De cabeça caída sobre o peito, pendente sobre as orelhas e a nuca uma cabeleira grande acinzentada, de bigode grande, cobrindo-lhe a boca como uma cortina, não lhe deixando ver os dentes amarelos, de mãos muito magras com dedos finos, de unhas bem tratadas, alto como um círio e corcovado com o peso de muitos lustres, fisicamente o Sequeira era assim.
Muito observador, investigador incansável, numismata distinto e activo sócio do “Grupo de Arqueologia” – intelectualmente era assim o Sequeira.
Profissionalmente o Sequeira era funcionário público aposentado, tendo exercido com muita dedicação e zelo durante mais de 40 anos o lugar de 1º conservador do antigo “Arquivo Geral de Numismática e Filatelia” e estava satisfeito com a recente melhoria da sua pensão.
Era, também, muito supersticioso. Não podia ver uma tesoura aberta que não corresse logo a fechá-la.
- Corta-nos a felicidade! – dizia enquanto a fechava.
Uma cadeira de costas para a mesa, um chapéu em cima da cama, calçar uma meia do avesso, passar por debaixo de uma escada, acender três cigarros com o mesmo fósforo, ver um homem de raça diferente da sua, etc. etc. constituíam factos que muito o preocupavam quando lhe sucediam e que o levavam – para quebrar o enguiço – a cuspir três vezes em cruz.
O Sequeira não era hipócrita e confessava sinceramente as suas apreensões aos amigos.
- Oh filhos! – dizia-lhes ele, às vezes, à mesa do café – a estas minhas apreensões a que vocês chamam superstições – continuava ele triunfante – chamo eu “o ritmo das coincidências”.
E explicava:
- Sim, meninos, as ciências observam fenómenos ou factos, as suas causas e os seus efeitos e determinam as suas leis.
E precisava:
- Observou-se que os corpos abandonados caíam para a terra. Os corpos sozinhos não executam movimentos, concluiu-se que alguma força os obrigava a cair – foi assim que se descobriu a atracção da Terra sobre os corpos – a gravidade. Portanto foi a observação destas e doutras coincidências que levou o homem às maiores descobertas em todos os campos científicos!
E o Sequeira, satisfeito com o seu raciocínio que todos seguiram com atenção, espalmando a mão comprida e fina de dedos amarelados pela nicotina de mau tabaco, afirmava:
- “Isto” é científico! Estudei já suficientemente a repetição de determinados factos e as suas consequências, que posso tirar conclusões certas, tão rigorosas como as que nos dão por exemplo, a Estatística!
Evidentemente que ao Sequeira aconteciam coisas que lhe davam azar, outras lhe sucediam que lhe causavam sorte. O Sequeira já tinha tudo isso devidamente classificado e dentro destas últimas destacava-se a seguinte: quando viajava de eléctrico ou de combóio o número do bilhete ser capicua.
* * *
Sentado à mesa da casa de jantar, defronte do seu quotidiano café com leite, o Sequeira desdobrou o jornal, como era seu hábito todas as manhãs.
- Já sabes a novidade? perguntou-lhe a mulher.
- O que há? – Respondeu o Sequeira, molhando o bigode no café com leite que levava à boca.
- O Sousa da Farmácia, está doente. Adoeceu ontem de repente em Sintra, em casa da filha. Tens de ir vê-lo.
O Sequeira não podia faltar a esse sagrado dever. O Sousa, coitado, que se interessava sempre pelas suas miudezas e preparava com tanto cuidado os papeizinhos de bicarbonato de sódio para as suas indisposições de estômago. Iria vê-lo naquele mesmo dia.
- Vou já agora de manhã a Sintra ver o Sousa, disse ele à mulher numa decisão.
* * *
Comprou um bilhete de 3ª classe na Estação do Rossio e, já na carruagem, dava voltas ao pequeno bilhete de cartão azul-pardo quando reparou no número.
Mas era uma capicua, não havia dúvida!
Tanto se lia da esquerda para a direita como da direita para a esquerda. Era o mesmo número para qualquer dos lados!
O Sequeira não queria acreditar naquele prenúncio de felicidade, mas de repente lembrou-se que o empregado da Estação, em Sintra, ficava com os bilhetes à saída dos passageiros.
O combóio já largara e o Sequeira levou toda a viagem a dar voltas à imaginação para ver se descobria a forma de ficar com o bilhete. – Pedi-lo muito simplesmente ao empregado que estivesse à porta? Mas isso era ridículo... Era vergonhoso... Não encontrava solução e estava a chegar a Sintra.
O combóio estacou e os passageiros precipitaram-se para a saída. Lá estava o empregado na porta a receber, um por um, os bilhetes dos passageiros. Não escapava nenhum. Se o Sequeira saísse por ali ficava sem a capicua, era garantido.
O Sequeira olhou ao longo do cais, tentando lobrigar uma saída salvadora. Com efeito, no lado esquerdo, lá ao fundo, numa confusão de linhas de um desvio, havia uma cancela de ferro, de lanças aguçadas que dava para a estrada.
Numa correria o Sequeira aproximou-se daquela saída clandestina que lhe garantia a posse do bilhete da sorte. Trepou a cancela cheio de entusiasmo mas, ao lançar a perna, a calça prendeu-se numa lança que lhe fez um enorme rasgão e uma arranhadura num joelho.
Já na estrada, ciente da ilegalidade que tinha cometido, o Sequeira fugiu desordenadamente e um cão, de um guarda de uma passagem de nível que havia próximo, saltou-lhe às pernas, ladrando furiosamente.
Com as calças feitas em tiras, o Sequeira fingia atirar pedras para afastar o animal e deu outra corrida para atingir uma calçada.
Estava, enfim, na rua onde o Sousa se encontrava doente; era íngreme, no caminho da Pena. A filha do Sousa morava lá em cima. O Sequeira, desembaraçado de obstáculos, meteu-se resolutamente ao caminho.
E quando chegou ao cimo, com o peito arfando, o coração batendo fortemente, as fontes latejantes, as calças aos farrapos e as pernas ensanguentadas, o Sequeira tirou a capicua da algibeira do colete e sorriu triunfalmente.
Temos de convir que o Sequeira, na realidade, tinha começado aquele dia cheio de sorte!
Cícero Galvão
Dezembro de 1948
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