torre e Pacheco estava ainda por vestir. Noiva, padrinhos e convidados esperavam na Igreja com preocupação.

O tempo corria velozmente, Isabelinha mostrava impaciência.

O carrilhão batia sonoramente os quartos de hora e Pacheco não aparecia.

A noiva teve uma crise de nervos. Perante o espanto de todos declarou que desistia do casamento e exigiu que o pai a levasse rapidamente para casa.

Quando Pacheco chegou encontrou a Igreja triste e deserta. Onde estavam a noiva, os amigos, as flores, os acordes duma marcha nupcial?

Apenas o bondoso padre Camilo, junto ao altar-mór, esperara por ele.

Fez-lhe um lento aceno com a cabeça em sinal de reprovação.

Num instante, Pacheco compreendeu tudo.

Beijou a mão do padre, fez o sinal da cruz e, envergonhado, abalou da Igreja numa corrida desordenada.

Correu, correu, sem destino, com a cabeça repleta de ideias confusas.

Sentia-se um homem desgraçado, vencido, vexado por aquele complexo de inferioridade, que não lhe permitia chegar a horas a qualquer parte.

Pareceu-lhe ouvir um silvo de comboio. Um pensamento horrível lhe atravessou o cérebro. De facto, o comboio da uma da tarde devia estar a passar. O caminho de ferro ficava ainda a um quilómetro. Sempre numa corrida louca só lhe apetecia desaparecer de tudo e de todos. Acelerou a corrida – estava decidido, iria pôr termo à vida. Só queria esmigalhar-se contra o comboio. Já avistava a linha e a máquina do monstro a aparecer numa curva. Num esforço sobrehumano Pacheco vencia as últimas dezenas de metros que o separavam dos carris.

Mas o comboio, em grande velocidade, numa massa negra, fugidia, que a seus olhos parecia cheia de linhas horizontais, passou, como um meteoro, na sua frente.

Quando Pacheco caiu, exausto, sobre os carris de ferro, já tinha passado a última carruagem.


* * *

Salvou-lhe a vida, desta vez, o seu trágico destino de chegar sempre atrasado.



Cícero Galvão
Dezembro de 1949

O NOVO OLIMPO


A tertúlia reunia todas as noites num canto obscuro do café “Studium”, frequentado por estudantes e intelectuais.

Saboreando os cafés servidos pelo Vieira, o criado veterano que tinha assistido à formatura de sucessivas gerações, doutorado “honoris causa” por todas as Faculdades, em noites de glória comemorativas de fins de curso, os componentes da tertúlia do canto escuro discutiam o acontecimento do dia – a tia velha e rica do António Cabral, a tia alentejana proprietária de uma riquíssima herdade com mais de mil hectares de terras férteis de cortiça, azeite e pão, morrera. O Cabral estava rico.

- E não era só a herdade – informava um – havia também alguns prédios em Lisboa e cerca de mil contos em títulos do Estado. Coisa para mais de dez mil contos! – fazia as contas o Fonseca, o mais íntimo do Cabral que com este já várias vezes tinha avaliado a fortuna da tia rica.

- Vai deixar de nos conhecer – comentava céptico o Alves, engenheiro, mas homem do campo com a paixão agrícola – com uma fortuna daquelas! E que sabe ele de lavoura para entrar na posse de uma herdade de mil hectares ? Dá Deus nozes...

O Fonseca continuava:

- Já passei umas curtas férias com o Cabral nessa herdade que é constituída por uma montanha inteira. As extremas estão definidas por verdes vales e ribeiros cantantes a partir dos quais se estendem férteis várzeas e vergéis que pouco a pouco se vão acidentando até ao agrupamento das casas a que lá chamam “Monte”.

A casa de habitação está dentro dum denso bosque sendo a maior parte da propriedade revestida de grossíssimos sobreiros, nas altitudes mais baixas, e de gigantescos eucaliptos, fechados pinheirais e um sem número de espécies exóticas. Um verdadeiro paraíso! – rematou o Fonseca.

A tertúlia ouvia, vivamente interessada, a descrição e havia no ambiente um não sei quê de amargura pela perda do Cabral.

Não havia dúvida, o Cabral tinha de se afastar deles. Com a responsabilidade da administração duma fortuna daquelas, não tinha mais tempo a perder em conversas inúteis de café.

- E a casa? A casa é boa, oh Fonseca? Perguntou o Fernandes, arquitecto de recente formatura.

- Não, a casa não é grande coisa. Um velho casarão de pedra e cal, sem estilo e sem gosto, caiado de branco. A tia do Cabral não ligava muito à casa. As fazendas é que eram tudo para ela. Costumava dizer: “Casa onde caibas, fazendas que não saibas” e foi arredondando sempre a herdade pela compra das quintas vizinhas, nunca se interessando muito pela casa. O arquitecto aguçou que o Cabral agora é que podia lá mandar fazer um bom palácio...

Súbito, surgiu o feliz herdeiro, carregado de luto, com ar taciturno. Os amigos não o faziam em Lisboa e foi com surpresa que o viram chegar.

O Teles, que desistira de estudar medicina para se dedicar aos negócios com o pai, ia a esboçar um “Parabéns, oh Cabral” mas emendou a tempo, expressando os seus sentimentos.

O Cabral abancou, recebeu os “sentidos pêsames” dos amigos e com um ar triste murmurou:

- Pois é verdade, rapazes, a Titi lá morreu. Foi já há dias e eu cheguei mesmo agora do Alentejo. Vou precisar da vossa ajuda para deslindar toda esta herança. Tenham paciência, os amigos são para as ocasiões. E, dito isto, despediu-se, porque estava arrasado, prometendo-lhes vir no dia seguinte, pois tinha uma surpresa para todos.

No dia seguinte a tertúlia lá estava reunida, à hora do costume, e ansiosa por conhecer a surpresa do Cabral. Nem faltou o Camacho que na véspera ficara em casa a estudar para um exame, pois frequentava “armas gerais” para seguir a carreira militar.

O Cabral não se fez esperar e a novidade rebentou naquele canto escuro do café “Studium”. O novo dono do enorme monte alentejano vinha proporcionar-lhes apenas isto: Irem todos viver para lá. Cabiam todos naqueles mil hectares que se perdiam de vista e o “Monte” precisava de gente com imaginação e iniciativa para se desenvolver. Havia vasto campo para pôr em prática os conhecimentos e a vocação de cada um.

O Fonseca, formado em Direito, seria o jurista que começaria por resolver todos os intrincados problemas relativos à herança e depois poria a claro todos os actos e contratos relativos à herança e depois poria a claro todos os actos e contratos relativos à propriedade.

O Alves, dada a sua queda para a agricultura, seria o técnico das explorações agrícolas e, como era engenheiro, promoveria o fomento industrial.

O Fernandes, arquitecto, assumiria o encargo dos projectos das obras a fazer na herdade, e tantas seriam.

O Teles, comerciante, trataria dos negócios de compra e venda.

O Camacho teria de sacrificar a sua carreira militar, mas tinha de ter paciência, a tertúlia não podia dispensá-lo. Aplicaria a sua vocação militar na defesa do Monte e no estudo dos grandes planos das caçadas. A titi queixava-se de que a herdade era, por vezes, assaltada e dizia que, noutros tempos, tinham-se lá realizado reais caçadas.

O Camacho resignou-se. Ante a expectativa de uma vida tão sublime, rodeada de amigos tão sinceros e generosos, e o encargo de aturar labregos, não podia hesitar – iria com os amigos para o Alentejo. Como bom militar, não hesitaria.

O Alves perguntou como se chamava o Monte. O Cabral, timidamente murmurou:

- Tem um nome feiote, chamam-lhe lá o Monte das Cotovias, um pouco ridículo não acham?

- Com efeito, com efeito, exclamaram alguns.

Mas Cabral tinha uma ideia: Dadas as condições panorâmicas do Monte, pelo alto nível mental que lá se iria viver, a herdade só podia ter um nome: - O Olimpo, melhor “O Novo Olimpo”. E eles seriam os novos Deuses que o habitariam, numa atmosfera elevada de beleza, de sabedoria, de compreensão e de comodidade.

- Caramba! – exclamaram alguns – isso é que é nível!

O Camacho propôs logo que se distribuíssem as “pastas”. Ele queria ser Marte à viva força e propunha o Cabral para Júpiter, o Deus supremo que podia governar todos e até os outros Deuses.

A ideia foi aprovada e a mesa animou-se extraordinariamente.

O criado Vieira, solícito, tinha servido, por conta própria, além dos habituais cafés, conhaque e Porto das melhores marcas, pois apercebera-se de que grandes momentos estavam ali a viver-se. O Alves, entusiasmado, pedia charutos para todos.

A ideia de se encarnarem em Deuses excitara a Assembleia.

A um canto da mesa o Fonseca e o Fernandes disputavam já o título de Apolo. Júpiter, impondo a sua autoridade, fez terminar a querela dando o título ao Fonseca. E explicava: O Fonseca tem muito mais físico! Tu, Fernandes, apesar de artista, serás Neptuno, em homenagem à tua vocação para as coisas do mar. E, como arquitecto, dou-te já o encargo de construíres um grande lago onde hoje existe um charco, que há-de passar a ser domínio teu e onde poderás criar delfins, animais que te estão consagrados, segundo a mitologia!

O Alves, o engenheiro, optara por Vulcano – seria o novo Deus do fogo no Novo Olimpo e das forjas que montasse na herdade sairiam as mais belas obras de metalurgia.

Restava qualificar o Teles, o comerciante incipiente e médico falhado, que escolheu Mercúrio. Seria de bom grado o mensageiro dos Deuses e dedicar-se-ia em especial aos negócios do “Novo Olimpo”. Cabral, o novo Júpiter, foi o primeiro a retirar-se. Os amigos que ainda ficaram não se cansavam de elogiar a camaradagem e a generosidade de Júpiter.

Naquela noite, investidos nas altas dignidades dos novos Deuses, nenhum foi capaz de conciliar o sono.

Júpiter teve uma larga conferência com Mercúrio, a propósito das finanças do Olimpo.

Havia dois meses que se tinham instalado na vasta herdade e a realização dos grandes planos já tinha começado.

Centenas de operários formigavam pela interminável propriedade na abertura de caminhos, na construção de lagos, na distribuição de águas e na construção do palácio digno dos novos Deuses do “Novo Olimpo”.

Para o pagamento dos direitos de sucessão tiveram de ser vendidos os títulos do Estado. E como se ficara sem dinheiro disponível, a conselho de Mercúrio, venderam-se também os prédios de Lisboa.

-“Era preciso liquidez” – afirmara Mercúrio com os seus conhecimentos de economia – “quer dizer: massinha livre, dinheiro disponível”.

Apolo tinha cuidado de todas estas operações com zelo e saber inexcedíveis, próprias de um verdadeiro Deus.

As obras prosseguiam, em ritmo acelerado, sob a directa orientação de Vulcano e Neptuno, assistidos por um formidável Estado Maior de arquitectos e engenheiros.

Nos bancos existiam quatro mil contos à ordem de Júpiter e estavam para breve as novas colheitas e a tirada da cortiça. A situação não era má e uma só preocupação devia subsistir: caminhar o mais rápido possível com todas aquelas realizações de que já se fazia eco no País.

Quando o outono chegou, o palácio estava concluído e a inauguração foi uma festa sensacional.

Marte organizara impecavelmente uma caçada maravilhosa. As peças abatidas, ao fim da tarde, cobriam completamente os vastos terraços do Olimpo. Júpiter dera ordem para se oferecer toda a caça a instituições de caridade. Os vastos salões do palácio foram invadidos por dezenas de convidados que demoradamente percorreram as luxuosas instalações daquela elite da humanidade.

Entretanto o elenco do Novo Olimpo tinha sido enriquecido com mais duas divindades. Marte casara-se e a sua mulher quis ser Diana. Por sua vez, Júpiter atribuíra à filha do caseiro as funções de Ceres pelo muito zelo que punha nos trabalhos agrícolas e pela muita simpatia que lhe inspirava.

Continuava a trabalhar-se activamente no Olimpo, que cada vez estava mais belo. O imenso lago que substituía o charco estava pronto. Era quase um oceano, em forma de um grande ovo, sendo no meio profundíssimo.

Neptuno, com muito custo, arranjou os delfins que nadavam regaladamente no lago, aflorando de vez em quando à superfície das águas quietas, com os lombos luzidios a rebrilhar ao sol. Neptuno, em calções de banho, deitava-se à água e perseguia os delfins. Era um espectáculo delicioso que deleitava Júpiter nas tardes cálidas do verão.

Marte e Diana continuavam a organizar caçadas cada vez mais belas e dispendiosas. Apolo também se perdia agora pelo gosto da caça e acompanhava muito o casal venatório.

Uma tarde, Júpiter passeava sozinho, através duma densa mata, quando ouviu um forte restolhar de folhas secas, atrás duma sebe. Júpiter foi dar com Diana nos braços de Apolo em doce e adúltero idílio. Surpreendidos, declararam que se tinham perdido de Marte numa caçada. Júpiter esteve quase para dar largas à sua ira. Mas deixou o casal em paz, continuando o seu passeio. Mais adiante encontrou Marte que procurava ansioso, com um belo perdigueiro, farejando a sua Diana perdida...

Foi a primeira nuvem sobre o Olimpo e Júpiter, encolhendo os ombros, pensava que era um Deus dos Deuses, bondoso e tolerante, incapaz de expulsar qualquer Deus do Olimpo como o outro fizera.

No começo do Verão seguinte Mercúrio pediu audiência a Júpiter para um assunto grave e sério. A rapaziada estava a sentir-se um pouco presa no Olimpo. Ele próprio, mensageiro dos Deuses, não dispunha dos necessários meios de acção, queria dizer, de locomoção. Enfim, não estava também certo que personalidades como eles, melhor, divindades como eles, andassem a utilizar-se de meios de transporte que eram utilizados por vulgares mortais. Concretamente, era preciso dotar a rapaziada, e evidentemente o Deus dos Deuses, com uns carritos cómodos e elegantes que lhes permitissem deslocar-se facilmente às cidades mais próximas ou à capital.

Para Júpiter propunha a compra de um “Packard” de aspecto digno, para ele, Mercúrio, estaria indicado um “Mercury” para lhe facilitar o serviço e até para lhe dar com o nome. Marte fazia questão dum carro militar, devidamente camuflado, aos laivos amarelos e verdes, o que teria muita vantagem nas caçadas quando se embrenhassem nas matas. E para Apolo, Neptuno e Vulcano, como se deslocavam menos, uns utilitários serviam...

Júpiter indagou do custo daquele delírio automobilístico e, informado de que era coisa para uns quinhentos contos, complacentemente passou o cheque.

Estava-se na época das colheitas e Júpiter quis, em concílio, rever a situação material do Olimpo. O ano agrícola ia mau; o trigo tinha-se perdido totalmente; no azeite, o ano era de contra safra; ao centeio dera-lhe a cravagem e como não havia uma guerra a valer, só podia ser vendido como palha de segunda. (Marte nesta altura escapou-se subreptíciamente). Júpiter continuava a expor a situação: as varas de porcos não se vendiam, os fundos disponíveis estavam a extinguir-se e entretanto as grandes construções continuavam – depois do palácio residencial, do lago gigantesco dos delfins, das estradas, do abastecimento de águas, estavam previstos, o “auditorium”, as fábricas de fundição para Vulcano, as instalações para o pessoal, com refeitórios, creche, campos de jogos e hospital, além dum sem número de construções, como currais, vacarias, etc. etc. Para tudo era preciso muito dinheiro disponível e a situação não se estava a mostrar muito desafogada.

Mercúrio sugeriu, para dar vazão aos porcos, que se montasse uma fábrica modelo de salsicharia. Já havia projectos elaborados. Mas Júpiter informou que depois da compra dos automóveis tinham ficado apenas quinhentos contos em depósito. Não era nada para as obras em curso. Tinha-se de pôr um travão em tudo aquilo.

Mercúrio comentava com timidez, que estavam novamente sem massinha livre como no princípio. Júpiter blasfemou em aparte: e tudo aqui a viver à tripa forra...

Apolo pediu a palavra: inteirado da situação do Olimpo era de opinião que não tinha havido o cuidado de poupar os fundos iniciais enterrando-se dinheiro demasiadamente, e ele não nascia; para mais, o ano agrícola era mau. Só havia, pois, uma solução – hipotecar o Olimpo e entrar-se no regime da maior austeridade.

Júpiter encarregou Mercúrio de ir a Lisboa tratar da hipoteca. Apolo devia dar-lhe todas as instruções e fornecer-lhe a documentação necessária. Com efeito, Mercúrio partiu para Lisboa no dia seguinte com asas nas rodas do seu belo “Mercury”.

Entretanto, Neptuno pedia audiência a Júpiter para lhe dar conhecimento dum caso grave – os delfins do lago tinham morrido. Júpiter ouvia indiferente a notícia. Neptuno parecia um pouco preocupado com as responsabilidades, pois os delfins tinham custado um dinheirão e estavam ao seu especial cuidado. A culpa tinha sido do Instituto Oceanográfico de Paris que não tinha esclarecido devidamente o “habitat” dos bichos – não se deram bem com a água doce e morreram.

Era pena, uns animais tão perfeitos, que tinham vindo tão bem acondicionados de França num wagon-piscina, construído de propósito para eles. A falta de água salgada tinha sido um lamentável acidente. Júpiter ouvia-o distraído, a pensar na hipoteca do Olimpo, mas ainda pôde esboçar uma graça: “Neptuno, meu velho, neste Olimpo és um Deus de água doce” e aconselhou-o a enterrar os delfins para não apodrecerem as águas do lago.

Júpiter convocara de novo os Deuses para lhes comunicar os seus novos projectos. Ia propor-lhes uma mudança radical daquele estilo de vida. Eram necessárias medidas enérgicas, como propusera Apolo – Acabar-se-iam as obras empreendidas e nada mais; por-se-ia fim às caçadas dispendiosas que eram simples pretexto para Marte mexer em pólvora e para Diana exibir a sua beleza e a sua leviandade. Para férias já lá iam dois anos e o melhor de cinco mil contos. Tinham de ir todos ao trabalho pois a hipoteca teria de ser paga em 10 anos e com juros caros. O trabalho deles e o rendimento da herdade tinham de redimir a Ideia Sublime que os levara a viver em comum. E quem não concordasse, ou não estivesse para sacrifícios, que saísse do Olimpo, se tornasse num simples mortal, num fraco, num sem vontade.

Ninguém desertou. Eram Deuses para as boas e para as más horas.

Entretanto Mercúrio não dava notícias e já havia uma semana que partira.

Eram sempre negócios demorados, mas Júpiter já estava a inquietar-se. O Olimpo valia agora oito mil contos à vontade e a hipoteca ia ser tentada em três mil. Passada outra semana ainda não chegara notícias do mensageiro dos Deuses e Júpiter, aflito mandou Apolo saber do que se passava.

Apolo regressou ao Olimpo, sem Mercúrio e sem dinheiro e a novidade era esta: Mercúrio pisgara-se! Traíra os amigos e o Olimpo, mas havia poucos pormenores. Mercúrio tinha estado poucos dias antes no Banco de Crédito Imobiliário e conseguira negociar a hipoteca por quatro mil contos, mercê de influências do pai junto do Presidente. Vários amigos viram-no numa noite no Olímpia a encharcar-se de champanhe com uma coupletista espanhola.

Soube depois, no Aeroporto, que, no dia seguinte à cena com a coupletista, partira com ela para a Argentina, levando todo o dinheiro que podia salvar o Olimpo...

Era uma traição inqualificável e uma vergonha – um Deus do Olimpo fugir com uma coupletista do Olímpia!

Júpiter ouvia serenamente e meditava sobre este descalabro moral. A sua comunhão tão generosa com amigos tão íntimos só tinha provocado abusos e desregramentos. A traição de Mercúrio era o golpe fatal, assim o disse a Apolo, disposto a acabar com tudo e aconselhando-o a fugir dali, com Diana, para pôr fim a mais um escândalo.

Naquele triste fim de tarde, Júpiter foi refugiar-se na modesta casa do caseiro, que nunca o deixara de tratar por menino António e, numa cadeira de palhinha, descansou o corpo e regalou os olhos, mirando as louras tranças de Ceres e a serena beleza dos seus vinte anos.

Há muito já que Cupido tinha feito das suas entre os dois, que se olhavam agora compreensivamente. Ceres, de olhos húmidos e luminosos, suspirou uma intimidade: ao que tudo isto chegou, menino António! Júpiter confirmou num murmúrio: ao que isto tudo chegou...

E foi o desmanchar da feira.

Apolo fugiu, com efeito, com Diana, seguindo o conselho de Júpiter.

Neptuno partira para Lisboa e metera uns empenhos para se alistar na marinha mercante.

Vulcano, o mais sensato, comprou a Júpiter a fábrica de fundição que tinha montado, ficando de a pagar em prestações suaves.

Marte, desiludido e atraiçoado, despediu-se, cabisbaixo, disposto a partir como voluntário para a guerra da Coreia e decidido a deixar-se matar por um chinês.

Júpiter deixou o Novo Olimpo aos cuidados do velho caseiro da Titi, à sua rotineira administração. Ficavam lá enterrados os seus sonhos de beleza e de vida superior e o melhor de nove mil contos. O Olimpo passaria chamar-se o “Monte das Cotovias” e Júpiter seria o simples António Cabral que pediu em casamento Ceres, a loirinha filha do caseiro.

Refugiaram-se ambos em Lisboa, onde montaram uma frutaria no Chiado, a grande ambição da modesta Ceres, disposta a trabalhar activamente junto do marido para resgatar o falhado “Novo Olimpo” o seu querido “Monte das Cotovias”, a bela propriedade, onde tinha nascido, agora também sua, relíquia da família dos patrões tradicionais de seus avós.

Cícero Galvão
Dezembro de 1950

O TIO FREDERICO


Um homem célebre, mais tarde ou mais cedo, tem o seu biógrafo. Todo aquele que neste mundo fez qualquer coisa de notável – bem ou mal, não interessa – e que espigou acima do tamanho médio das espigas desta enorme seara que o tempo nunca mais se cansa de ceifar, mais cedo ou mais tarde há-de ter a sua vida esquadrinhada, divulgada aos quatro ventos, com os seus segredos mais íntimos desvendados, o seu carácter interpretado à vontade do narrador e os seus passos contados desde a hora do nascimento até à hora da morte.

Emil Ludwig, Stephan Zweig, Giovani Papini, Elaine Sanceau, o casal Henry e Dana Thomas e tantos outros gigantes da Literatura – que sei eu ignorante das Letras? – não se cansaram e não se cansam de investigar para nos darem, sempre em aspectos cintilantes, a história maravilhosa da vida de guerreiros e santos, mártires e heróis, conquistadores e navegadores, sábios e investigadores, poetas e prosadores, filósofos e artistas, políticos e aventureiros, déspotas e ditadores.

E às vezes penso por que estranha razão, ninguém ainda se deteve a contar a vida do homem menos que mediano, do homem medíocre, daquele que, na sua passagem por este vale de lágrimas nada fez, nem de bom nem de mau, nada descobriu, nem nada inventou, nada escreveu nem nada sofreu, ninguém venceu nem em ninguém mandou. Como terá sido, com efeito, a vida desses anónimos? Não teriam eles feito mesmo nada, enquanto, no mesmo tempo, outros tanto fizeram? Em que gastaram eles toda essa enorme fortuna de tempo, essas dezenas de milhar de dias e essas centenas de milhar de horas? De uma maneira geral, não sei, francamente não sei. E nenhum daqueles campeões da Literatura se deu ainda ao trabalho de investigar. Mas conheci um homem que devia ser um espécime daqueles cuja vida eu gostaria de ver narrada num grosso volume de 500 ou 600 páginas. E sinto tentação de esboçar, a traços largos, a sua história, já que as sumidades não lhe pegam.

É o que vou tentar fazer para os leitores do “Re-nhau-nhau” mas sempre lhes quero dizer, aqui à puridade, que a figura e os factos desta história são fictícios e qualquer semelhança com figuras e factos da vida real é simples coincidência, em relação à qual o autor declina desde já toda a responsabilidade.


* * *

Por estranho que pareça e por invulgar que seja, o Tio Frederico quando nasceu era já mesmo tio. Com efeito, Frederico foi um filho serôdio, de pais já avançados em idade e com filhos já casados. O pai ia perto dos sessenta e a mamã – mais de dez anos mais nova que o marido – andaria pela perigosa casa dos quarenta e muitos. Mas Frederico apareceu e, embora inconvenientemente, nasceu.

Como filho de pais senis, veio fraquito.

Não chegava a pesar dois quilos quando viu a luz e o Dr. Sequeira, velho médico da família, chegou a não dar nada por ele. A parteira, então, dizia à boca pequena que o menino quase que cabia numa caixa de charutos.

Aos seis meses, uma terrível enterite ia-o fazendo apagar-se e a inflamação era de tal ordem que o intestino grosso chegou a estar saído quase um palmo. Mas o Dr. Sequeira com a sua velha ciência, muito paciência e o conhecimento da história patológica da família, lá o salvou milagrosamente. E Frederico criou-se, contra todos os prognósticos e diagnósticos.

Ficou órfão muito novo e os irmãos já casados tomaram conta dele e deram-lhe o quinto ano dos liceus.

Entretanto, Frederico fez-se homem e revelou-se um temperamento artístico e um carácter muito independente.

Nas partilhas tinha-lhe cabido um prédio de rez do chão e 1º andar, às Olarias, e Frederico, altivo como era, abandonou a tutela dos irmãos e foi morar, com uma velha criada, para o 1º andar, passando a viver da renda do rez do chão. Não era muito, mas com a sábia administração da governante e a sua moderada vida, dava para viver dignamente com independência.Com o produto da venda de umas inscrições, que também herdara dos pais, o Tio Frederico fez uma viagem ao estrangeiro. Percorreu os portos de Espanha e de Itália, visitou a Grécia, o Egipto e a Palestina. E quando regressou, habilitado com esta viagenzinha, umas leituras nacionais e francesas e o quinto ano dos liceus, decidiu-se a entrar na vida prática. O sobrinho mais velho arranjou-lhe um emprego no Estado. Foi quando Frederico se enamorou duma visita de casa dos sobrinhos. Mas foi um amor tímido e platónico. Frederico tinha um tremendo receio das responsabilidades e a situação de homem casado e chefe de família aterrava-o. Fez um soneto lírico e calcou fortemente os sentimentos que tão espontaneamente lhe surgiram para manter intacto o seu isolacionismo. Nunca mais pensou na pequena e solenemente decidiu-se ficar solteiro.

Aos quarenta anos, beneficiando da sua fraqueza física congénita, aposentou-se. E de então em diante é que o Tio Frederico passou a gozar a vida, como se poderia dizer, à sua maneira.

Tinha lido muito e a sua delicadeza e primorosa educação refinara com a entrada na idade madura. Vestia com impecável correcção, sabia estar à mesa como ninguém – não se ouvia um sorvo de sopa, de chá ou de café, mantinha impecavelmente os cotovelos junto ao tronco e colocava sempre cuidadosamente os talheres sobre o prato em rigorosa perpendicular com o corpo. Em recepções elegantes, em casa de parentes, praticava elegantemente o beija-mão, naquela ciência quase hermética e esotérica de troca de cartões dava preciosas consultas aos sobrinhos e a raros amigos em momentos de aflição. Da sua viagem, feita muitos anos antes, guardava preciosos conhecimentos que enriquecia com leituras actualizadas.

Os sobrinhos tinham-se casado e posto casa e como a conversa do Tio Frederico fosse sempre interessante e o seu porte impecável em dia de convidados, um dos convivas era sempre ele.

Os sobrinhos tinham chegado à conclusão de que ele era um extraordinário ornamento de uma mesa de jantar.

Adquiriu fama de conversador delicioso, culto e viajado.

E quando se apercebia que os convidados nunca tinham passado a fronteira, ou tinham feito apenas uma excursão a Sevilha ou a Madrid com pesetas de contrabando, exclamava:

- “Não sei se conhecem o Egipto? Pois um dia, na terra dos faraós, ia eu a caminho da Pirâmide de Keops...”

E aquela aventura de há vinte e tantos anos era “leit motiv” para a conversa do resto da noite.

Os sobrinhos ouviam-no encantados e as visitas saíam embevecidas. O Tio Frederico era, na verdade, um grande ornamento e os sobrinhos por nada deste mundo o dispensavam em dia de festa, nomeadamente quando ao jantar ia gente de muita categoria e cerimónia.

* * *

Assim, diletantemente, Frederico gastava o seu tempo.

A toilette da manhã, a leitura dos jornais e dum pedaço de livro, um passeio, um jantar e uma vez por mês a passagem do recibo do inquilino do rez do chão e a maçada de ir receber a pensão à Caixa de Aposentações – eram todo o seu mundo de actividade.

O verão passava-o na praia, na casa de um dos sobrinhos, instalada a um quilómetro do litoral no meio de uma quintinha com muitos marmeleiros, que rescendiam em Setembro, e malmequeres bravos.

Frederico adorava a paisagem que se desfrutava da quintinha que ficava num alto. No outeiro defronte, um velho moinho de grandes velas de lona muito brancas, com cabaças de barro postas ao longo do cordame, compunha o panorama e entoava um cântico harmonioso que enchia de ternura, por vezes, o coração frio do Tio Frederico. Era amigo antigo do José Moleiro, o dono do moinho. E as compridas tardes das suas extensas férias que iam sempre desde Junho até Outubro bem entrado, passava-as no moinho a falar vagamente com o moleiro e a ouvir, enlevado, a canção das cabaças de barro e a observar o crepúsculo maravilhoso que caía sobre o mar. O Zé Moleiro, obsequiosamente, e à falta de melhor assento, oferecia-lha um tampo solto de cadeira, cheio de buraquinhos. E o Tio Frederico, com muito cuidado, colocava o tampo da cadeira sobre uma pedra enorme e, alternando a vista por um livro e a paisagem de sonho, passava ali horas esquecidas numa quietude de Parnaso.

No começo das férias de um certo ano, Frederico teve uma tremenda desilusão. Naquele inverno o velho moleiro, cansado da faina com o velame e tentado pelos argumentos persuasivos de um negociante de maquinaria, tinha substituído o seu romântico moinho de velas de lona por um gigantesco engenho de ferro. Era monstruoso, na verdade, espetando-se para o céu em torre metálica, de pás enormes e leme descomunal, oferecendo resistência violenta ao vento que o fazia girar vertiginosamente. Era pintado de uma cor e respirava óleo de lubrificação por todos os lados quando rodava naquela velocidade louca.

Frederico ficou horrorizado. Nem sentia coragem para ir observar de perto o monstro. Mas um dia subiu o cerro para ir insultar o moleiro:- Infeliz, que fizeste tu? Estragaste toda a beleza da tua terra. Lançaste um borrão na paisagem, inutilizaste o magnífico quadro em que tu próprio vivias!...

O velho moleiro, surpreendido com aquela inesperada ira, timidamente aduziu as suas razões. Mas Frederico não as atendeu e furibundo ameaçava o moleiro e o moinho com o punho cerrado:

- Oh! Desgraçado materialismo humano, como tudo pervertes!

Revoltado, desceu até casa. Fechou-se no quarto durante dois dias e nunca mais foi visitar o seu ex-amigo Zé Moleiro.

* * *

Foram umas férias estragadas. Quando foi de regresso a Lisboa, já em pleno Outono, o Tio Frederico teve uma gripe. Ficou mais enfermiço depois da doença que chegou a assustar a família.

Naquele longo inverno continuou a ornamentar a mesa dos chás e dos jantares de cerimónia dos sobrinhos e no verão seguinte quebrou a tradição e não foi passar as férias à praia, como sinal de protesto contra o borrão na paisagem. Antes fizera diligências para intimar o moleiro a repor a paisagem na sua forma original. Mas não encontrou Grémio, Junta ou Repartição Pública com competência para aceitar e decidir sobre uma longa exposição acerca daquela “enormidade da ganância de um industrial ignorante e materialista que preferia um engenho de discutível maior rendimento e que adulterava torpemente a paisagem, às românticas, serenas e tradicionais velas de lona dum alvo moinho no cimo de um outeiro”, como rezava o texto laboriosamente composto por Frederico.

A exposição era lida a toda a gente com o pedido de uma influência ou um conselho quanto ao destino a dar-lhe, com o objectivo de deitar abaixo aquele monstro de aço que respingava óleo lubrificante e que até estragava a farinha, segundo já dizia o povo. Um antigo colega recomendou-lhe que mandasse a exposição para a Secretaria de Turismo.

E como no começo do verão, o documento ainda não tivesse merecido qualquer despacho, Frederico naquele ano, revigorando o seu protesto, não foi para a praia.

Estava a família, de novo, toda em Lisboa e no mesmo dia o Tio Frederico recebeu a visita dos sobrinhos mais dilectos. Vinham ambos convidá-lo, cada um para sua casa, para o jantar que davam no dia seguinte com a presença de pessoas de categoria.

Ambos faziam questão na sua presença. O Tio Frederico admirou-se da coincidência – logo os dois com jantares de festa no mesmo dia! – Compreendem – dizia o tio – não me posso dividir! Juntem os jantares ou mudem a data de um!

Mas não era possível. De qualquer dos lados já estava a combinação feita havia dois dias e não se podia modificar as coisas assim de repente. Os convidados eram de cerimónia.

Cada um dos sobrinhos insistia por que o tio se decidisse por ele. Tentaram vários critérios: o da importância social dos convidados; o da idade dos sobrinhos; até o grau de amizade do tio por eles.

Mas Frederico não se queria decidir: - Não, não! Adiem um dos jantares e vou aos dois, senão não vou a nenhum, embora isso muito me custe.

Mas não podia ser, já se sabia. Quase se zangaram.

O tio não se decidia e os dois sobrinhos resolveram retirar-se, deixando ao seu critério a escolha do convite. Frederico ficou, com efeito, hesitante sem saber o que fazer.

* * *

No dia seguinte, à hora do jantar, cada um dos sobrinhos aguardava a chegada do tio. Cada um deles alimentava vagamente a esperança de que o tio se decidira por ele. O seu talher estava na mesa. Os convidados já tinham chegado e ambos anunciaram a provável vinda do tio.

Mas à hora em que o jantar devia ser servido, um telefonema veio preveni-los de que o tio não podia comparecer. Era a Gertrudes, a velha governante, a avisar que o tio adoecera de repente, à tardinha, e não podia ir ao jantar,

Os sobrinhos compreenderam a delicadeza e sorriram. Os jantares começaram.

Mas meia hora depois novos telefonemas da Gertrudes vieram alarmar as casas dos sobrinhos. O tio piorara. Estava com o médico à cabeceira e pedia a comparência deles.

A coisa então era verdade! Um tanto alarmados, cada um dos sobrinhos desculpou-se dos seus convidados e correu a casa do tio, às Olarias.

Quando chegaram deram de facto com Frederico estendido no leito, pálido como um círio, e com o médico à cabeceira. O tio a muito custo, balbuciou-lhe uma desculpa: - Bem viam, naquele estado era-lhe impossível ir a casa de um ou de outro. E num murmúrio: - Contem-lhes a aventura da pirâmide.

O médico explicou-lhes que tinha sido um colapso cardíaco ocorrido naquela tarde. O estado era grave, deviam estar preparados para o pior.

Os sobrinhos, com os olhos marejados, olharam-se compreensivamente. Ainda na véspera estava tão bem! Como a vida era frágil...

E foram para os seus convidados contar-lhes a aventura do tio, quando um dia, no Egipto, ia a caminho da pirâmide de Keops.

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O Tio não resistiu ao ataque cardíaco e apagou-se no dia seguinte.

Mas da cabeça dos sobrinhos nunca mais saiu a ideia acertada de que o Tio Frederico adoecera de hesitação e deixara-se finar só para não desgostar um deles com a preferência que tinha de dar ao outro.

* * *

Os leitores não ficam agora convencidos que uma vida destas merecia bem ser tratada pela pena privilegiada de um dos grandes escritores que eu ao princípio citei com tanta erudição?

Cícero Galvão

Dezembro de 1951

A PENSÃO DE MRS. DURLING

Naquele ano, não muito longínquo, tive que passar três meses – três bons e inesquecíveis meses – na linda e vetusta cidade de Coimbra. Essa oportunidade encheu-me de contentamento e antes de partir fui avistar-me com um amigo meu, antigo veterano consagrado da Lusa Atenas, para que me recomendasse à proprietária de uma pensão particular que ele muito gabava em todas as suas conversas saudosistas dos seus tempos de estudante.


Esse meu velho amigo passou-me o cartão, com grande alegria por me ser prestável e pela oportunidade de escrever umas linhazinhas amáveis a Mrs. Durling, a dona da casa que com fino gosto inglês governava aquela tão simpática pousada.

Mrs. Durling não é inglesa de origem – explicou-me o meu velho amigo – É viúva do antigo leitor inglês da Faculdade de Letras, o Dr. Durling, grande amigo das coisas portuguesas, como provou pelo seu casamento. Mas infelizmente não chegou a estar casado um ano, pois finou-se muito novo de uma febre tifóide.

A mulher, nada e criada em Coimbra, depressa adquiriu os hábitos fleugmáticos do marido e pouco tempo depois de enviuvar, como fosse insuficiente a mesada que o governo inglês lhe concedeu, começou a dar pensão a pessoas de respeitabilidade, em regra recomendados por catedráticos, antigos amigos ou admiradores do defunto marido.

Os hóspedes eram sempre poucos – quatro, o máximo cinco – pois a elegante moradia não tinha muitas divisões e Mrs. Durling conservava religiosamente os desafogos da habitação: o escritório, uma casa de estar e uma sala de visitas, cheias de comodidade inglesa e de muitas gravuras antigas lindamente emolduradas, a cobrir as paredes.

Era esse o ambiente que me convinha para passar os três meses de serviço na bela cidade do Mondego. E, na realidade, quando me instalei na casa de Mrs. Durling, depois de ter exibido o amável bilhete do meu amigo coimbrão, verifiquei com agrado que o ambiente correspondia inteiramente à expectativa. O meu generoso amigo ainda me havia recomendado: - O nome dela pronuncia-se “darling” com a fechado. Não confundas com “dárling”. Mas podes tratá-la por “darling”, desde que ela te dê consentimento.

Mrs. Durling também correspondeu à expectativa. Devia ter quarenta e tantos anos bem conservados, era atlética, sem deixar de ser muito feminina, amava os desportos, nadava muito no verão, fazia ginástica no Inverno e todos os dias, com calor ou com frio, logo ao levantar tomava duche forte muito frio. O inglês, a meu ver, tivera bom gosto.

Os hóspedes, com a minha entrada, passaram a ser cinco. Os criados eram quatro – a cozinheira, a criada de quartos, a que servia à mesa e um rapaz para voltas. A própria Mrs. Durling, como excelente dona de casa, era quem todos os dias tratava dos abastecimentos no mercado e determinava o menu das refeições.

Por virtude dos meus afazeres, em geral, comia sempre a deshoras, o que transtornava os hábitos da casa e, por isso, raras vezes via os meus companheiros de pensão.

Mas logo nos primeiros dias calhou estarmos todos reunidos ao fim do almoço e Mrs. Durling, gentil e solene, fez as apresentações: O Coronel Azevedo, reformado de artilharia e que se tinha ali aposentado; o Dr. Luís, licenciado em medicina que andava seriamente preocupado à procura de tema para uma comunicação que tinha sido convidado a fazer no “Circulo Médico-Cirúrgico”; O Engenheiro Silveira, das Obras Públicas, e o Dr. Veloza, o único estudante, que vagamente frequentava farmácia.

Mrs. Durling presidia sempre às refeições na mesa comprida da sóbria sala de jantar e nas raras vezes que jantei com tão agradáveis companheiros tive ocasião de observar como a anfitriã sabiamente lançava o “leit motiv” da conversa que conduzia e dominava, conversa que tratava, em regra, de política, arte, literatura e até de ciência.

Nesta última matéria quem pontificava mais era o médico, o Dr. Luís, que não havia meio de se decidir quanto ao tema da conferência.

Num fim de tarde em que eu, cansado, fui repousar a vista, durante uns minutos, nos dilatados panoramas que se avistam do Penedo da Saudade, encontrei lá, a estudar, o Dr. Luís. No regresso para casa falámos dos nossos simpáticos companheiros.

Fiquei então a saber que o Coronel Azevedo tinha sido praticamente o fundador da Pensão. Com efeito, fora o seu primeiro hóspede, constava mesmo que, no princípio, financiara a casa e – diziam – que a sua mensalidade era bastante mais elevada que a dos outros. Era um tanto agachado. A idade, uma bronquite asmática e um impertinente hemorroidal, obrigavam-no a ter um regime especial e não raro se sabia que Mrs. Durling tinha ido urgentemente, de noite, ao quarto dele para acudir a qualquer crise.

Assim o explicavam as criadas contristadas, pois a senhora, de manhãzinha quando saía dos aposentos do coronel, após uma noite de vigília, e se dirigia para o duche frio, esclarecia que o mesmo tinha passado a noite muito mal. “Tinha dado uma noite horrível” na sua expressão quase maternal.

Também tomei conhecimento, quanto ao Silveira, o Engenheiro das Obras Públicas, que tinha uma queda muito especial por Mrs. Durling e uns ciúmes terríveis do coronel, absolutamente injustificados, por causa das atenções especiais que a dona da casa lhe dedicava por virtude dos seus padecimentos.

No que respeita ao Veloza, já não se sabia há quantos anos cursava farmácia. Era da Madeira, o pai tinha uma botica na sede de um concelho do campo e raros anos se decidia a comparecer aos actos, pois como tinha uma inspirada veia poética, por essa agitada época do ano lectivo, perdia o melhor do seu tempo a compor poemas dedicados aos colegas para os álbuns de fim de curso e a fazer versos para as festas da queima das fitas.

Não tinha, assim, tempo para se preparar para os actos e quando chagava à botica do pai, na Madeira, desculpava-se com um certo nervosismo que não lhe dava a coragem necessária para se apresentar aos exames; que queria ir sempre bem preparado; que para o ano arrancaria uma nota melhor, etc., etc.

O pai boticário, zangado, ameaçava cortar-lhe os estudos, mas no fim das férias sempre lhe dava o dinheiro necessário para as matrículas e para uma 2ª classe no “Lima” ou “Carvalho”, uns cestos com belos cachos de bananas e umas caixas de Madeira velho (de que ainda cheguei a provar e que era uma maravilha) para os primeiros presentes e para consumo próprio.

Uma noite agravaram-se subitamente os padecimentos do Coronel Azevedo. Mrs. Durling já lhe havia acudido, como era costume, mas como a indisposição se agravasse de forma alarmante, viu-se obrigada a acordar as criadas e a chamar o Dr. Luís. O ruído dos passos no corredor, embora abafados, despertaram-me. Palpitei o que se passava.

Levantei-me e, de roupão, avancei até ao quarto do coronel, onde já se encontravam todos os hóspedes com excepção do Engenheiro Silveira.

O Coronel Azevedo, pálido e cheio de suores frios, contorcia-se com dores. O Dr. Luís, sentado na cama, já diagnosticara uma violenta cólica em determinado sítio, e solicitara um comprimido de qualquer anestésico, para tentar eliminar a dor. O Veloza correra ao quarto em busca do remédio e, lesto, apresentou-se de novo com um tubo de comprimidos em punho e um copo de água. O Dr. Luís preparava-se para lhe ministrar um comprimido e chegava-o à boca do paciente juntamente com água, mas o coronel negava-se a ingerir a droga e agitando-se convulsivamente no leito e aos gritos, tentava pôr-se em posição decúbito dorsal, pedindo com insistência que lhe aplicassem o comprimido directamente, pois só assim lhe faria bem.

Ficámos todos admirados, até o médico, que cedendo aos gritos do coronel, que mais eram vozes de comando, pousou obedientemente o copo de água na mesinha de cabeceira e preparou-se para lhe aplicar os comprimidos directamente no sítio dolorido.

Saímos todos do quarto, menos o médico é claro, e aguardámos, no corredor ansiosamente, o resultado da terapêutica. Os gemidos do coronel deixaram de se ouvir e passado pouco tempo saiu também o Dr. Luís, radiante, que informou a assistência de que após a aplicação seguida de três comprimidos a dor cessara por completo.

Era tardíssimo. Fomos dormitar um pouco até o amanhecer. E ao pequeno almoço desse dia o Dr. Luís, esfusiante, declarou aos circunstantes que encontrara o assunto para a sua comunicação ao “Círculo Médico-Cirúrgico” que se intitulava assim: “Um caso de eliminação total da proctalgia pela aplicação objectiva de comprimidos de Dimetilamina-fenildimetil-pirazolona-dietilmalonilúria”.

A comunicação causou um sucesso extraordinário.

O Dr. Luís foi muito felicitado e viu-se forçado a repetir a conferência em várias assembleias e numerosos centros de investigação científica do estrangeiro pediam-lhe insistentemente esclarecimentos sobre a técnica exacta da terapêutica para tal acidente.

Não obstante as melhoras do coronel, Mrs. Durling, que considerou aquela cólica inoportuna e provocadora de um escândalo, entendeu que ele estaria melhor numa casa de saúde. E, com efeito, passados poucos dias, o coronel despediu-se de todos e saiu da pensão.

Depois do coronel sair, Mrs. Durling reuniu a criadagem e deu instruções: O coronel deixara de ser seu hóspede; para o seu quarto mais amplo e mais cómodo passava o Engenheiro Silveira. E como este sofria também de lumbago e reumatismo, por vezes talvez precisasse dos seus cuidados de enfermagem. Portanto, se algum dia a vissem entrar ou sair do quarto do Engenheiro, não deviam estranhar e ficavam prevenidas desde já de que era expressamente proibido murmurar sobre o assunto sob pena de irem “para o olho da rua”.

Quando a criada dos quartos, em grande confidência, me contou isto, não quis acreditar que a fleugmática e correcta Mrs. Durling tivesse proferido semelhante plebeísmo. Mas a criadita garantiu-me e jurou-me pela alma de seus antepassados que ela dissera mesmo assim: “olho da rua!”. Ao jantar desse dia, apesar de nada ter alterado no ambiente, pelo menos de forma visível, notei que o Engenheiro Silveira, com uma expressão optimista que nunca lhe vira, intencionalmente, mas muito bem disfarçado, tratava a dona da casa por “Mrs. Darling” em vez de “Mrs. Durling”, pronunciando, como ela fazia questão a vogal fechada.

A casa de banho da Pensão de Mrs. Durling, era uma casa de banho vulgar, mas bem apetrechada. Somente a aparelhagem eléctrica para a água quente não funcionava bem com certa frequência. Além dos móveis, aparelhos, instrumentos e utensílios próprios de tal divisão fundamental, havia na parede um vulgar bloco de folhas de papel, suspenso engenhosamente por um cordel ligado a um lápis que ficava dependurado, de forma que quando se pegava no lápis e o puxávamos para nós, o bloco subia e ficava à altura conveniente para nele se escrever. No alto da primeira página do bloco está sempre escrito isto: “Rogo aos meus queridos hóspedes que anotem aqui os seus banhos”. Era um processo na verdade prático, correcto e confidente para a dona da pensão tomar nota dos banhos tomados por cada hóspede e passar a respectiva conta no fim do mês.

Já me tinha constado que o poeta Veloza aproveitava frequentemente aquele bloco e respectivo lápis para escrever os seus melhores versos, pois, creio que ainda não o disse, era justamente quando estava na casa de banho que lhe chegavam os momentos de maior inspiração.

No entanto, nunca notara nada escrito no bloco, quando, muito honestamente, assentava nele os meus banhos.

Mas certa manhã, precisamente num dia em que a água quente não funcionava e o duche foi assim uma coisa um tanto desagradável, nem quente nem frio, ou um pouco quente alternado com um muito frio, quando ia fazer o risquinho do banho, notei que lá estava escrito, pela letra do Veloza, este primor:

Eu abri da água quente
A respectiva torneira.
Vinha fria, de maneira
Que a dita torneira mente!
E para minha arrelia
Tomei duche de água fria!

Achei graça e passei todos os dias a olhar com mais atenção para o precioso bloco, onde figuravam os nomes dos hóspedes e risquinhos adiante, pelos quais se poderia saber o grau de higiene de cada um.

O facto passou despercebido ao ilustre poeta conterrâneo dos meus leitores e uma bela manhã, mal entrei na casa de banho, mirei o valioso bloco, como de costume, à espera de encontrar outra joiazinha. E, com efeito, deparei com esta:

Ó Luís licenciado,
Segundo está registado
Tu és o mais asseado
E o mais javardo sou eu!

E na verdade assim era, conforme testemunhava o bloco estatístico, autêntico índice do asseio dos hóspedes da pensão.

Mas, de repente, senti qualquer coisa de estranho em mim. Não estava virado para o espelho, mas tenho a certeza de que as minhas feições se alteraram profundamente.

Devia ter ficado extremamente pálido, com olheiras, os cabelos deviam ter crescido instantaneamente em grande e revolta guedelha a cobrir-me por completo a nuca, as mãos emagreceram, as unhas perderam o brilho. Enfim, devia ter ficado com um aspecto de um autêntico poeta. E animado, não sei por que forças, peguei no lápis e a minha mão, que não eu, escreveu no bloco os seguintes versos, à laia de comentário aos que estavam escritos:

Ó Poeta de eleição,
Ó vate de que tamanho
Que Camões num canto mete,
Quando tens inspiração?
Quando despes o roupão,
Quando te enfias no banho
Ou quando estás na retrete?

Caí em mim e voltei à normalidade. Não fui eu, com certeza, o autor daquela poesia que se não poderá classificar de muito bom gosto. Na minha vida nunca rimei duas palavras, a não ser por acaso na minha prosa rude e bárbara.

Fiquei sempre com a impressão de que o espírito de algum Poeta de eleição, daqueles que tanto viveram, tanto amaram e tanto cantaram Coimbra, pairava por ali e pegara na minha mão para traçar aquela ironia.

A minha estadia em Coimbra estava a terminar, infelizmente, e passados poucos dias retirei-me.

Mas estou ainda hoje firmemente convencido de que se fosse hóspede durante mais alguns meses da Pensão de Mrs. Durling e continuasse a frequentar aquela casa de banho, acabaria por ganhar, de certeza, o prémio de Poesia da Academia Nacional de Literatura.


Cícero Galvão
Dezembro de 1952