Querido Re-nhau-nhau, prezado Bichano e não menos ilustre Gato de Letras: Está a fazer um ano que te escrevi pela última vez e tinhas razão se estivesses zangado, pois ao passo que eu tenho notícias tuas três vezes por mês, e sempre alegres e lindamente ilustradas, só correspondo escrevendo-te apenas uma vez por ano.
Uma vez prometi-te solenemente que te escreveria de vez em quando uma espécie de crónica. A rubrica geral desses escritos seria mesmo “Uma crónica de vez em quando...” Tinha de ser mesmo assim - de vez em quando, porque eu não me podia comprometer com datas certas. Ah, como eu admiro aqueles colaboradores assíduos de certos jornais que em datas certas publicam pontualmente as suas crónicas. Devem possuir uma organização física e mental perfeitíssima, pois aquilo passa-se com a maior regularidade - às tantas horas de tal dia - zás!, sai crónica...
Uma vez prometi-te solenemente que te escreveria de vez em quando uma espécie de crónica. A rubrica geral desses escritos seria mesmo “Uma crónica de vez em quando...” Tinha de ser mesmo assim - de vez em quando, porque eu não me podia comprometer com datas certas. Ah, como eu admiro aqueles colaboradores assíduos de certos jornais que em datas certas publicam pontualmente as suas crónicas. Devem possuir uma organização física e mental perfeitíssima, pois aquilo passa-se com a maior regularidade - às tantas horas de tal dia - zás!, sai crónica...
Por isso te confesso que estes escritos que de há vinte e tantos anos para cá te envio todos os anos por esta data duplamente festiva para ti, escrevo-os com cuidado e dificuldade, pois tenho de os rever, burilar, e passar a ferro para que não cheguem às tuas afiadas unhas todos enrugados. Decididamente não tenho bossa para cronista... e daí, praticamente não ter cumprido a promessa de te oferecer uma crónica de vez em quando, salvo um ou outro escrito que te mandei pelo Natal e que teria sabor de crónica.
Isto faz-me lembrar um amigo meu, meio jornalista, que uma vez meteu ombros a uma publicação periódica -um semanário... Mas o jornal era quase todo escrito por ele, de forma que ele via-se em dificuldades em manter o ritmo da publicação. Frequentemente falhava a edição e o jornal por fim publicava-se só de vez em quando. O meu amigo, director do jornal, para dar mais verdade à periodicidade do mesmo, fez inscrever no cabeçalho, em sítio bem visível e de forma inequívoca, de que se tratava de um “devezenquandário”...
Pois este ano mando-te também uma crónica. Deveres profissionais levaram-me recentemente ao Brasil. Lá passei no Rio de Janeiro, Petrópolis e S. Paulo dez maravilhosos e inesquecíveis dias.
Um amigo meu brasileiro disse-me uma vez que quando vinha à Europa nunca iniciava a viagem por Lisboa. Chegava sempre em primeiro lugar a Londres ou Paris, andava por outros lados e só no regresso é que parava em Portugal. É que, dizia ele, quando chegava cá, já se sentia em casa. E era uma descontracção, um à vontade, e o trabalho que tinha cá nem o cansava... O aspecto das nossas cidades, os nossos hábitos, a mesma língua davam-lhe a sensação de já ter chegado à sua pátria, isto é, sentia-se entre nós como em sua casa. E depois de alguns dias no nosso País, dava um pulo, à noitinha, num avião da Varig ou da TAP, e chegava ao Rio de manhãzinha fresco, ambientado para começar logo a sua vida, depois de um belo chuveiro...
Pois eu também dei o pulo de noite, Lisboa - Rio, partindo à uma da manhã, numa viagem de cerca de dez horas, mas como há uma diferença de quatro horas para mais cedo no Rio, cheguei à terra dos cariocas pelas sete da manhã de um radioso domingo de Primavera brasileira.
E como de manhã é que se começa o dia, os meus colegas e amigos brasileiros deram-me logo um passeio a caminho do Hotel...
A topografia do Rio é difícil de descrever. A cidade desenvolve-se ao longo dos vales formados pelos vários morros, muitos dos quais são atravessados por largos e compridos túneis que numa audaciosa obra de urbanização ligam os vários bairros. Alguns desses túneis medem bastantes quilómetros. Debruada pelo mar, a magnífica Baía de Guanabara, sucedem-se as praias famosas e maravilhosas.
Saídos do Aeroporto do Galeão, dirigimo-nos à cidade antiga, atingindo as ruas que debruam os cais do porto, passando pelo Aeroporto Santos Dumont - o aeroporto para os vôos domésticos - mesmo chegado à cidade e à beira do mar, como o Aeroporto de Santa Catarina no Funchal. Depois passámos pela praia do Flamengo, que corre paralela à Avenida Infante D. Henrique, segue-se a praia do Botafogo, formada numa magnífica baía de águas mansas. Seguindo pela marginal passámos pela Avenida Portugal a caminho da Urca, entre o morro da Urca e morro Cara de Cão, mesmo por baixo do mundialmente célebre Pão de Açúcar, onde se pode chegar de teleférico. Depois passámos rapidamente pela Praia Vermelha e, contornando outro morro, o da Babilónia, atingimos a Praia do Leme que segue pegadinha à célebre praia de Copacabana.
Continuando a rápida digressão, passámos à Lagoa Rodrigo de Freitas, entalada entre os Morros dos Cabritos, da Saudade e do Corcovado, onde se ergue o Cristo Redentor que domina o Jardim Botânico e toda a cidade.
Visitamos o Jockey Club, com um magnífico hipódromo onde várias vezes por semana se fazem corridas de cavalos, com apostas, e seguimos depois pelo bairro chique de Leblon, que confina com a praia do mesmo nome, que pega á Praia de Ipanema, voltando depois pela Avenida Rainha Elisabeth à Praia de Copacabana.
Chegámos ao hotel às dez da manhã, depois de um passeio de três horas, graças à gentileza dos nossos anfitriões, desde o aeroporto do Galeão e com meio Rio já visto.
Durante a nossa estadia no Rio fomos acompanhados por dois guias maravilhosos - o Senhor Benedicto e a Senhora Dona Etelma. O Senhor Benedicto tem oitenta e dois anos e viveu alguns anos em Portugal quando estudava. É um poliglota, descende de portugueses - os seus apelidos são de Miranda Araújo - e apesar da sua avançada idade é de uma eficiência e dinamismo e de uma jovialidade que fariam inveja a um jovem de vinte e oito anos. A Dona Etelma é nova, casada, tem uma filha encantadora, tem o curso do magistério mas trocou as funções do ensino pelas de guia intérprete, trabalho que a encanta. Tem também grande orgulho na sua descendência portuguesa pois possui os nobres apelidos de Sarmento Alvarenga Lopes da Costa Moreira. A maior preocupação que têm é que o grupo de estrangeiros que acompanham levem a melhor impressão do Brasil e dos brasileiros. Tudo nos descrevem, tudo nos explicam pormenorizadamente.
O Brasil está, com efeito, num desenvolvimento extraordinário. Há poucas décadas era ainda um país simplesmente produtor de matérias primas que exportava e praticamente não tinha indústria. Todos os produtos manufacturados eram importados. Fortes interesses económicos internacionais opunham-se à industrialização do Brasil. Mas de há trinta ou quarenta anos para cá, tudo mudou. O Brasil produz e refina petróleo, possui siderurgias, fabrica automóveis e tem uma excelente indústria de fiação e tecelagem.
Na produção agrícola, além dos produtos tradicionais e próprios do clima, ao Sul produz excelentes vinhos que engarrafa com magnífica apresentação, a ponto de exportar milhares de garrafas, com o pormenor de ser cada uma numerada em relação ao total da colheita do ano. O seu principal cliente é a França!
Depois de um pequeno descanso no Hotel, seguimos pela mão do Senhor Benedicto e de Dona Etelma para Petrópolis.
Petrópolis fica a cerca de setenta quilómetros do Rio e constitui um microclima. Quando a canícula aperta no Rio, o carioca refugia-se em Petrópolis. Além de uma cidade cheia de tradições e com vida própria, possui inúmeras vivendas de veraneio ou para fins de semana do carioca encalorado. O Imperador D. Pedro II já lá possuía uma casa de veraneio que hoje é o Museu Imperial e onde se pode admirar a valiosíssima coroa do Imperador, além de magníficas jóias, móveis e porcelanas.
Santos Dumont, chamado o pai da aviação e orgulho dos brasileiros, cujo centenário do nascimento se celebrou este ano, também teve aqui a sua casa que hoje se visita como museu.
Um antigo e monumental Casino, rodeado de belos jardins e de um magnífico lago, devido à proibição do jogo, foi transformado num clube particular, o Santa Paula Quintandinha Club, com um magnífico restaurante, um teatro, pavilhões desportivos e até uma pista para patinagem no gelo !
Seguimos para Araras, um fresquíssimo subúrbio de Petrópolis, onde em casa amiga almoçámos uma espantosa feijoada à brasileira... Não queiras saber Re-nhau-nhau o que é a feijoada... Tu que és peixívoro por natureza eras capaz de perder a cabeça e passar um dia a lamber os bigodes depois de provares aquele feijão preto com um molho da mesma cor, a carne seca e os enchidos de várias qualidades, chouriço, paio, linguiça, acompanhados a farinha de mandioca - que sei eu ignorante da culinária brasileira?... O que vale é que se acompanha aquele prato substancial com quartos de laranja e no fim bebe-se um bom cálice de cachaça... A digestão é assim facilitada e acabamos a refeição leves e bem dispostos. Quem diria?...
Voltámos já noite ao Rio e no dia seguinte, findos os trabalhos do dia, jantámos no Hotel Nacional. Como se poderá descrever este moderníssimo hotel? Para começar, dir-te-ei que o projecto é de Oscar Niemeyer, o arquitecto de Brasília, e tem a forma de um gigantesco cilindro. Situado em frente da Praia da Gávea - o sítio dos célebres circuitos automobilísticos - dispõe de quinhentos e vinte apartamentos mobilados luxuosamente, com ar condicionado, dois telefones, televisão e rádio e um frigorífico bem recheado de refrigerantes deliciosos - maracujá, guaraná, cajú, coco, limonada, laranjada e a internacional coca-cola. O hotel dispõe de cinco restaurantes, snack-bar aberto vinte e quatro horas por dia e duas boîtes. O edifício tem trinta e quatro andares, no último dos quais há um magnífico terraço donde se contempla todo o Rio. Tem piscina, sauna, instituto de beleza, estabelecimentos comerciais e estacionamento para quatrocentos automóveis. Dispõe de um auditório com três mil lugares sentados e serviço electrónico de tradução simultânea até cinco línguas. Que arrojo de arquitectura, só vendo!
Uma noite dei uma volta ao longo da praia de Copacabana que é debruada por um magnífico passeio de empedrado português, como os de Lisboa com desenhos ondeados a preto. Ao longo da praia, aqui e além, em pleno areal, viam-se luzinhas a brilhar. Também na rua, nas valetas, junto aos passeios se vêem com frequência dessas luzinhas. Perguntei o que era a um amigo brasileiro que me acompanhava. As luzinhas são, nada mais, nada menos do que manifestações religiosas, de gente do povo que pratica religiões primitivas. Misto de religião e de superstição praticada por negros e mestiços que vivem nos morros em favelas, mesmo à beira das praias. Acendem essas luzinhas em homenagem aos seus deuses ou em pagamento de promessas. São tigelas cheias de estearina ou parafina, com um pavio, que são acesos e colocados ao ar livre, protegidos do vento para não se apagarem por uns protectores de plástico transparente. E, assim, à noite, a extensa praia de Copacabana aparece iluminada, aqui e além, com chamas bruxuleantes que nos fazem pensar.
As favelas que trepam pelos morros equivalem aos nossos bairros de lata. Vivem nas favelas do Rio centenas de milhares de pessoas. Em regra, pretos e mulatos e também brancos. Gente de trabalho humilde que vive pobremente, como acontece sempre nas grandes urbes. Não há qualquer discriminação racial e a população de cor vai-se fundindo pouco a pouco na grande massa da população branca. Um sociólogo observou uma vez que o português era o agente catalítico da brancura. Um brasileiro meu amigo, disse-me que um seu bisavô era um preto retinto da Baía, antigo escravo, trazido pelos portugueses de Angola. Este meu amigo não tem quaisquer resquícios da raça negra. Pretos e pretas casam-se com brancas e brancos, os mestiços preferem também os brancos e a raça vai-se clareando cada vez mais. A sabedoria do povo compôs um samba :
Um homem loiro
Vale um tesoiro.
Um homem escuro
Não dá futuro,
É capital parado
Que não dá juro...
O Governo do Estado de Guanabara procura resolver o tremendo problema das favelas. Perto do Rio têm-se construído milhares de prédios de tijolo para onde são transferidos os habitantes das favelas, tendo já acabado algumas destas. Nos terrenos de uma antiga favela, perto de Leblon, edificou-se um bairro chique. Então o povo chama agora esse bairro o Favelão...
Não presenciei o Carnaval do Rio. Mas no restaurante Sambão, do nosso tão conhecido Ivon Curi, onde ele está todas as noites cantando deliciosas modas brasileiras e contando saborosas anedotas, assisti à exibição de uma escola de samba. Bailarinas de bikini, com rolos de plumas ao pescoço dão largas à sua imaginação coreográfica e tremendo dos pés à cabeça, num ritmo desenfreado, dançam infatigavelmente. Homens e rapazes batem o ritmo em pandeiros que atiram ao ar, muito alto, e voltam a apanhar, fazendo-os girar vertiginosamente nas pontas dos dedos como artistas de circo. As bailarinas esculturais, pedem aos espectadores para porem as mãos nas suas cinturas finas e dançarem com elas, sentindo assim a vibração dos seus corpos. Será uma atracção turística mas tudo se passa com respeito e até mesmo dignidade artística. O samba tem inequivocamente origem africana e um amigo meu brasileiro dizia que nós portugueses é que tínhamos culpa daquilo, pelos milhares e milhares de negros que tínhamos levado para lá. Mas “mea culpa, mea culpa” pela parte que me cabe... Os negros eram precisos porque não havia mão-de-obra branca que chegasse para desbravar tão extenso território e com a miscigenação e a ausência absoluta de preconceitos raciais deu origem ao mais rico folclore que existe no mundo! A alegria contangiante do samba faz que a breve trecho todo o mundo comece a dançar.
Num jantar que nos foi oferecido numa casa particular, servido de pé devido ao elevado número de convidados, o gira-discos atacava um trepidante samba. Pois daí a bocado todos os convivas dançavam, de prato na mão, comendo o saborosissimo vatapá de marisco acompanhado de um pudim de arroz brejeiro alvíssimo de neve.
No dia seguinte pela mão do guia octogenário Benedicto fomos visitar uma exposição de pedras brasileiras. É uma das imensas riquezas desse país a gama de pedras preciosas magnificamente lapidadas e de extrema pureza. As mais belas e que existem com maior abundância no Brasil são a turqueza, a ágata, a ametista, a turmalina, a aguamarina, a esmeralda, o nobre topázio imperial e o diamante. As senhoras perdem a cabeça com a variedade de cores e formatos e a beleza da lapidação - e puxam-se os cordões à bolsa, comprando estas maravilhas muitas vezes mais baratas do que na Europa.
Quando acabámos de visitar a exposição o nosso venerando guia ofereceu-nos um magnífico catálogo que é um autêntico tratado de pedras preciosas com esta terna dedicatória: “Viajando pelo mundo se conhecem muitas pessoas a quem talvez não as reveja, todavia os agradáveis momentos passados juntos ficarão para sempre no Pensamento. Saudades de Benedicto”.
Daquele deslumbramento da exposição das pedrarias seguimos para almoçar no Restaurante Esquilo na Floresta da Tijuca. O restaurante está instalado numa antiga casa senhorial do século XVII, de amplos salões e tectos de madeira, no meio de um imenso parque luxuriante e fresco, comparável talvez com o nosso Bussaco. É mais um refúgio para os calmosos, pois a floresta da Tijuca deve ser também um microclima, onde nos dias mais quentes do Rio se refugiam os cariocas. O carioca vivendo numa cidade normalmente quente está sempre fugindo ao calor. Em certa zona da cidade o facto de se ter cortado cerce um morro, estabeleceu-se uma corrente de ar fresco que fez baixar a temperatura média daquela zona em cinco graus centígrados. A maioria das casas tem ar condicionado de forma que só nos lembramos que estamos num país quente quando saímos à rua e sentimos o bafo cálido dos trópicos.
Junto ao Rio, a cerca de quatrocentos e cinquenta quilómetros, existe outra grande metrópole, a maior do Brasil e uma das maiores do mundo - S. Paulo. Entre o Rio e S. Paulo estabeleceu-se um vai e vem de aviões a que se chama a ponte aérea. Desde manhã até altas horas da noite, entre o aeroporto Santos Dumont e o aeroporto de Congonhas há aviões de meia em meia hora. A viagem dura cerca de uma hora. Valeu a pena “atravessar” a ponte aérea para passar umas horas em S. Paulo. Vivem nesta enorme cidade cerca de oito milhões de almas, numa actividade febril, comparável às das grandes metrópoles do mundo. Quando se avista do avião a grande cidade, antes de aterrar, fica-se admirado com o número de arranha-céus que se nos deparam.
Uma volta rápida pela cidade leva-nos ao Jardim Botânico onde se encontra o Instituto Butantã, no qual se prepara o soro contra o veneno das víboras que tantas vidas tem salvo. O tempo
escasseava e continuámos o rápido passeio, visitando a cidade universitária, o hipódromo, os bairros chiques dos grandes magnates, os grandes estádios de futebol, como o do Palmeiras, do Pacaembu e do Morumbi. Passámos rapidamente pela Sé Catedral e pelo Museu de Arte Moderna e o Palácio onde se realizam as célebres bienais de S. Paulo. Passámos rapidamente pelo monumento de homenagem aos bandeirantes, de impressionante composição, e acabamos por ir tomar chá ao restaurante italiano no 43º andar - o último - do edifício Itália, o mais alto arranha-céus de S. Paulo de onde se vislumbra um maravilhoso panorama da cidade.
O tempo urgia, com S. Paulo visto à vol d'oiseau e retomamos a Ponte Aérea para regressar ao Rio onde ainda íamos jantar, mas com uma inquietante demora na partida por falta de tecto, situação que frequentemente se verifica.
De volta ao Rio, o jantar era no “Lisboa à Noite”, restaurante tipicamente português, com fados e guitarradas, para matar saudades, instalado em plena Copacabana. Uma portuguesa radicada no Rio desde criança, há mais de vinte anos, canta o fado tão bem como as melhores artistas de Lisboa.
No dia seguinte era a partida para Lisboa, ao cair da noite. Mas ainda tivemos tempo de visitar demoradamente, a convite de um ilustre deputado da Assembleia Legislativa do Estado de Guanabara, o Dr. Gama Lima, grande amigo de Portugal, o Real Português Gabinete de Leitura.
Jamais esqueceremos a visita que nos proporcionou este amigo brasileiro. É efectivamente uma obra cultural da iniciativa de emigrantes portugueses, com preciosa colaboração brasileira, que honra sobremaneira a cultura dos dois países irmãos.
Fundado em 14 de Maio de 1837, teve acção importante na iniciativa um português ilustre, o Dr. Rocha Cabra1. Em 10 de Junho de 1880, quando se festejava o tricentenário de Camões, foi lançada a primeira pedra do edifício onde o Real Gabinete está hoje instalado pelo Imperador D. Pedro II, na Rua Luis de Camões em pleno coração do Rio. É um amplo edifício de estilo Manuelino. O número de obras que constitui a sua valiosa biblioteca é de cerca de 300.000, sendo o número de volumes de 500.000 aproximadamente.
É frequentado assiduamente por milhares de leitores de todas as classes sociais, vendo-se na sua ampla sala de leitura muitos estudantes.
E quanto nos foi grato ouvir do nosso ilustre amigo brasileiro sobre o que representa o Real Gabinete para o Brasil :
- A Catedral da Alma Portuguesa do Brasil;
- O monumento, todo de pedra e em que «cada pedra é um verso dos Lusíadas»;
- A evocação da nacionalidade, dos Reis, do Infante, dos Descobridores como Vasco da Gama, do anúncio da existência do Brasil com Pedro Álvares Cabral, do génio de Luis de Camões, dos escritores inesquecíveis, da cultura comum.”
Saímos do Real Gabinete cheios de orgulho por mais aquela monumental obra dos portugueses. Como recordação, ofereceram-nos gentilmente lindas gravuras ilustrando as mais belas estrofes dos Lusíadas.
* * *
O interesse pela cultura que os brasileiros têm, manifesta-se também, em certa medida, pe1os nomes que escolhem para dar aos filhos.
Em homenagem às grandes figuras do pensamento, da História, das Artes e das Letras, muitos brasileiros dão os seus nomes aos filhos. Assim, são vulgares nomes como Péricles, Demóstenes, Homero, Ésquilo, Licurgo, Plutarco, Sófocles, Cícero, Galileu, Dante, Wagner, Mozart e tantos outros que em Portugal se usam muito menos.
Por exemplo, dois dos nossos amigos brasileiros que nos receberam, um chamava-se Zeuxis e o outro Píndaro. Zeuxis foi um ilustre pintor grego do século V antes de Cristo e Píndaro foi um poeta lírico também grego do século VI antes de Cristo.
Mas a par destes nomes eruditos também muitos brasileiros menos cultos, sobretudo gente simples do interior que desbrava esse imenso país, dão por vezes aos seus filhos nomes de fantasia.
Contaram-me que um brasileiro chamado Biotónico devia o seu nome ao seguinte facto: os seus progenitores já tinham tido vários filhos antes dele nascer mas morriam de tenra idade, vítima de uma debilidade congénita. Até que um dia pessoa amiga lhes recomendou que ao último filho que nascera dessem-lhe a tomar um remédio então muito anunciado e que se chamava biotónico. Os pais seguiram o conselho e o que é certo é que a criança vingou. Depois veio outro descendente e os pais, gratos ao medicamento que lhes havia salvo um filho, deu o nome do remédio ao seu novo rebento que também vingou graças ao milagroso biotónico...
Para se ficar a conhecer este país não basta visitar três ou quatro cidades e atravessar alguns quilómetros do seu vasto território. São 8.511.965 quilómetros quadrados de superfície e 100 milhões de habitantes ! São 22 Estados, um Distrito Federal e 4 territórios. Mas a colonização portuguesa fez o milagre da unidade política e da unidade da língua. O português que se fala no Sul é o mesmo que se fala no extremo Norte, a mais de 3.500 quilómetros de distância! Por isso de Norte a Sul, de Leste a Oeste, o Brasil é uno, predominando a influência portuguesa, não obstante a presença de outros povos, como italianos, alemães, holandeses e mais recentemente japoneses.
Catulo da Paixão Cearense, o grande poeta brasileiro, compôs um pequeno poema que intitulou “Um boémio no Céu” e nele está dito o que é o Brasil. O poema descreve que o poeta chegou ao Céu e S. Pedro pergunta-lhe como viveu na Terra. O boémio responde-lhe que foi poeta, foi músico e cantor. E S. Pedro, maravilhado, pergunta-lhe qual o seu nome. O poeta diz-lhe o nome ao ouvido. E o Santo, sorrindo, responde:
«Eu, de há muito já tinha pressentido!
Tu és o grande Poeta regional!
Já pertences à nossa Academia!
Foste eleito por Deus! És imortal!
Em que país do mundo nasceste
Com teu estro bravio e senhoril?»
E o poeta boémio respondeu-lhe:
«Num Paraíso esplêndido:
- o Brasil!»
Cícero Galvão
Dezembro de 1973
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