Os contos e crónicas recolhidos neste blog foram todos publicados no jornal “Re-nhau-nhau”, trimensário humorístico do Funchal, nos números do seu aniversário, coincidente com a época do Natal. Recolheram-se 36 contos e crónicas publicados no jornal nas edições dos meses de Dezembro dos anos de 1946 a 1977.

Partida para o Funchal em 1946

O HOMEM QUE CHEGAVA SEMPRE ATRASADO

No largo corredor da sua casa solarenga, Pacheco passeava nervosamente já havia umas longas horas. Há alguns dias que sua extremosa esposa esperava, de um momento para o outro, o primeiro fruto do casal, mas o acontecimento estava difícil de se dar.

O Dr. Costa, velho médico da casa, que há mais de quarenta anos assistia ao nascimento e passava as certidões de óbito de todos os membros da família Pacheco, garantira que a “coisa” devia dar-se no princípio da semana mas já se estava no sábado e nada!

Debalde Pacheco passeava no longo corredor da sua casa provinciana, no clássico transe, e o silêncio terrível não havia meio de ser cortado pelo choro alegre de um recém-nascido.

O Dr. Costa saiu do quarto, congestionado, atravessou apressadamente o corredor, lançando a Pacheco um sorriso amarelo e desapareceu. Passado pouco tempo voltou acompanhado do cirurgião do hospital da Misericórdia e de enfermeiros que traziam o ferramental necessário a uma intervenção cirúrgica.

O futuro pai, lívido, cessou de passear, encostou a cabeça à parede fria e não se sabe quanto tempo esteve naquela posição.

Despertou quando ouviu abrir a porta e saírem do quarto os gritos esperançosos dum pimpolho. O Dr. Costa apareceu-lhe de braços abertos: - Parabéns, parabéns, o rapaz chegou atrasado mas sempre chegou!

Pacheco Filho tinha vindo a este mundo com um atraso de cinco dias, pelo menos, e após uma penosa e hábil cesariana.

* * *

Pacheco Filho foi débil – os dentinhos vieram-lhe tarde e só andou à beira dos dois anos.

Quando chegou à idade escolar custava-lhe a sair da cama, por ser friorento, e chegava ao colégio sempre tarde.

Foi um castigo para fazer a instrução primária e o liceu. Foi à custa de colégios caros, explicadores exigentes, bilhas de azeite e barris do melhor vinho das propriedades do pai que Pacheco Filho acabou o curso dos liceus na idade em que se é chamado a cumprir os deveres militares. Neste aspecto Pacheco Filho ia sendo dado por refractário - como sempre, no dia da inspecção chegou atrasado.

Valeu-lhe um pedido do tio avô, o coronel Pacheco, de muito prestígio nos meios militares.

Depois deste incidente Pacheco Filho tentou empregar-se. O pai arranjou-lhe um lugar de amanuense no cartório da vila.

Mas a breve trecho o Dr. Camacho, o notário, procurava solenemente Pacheco pai no solar da família e explicava-lhe que o rapaz não tinha vocação para aquilo. Por mais de uma vez cometera graves erros ao copiar escrituras do “Livro de Notas para Actos e Contratos entre Vivos” e sobretudo não era pontual, falta imperdoável para aquele emprego onde tudo se fazia com horas marcadas. Que não visse daquela informação má vontade mas devia dar-se outro destino ao rapaz. Atrevia-se até a dar um conselho – o rapaz que se dedicasse aos negócios. Capital não lhe faltava, era uma actividade independente, podia chegar a qualquer hora ao escritório…

A despedida do Dr. Camacho foi fria mas…Pacheco pai ficou a pensar maduramente no caso. Não havia dúvida, aquela falta de pontualidade do filho não lhe permitia seguir qualquer carreira. E no seu foro íntimo resolveu estabelecê-lo na vila com comércio geral, na primeira oportunidade.

* * *

Havia dois anos que Pacheco Filho se enamorara da Isabelinha, filha de amigos da família, casamento de muito agrado dos pais.

Dirigia agora molemente a casa comercial que o pai lhe montara e os sentimentos do amor, que aparecem na primavera e na adolescência, tinham-no invadido, embora tardiamente.

O casamento estava ajustado, os noivos formavam um amoroso par, não lhes faltando projectos e ilusões.

Apenas as frequentes vezes que Pacheco Filho chegava tarde aos encontros e à hora do namoro, toldavam aquele idílio.

Isabelinha enervava-se de esperar. Noite em que ele chegasse tarde encontrava-a triste e fria. Levava tempo a passar a nuvem.

Em vão Isabelinha lhe pedia que se emendasse, que fosse pontual, que a não fizesse sofrer. Pacheco prometia, prometia...mas não tinha forças, aquilo era superior à sua vontade, e cada vez chegava mais atrasado.

Um dia Isabelinha, quando a demora foi demasiada, perdeu a cabeça. Era demais. Ou ele se corrigia ou era preferível acabar com tudo. Pacheco chorou – mas não se emendou!

O dia do casamento foi marcado, e o noivo devia estar ao meio dia em ponto na Igreja.

Na véspera, Isabelinha, os futuros sogros, os pais e os amigos tinham-lhe recomendado, insistentemente, que desta vez fosse pontual.

Pacheco deitou-se com essa preocupação mas no dia seguinte tudo começou a correr ao contrário. Aquele dia de Dezembro amanheceu extraordinariamente frio e Pacheco começou por se levantar extraordinariamente tarde. Faltou a água para o banho quente, a velha criada não tinha posto toda a roupa em ordem, por fim não se sabia do botão do colarinho. Já haviam batido as doze badaladas do meio dia do relógio da torre e Pacheco estava ainda por vestir. Noiva, padrinhos e convidados esperavam na Igreja com preocupação.

O tempo corria velozmente, Isabelinha mostrava impaciência.

O carrilhão batia sonoramente os quartos de hora e Pacheco não aparecia.

A noiva teve uma crise de nervos. Perante o espanto de todos declarou que desistia do casamento e exigiu que o pai a levasse rapidamente para casa.

Quando Pacheco chegou encontrou a Igreja triste e deserta. Onde estavam a noiva, os amigos, as flores, os acordes duma marcha nupcial?

Apenas o bondoso padre Camilo, junto ao altar-mór, esperara por ele.

Fez-lhe um lento aceno com a cabeça em sinal de reprovação.

Num instante, Pacheco compreendeu tudo.

Beijou a mão do padre, fez o sinal da cruz e, envergonhado, abalou da Igreja numa corrida desordenada.

Correu, correu, sem destino, com a cabeça repleta de ideias confusas.

Sentia-se um homem desgraçado, vencido, vexado por aquele complexo de inferioridade, que não lhe permitia chegar a horas a qualquer parte.

Pareceu-lhe ouvir um silvo de comboio. Um pensamento horrível lhe atravessou o cérebro. De facto, o comboio da uma da tarde devia estar a passar. O caminho de ferro ficava ainda a um quilómetro. Sempre numa corrida louca só lhe apetecia desaparecer de tudo e de todos. Acelerou a corrida – estava decidido, iria pôr termo à vida. Só queria esmigalhar-se contra o comboio. Já avistava a linha e a máquina do monstro a aparecer numa curva. Num esforço sobrehumano Pacheco vencia as últimas dezenas de metros que o separavam dos carris.

Mas o comboio, em grande velocidade, numa massa negra, fugidia, que a seus olhos parecia cheia de linhas horizontais, passou, como um meteoro, na sua frente.

Quando Pacheco caiu, exausto, sobre os carris de ferro, já tinha passado a última carruagem.


* * *

Salvou-lhe a vida, desta vez, o seu trágico destino de chegar sempre atrasado.



Cícero Galvão
Dezembro de 1949

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