No largo corredor da sua casa solarenga, Pacheco passeava nervosamente já havia umas longas horas. Há alguns dias que sua extremosa esposa esperava, de um momento para o outro, o primeiro fruto do casal, mas o acontecimento estava difícil de se dar.
O Dr. Costa, velho médico da casa, que há mais de quarenta anos assistia ao nascimento e passava as certidões de óbito de todos os membros da família Pacheco, garantira que a “coisa” devia dar-se no princípio da semana mas já se estava no sábado e nada!
Debalde Pacheco passeava no longo corredor da sua casa provinciana, no clássico transe, e o silêncio terrível não havia meio de ser cortado pelo choro alegre de um recém-nascido.
O Dr. Costa saiu do quarto, congestionado, atravessou apressadamente o corredor, lançando a Pacheco um sorriso amarelo e desapareceu. Passado pouco tempo voltou acompanhado do cirurgião do hospital da Misericórdia e de enfermeiros que traziam o ferramental necessário a uma intervenção cirúrgica.
O futuro pai, lívido, cessou de passear, encostou a cabeça à parede fria e não se sabe quanto tempo esteve naquela posição.
Despertou quando ouviu abrir a porta e saírem do quarto os gritos esperançosos dum pimpolho. O Dr. Costa apareceu-lhe de braços abertos: - Parabéns, parabéns, o rapaz chegou atrasado mas sempre chegou!
Pacheco Filho tinha vindo a este mundo com um atraso de cinco dias, pelo menos, e após uma penosa e hábil cesariana.
* * *
Pacheco Filho foi débil – os dentinhos vieram-lhe tarde e só andou à beira dos dois anos.
Quando chegou à idade escolar custava-lhe a sair da cama, por ser friorento, e chegava ao colégio sempre tarde.
Foi um castigo para fazer a instrução primária e o liceu. Foi à custa de colégios caros, explicadores exigentes, bilhas de azeite e barris do melhor vinho das propriedades do pai que Pacheco Filho acabou o curso dos liceus na idade em que se é chamado a cumprir os deveres militares. Neste aspecto Pacheco Filho ia sendo dado por refractário - como sempre, no dia da inspecção chegou atrasado.
Valeu-lhe um pedido do tio avô, o coronel Pacheco, de muito prestígio nos meios militares.
Depois deste incidente Pacheco Filho tentou empregar-se. O pai arranjou-lhe um lugar de amanuense no cartório da vila.
Mas a breve trecho o Dr. Camacho, o notário, procurava solenemente Pacheco pai no solar da família e explicava-lhe que o rapaz não tinha vocação para aquilo. Por mais de uma vez cometera graves erros ao copiar escrituras do “Livro de Notas para Actos e Contratos entre Vivos” e sobretudo não era pontual, falta imperdoável para aquele emprego onde tudo se fazia com horas marcadas. Que não visse daquela informação má vontade mas devia dar-se outro destino ao rapaz. Atrevia-se até a dar um conselho – o rapaz que se dedicasse aos negócios. Capital não lhe faltava, era uma actividade independente, podia chegar a qualquer hora ao escritório…
A despedida do Dr. Camacho foi fria mas…Pacheco pai ficou a pensar maduramente no caso. Não havia dúvida, aquela falta de pontualidade do filho não lhe permitia seguir qualquer carreira. E no seu foro íntimo resolveu estabelecê-lo na vila com comércio geral, na primeira oportunidade.
* * *
Havia dois anos que Pacheco Filho se enamorara da Isabelinha, filha de amigos da família, casamento de muito agrado dos pais.
Dirigia agora molemente a casa comercial que o pai lhe montara e os sentimentos do amor, que aparecem na primavera e na adolescência, tinham-no invadido, embora tardiamente.
O casamento estava ajustado, os noivos formavam um amoroso par, não lhes faltando projectos e ilusões.
Apenas as frequentes vezes que Pacheco Filho chegava tarde aos encontros e à hora do namoro, toldavam aquele idílio.
Isabelinha enervava-se de esperar. Noite em que ele chegasse tarde encontrava-a triste e fria. Levava tempo a passar a nuvem.
Em vão Isabelinha lhe pedia que se emendasse, que fosse pontual, que a não fizesse sofrer. Pacheco prometia, prometia...mas não tinha forças, aquilo era superior à sua vontade, e cada vez chegava mais atrasado.
Um dia Isabelinha, quando a demora foi demasiada, perdeu a cabeça. Era demais. Ou ele se corrigia ou era preferível acabar com tudo. Pacheco chorou – mas não se emendou!
O dia do casamento foi marcado, e o noivo devia estar ao meio dia em ponto na Igreja.
Na véspera, Isabelinha, os futuros sogros, os pais e os amigos tinham-lhe recomendado, insistentemente, que desta vez fosse pontual.
Pacheco deitou-se com essa preocupação mas no dia seguinte tudo começou a correr ao contrário. Aquele dia de Dezembro amanheceu extraordinariamente frio e Pacheco começou por se levantar extraordinariamente tarde. Faltou a água para o banho quente, a velha criada não tinha posto toda a roupa em ordem, por fim não se sabia do botão do colarinho. Já haviam batido as doze badaladas do meio dia do relógio da torre e Pacheco estava ainda por vestir. Noiva, padrinhos e convidados esperavam na Igreja com preocupação.
O tempo corria velozmente, Isabelinha mostrava impaciência.
O carrilhão batia sonoramente os quartos de hora e Pacheco não aparecia.
A noiva teve uma crise de nervos. Perante o espanto de todos declarou que desistia do casamento e exigiu que o pai a levasse rapidamente para casa.
Quando Pacheco chegou encontrou a Igreja triste e deserta. Onde estavam a noiva, os amigos, as flores, os acordes duma marcha nupcial?
Apenas o bondoso padre Camilo, junto ao altar-mór, esperara por ele.
Fez-lhe um lento aceno com a cabeça em sinal de reprovação.
Num instante, Pacheco compreendeu tudo.
Beijou a mão do padre, fez o sinal da cruz e, envergonhado, abalou da Igreja numa corrida desordenada.
Correu, correu, sem destino, com a cabeça repleta de ideias confusas.
Sentia-se um homem desgraçado, vencido, vexado por aquele complexo de inferioridade, que não lhe permitia chegar a horas a qualquer parte.
Pareceu-lhe ouvir um silvo de comboio. Um pensamento horrível lhe atravessou o cérebro. De facto, o comboio da uma da tarde devia estar a passar. O caminho de ferro ficava ainda a um quilómetro. Sempre numa corrida louca só lhe apetecia desaparecer de tudo e de todos. Acelerou a corrida – estava decidido, iria pôr termo à vida. Só queria esmigalhar-se contra o comboio. Já avistava a linha e a máquina do monstro a aparecer numa curva. Num esforço sobrehumano Pacheco vencia as últimas dezenas de metros que o separavam dos carris.
Mas o comboio, em grande velocidade, numa massa negra, fugidia, que a seus olhos parecia cheia de linhas horizontais, passou, como um meteoro, na sua frente.
Quando Pacheco caiu, exausto, sobre os carris de ferro, já tinha passado a última carruagem.
* * *
Salvou-lhe a vida, desta vez, o seu trágico destino de chegar sempre atrasado.
Cícero Galvão
Dezembro de 1949
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