Numa fria noite de Natal saí para dar um passeio pela cidade. Transeuntes apressados, embuçados nos seus abafos, dirigiam-se para casa ou para as igrejas para assistirem à Missa do Galo. As suas expressões eram felizes e alegres. Os grupos tagarelavam com vivacidade.
Naquela noite um suave milagre tornava toda a gente boa. Todos deviam ter a sua festa de Natal, todos os homens pareciam de facto de boa vontade.
Num portal de um cinema uma mulher tinha montado uma venda de jornais e revistas. Num caixote forrado de jornais, uma criança de tenra idade dormia serenamente. Aquela família não devia ter Natal.
Àquela hora já não havia fregueses para os jornais e a pobre mulher certamente aguardava que a sessão de cinema acabasse, na esperança de, à saída, alguns espectadores ainda lhe comprassem qualquer jornal da noite ou uma revista.
De longe observei aquela mãe transida de frio que não se resolvia a regressar a casa naquela noite dedicada à família. Mas teria ela verdadeiramente uma casa ou mesmo uma família? Pelo menos alguma família tinha, pois a criança que dormia no caixote forrado de jornais devia ser sua filha, a avaliar pelos cuidados com que ela a protegia do frio com uns farrapos e lhe afagava os cabelos.
Observei também a criança que era robusta e perfeita, de faces coradas e feições muito correctas.
Devia ter menos de um ano, dez ou onze meses, e já a tinha visto noutras ocasiões, de dia, acordada, pôr-se de pé, apoiada nos bordos do caixote, lambuzando-se com as gulodices que lhe davam.
A criança era com efeito linda e eu pensava quantos casais abastados ou mesmo remediados, gostariam de ter um bébé assim.
Havia, na verdade, coisas extraordinárias - quantos casais que podiam proporcionar todas as comodidades, tratamentos e boa alimentação aos filhos, os tinham franzinos e doentes e aquela criança criada sem cuidados, sem higiene, no meio do pó das ruas e tendo como agasalho jornais velhos, era de uma perfeição invulgar e respirava saúde.
De súbito, um casal passou e reparou no bébé. A senhora, comovida com a cena, baixou-se, disse qualquer coisa à mãe que sorria desvanecida e afagou a cabecita da criança. Esta abriu os olhos, uns grandes olhos, de mansinho, e o rosto abriu-se-lhe num luminoso sorriso. Depois a senhora pegou na criança ao colo, acariciou-a mais e voltou a pousá-la no improvisado berço. Trocou breves palavras com o marido e entregou à mãe, discretamente, algumas notas enroladas na mão.
Entretanto o cinema tinha acabado, os espectadores começaram a sair e alguns compravam àquela pobre mulher jornais ou revistas. Misturei-me com eles e quando passei perto dela parei, fiz uma pequena festa na cabecita linda do petiz, comprei também um jornal e deixei esquecida uma nota nas mãos daquela mãe, perguntando-lhe curioso:
- Como se chama o menino?
Respondeu-me a pobre mulher, parecendo admirada com a pergunta:
- Como se chama o menino?...
E depois de uma hesitação:
- Ora, como havia de se chamar?! O menino chama-se Jesus!
Troquei um último sorriso com o menino, apressei-me para a consoada que esperava por mim e continuei a sorrir-me sozinho, satisfeito por pensar que aquela mãe e aquele menino chamado Jesus iam ter certamente um dia de Natal muito feliz.
Cícero Galvão
Dezembro de 1969
Índice
- Está reunida a Assembleia Geral da Sociedade Filarmónica Os Amigos da Semi-Colcheia (1946)
- O burocrata (1947)
- A capicua (1948)
- O homem que chegava sempre atrasado (1949)
- O novo Olimpo (1950)
- O tio Frederico (1951)
- A pensão de Mrs. Durling (1952)
- O dicionário das sete línguas (1953)
- A alimentação racional (1954)
- O prestamista (1955)
- Um momento psicológico (1956)
- O regresso à terra (1957)
- Uma história de bruxas (1958)
- Oração - um conto de Natal (1959)
- Sorte Grande (1960)
- O conquistador ou a última aventura de um D. Juan (1961)
- Um terrível pesadelo (1962)
- O Zé Cego (1963)
- A grande empresa (1964)
- A mania das antiguidades (1965)
- As estranhas teorias de Sebastião Matias (1966)
- Memórias de um burocrata (1967)
- O seu a seu dono (1968)
- Um menino chamado Jesus (1969)
- Uma pequena garrafa de Madeira (1969)
- As férias (1970)
- Recordar é viver (1971)
- A arte de bem falar ao telefone (1972)
- Aguarela brasileira (1973)
- O pequeno marçano (1974)
- A menina e a boneca (1975)
- Mamã, ela era ruiva! (1975)
- Dez tostões de flores (1976)
- Una piccola cronaca d' Italia (1976)
- Um milagre de S. João Bosco (1977)
- Um milagre de Santo António (1977)
UM MENINO CHAMADO JESUS - Um pequeno conto de Natal
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