Os contos e crónicas recolhidos neste blog foram todos publicados no jornal “Re-nhau-nhau”, trimensário humorístico do Funchal, nos números do seu aniversário, coincidente com a época do Natal. Recolheram-se 36 contos e crónicas publicados no jornal nas edições dos meses de Dezembro dos anos de 1946 a 1977.

Partida para o Funchal em 1946

UM MENINO CHAMADO JESUS - Um pequeno conto de Natal

Numa fria noite de Natal saí para dar um passeio pela cidade. Transeuntes apressados, embuçados nos seus abafos, dirigiam-se para casa ou para as igrejas para assistirem à Missa do Galo. As suas expressões eram felizes e alegres. Os grupos tagarelavam com vivacidade.

Naquela noite um suave milagre tornava toda a gente boa. Todos deviam ter a sua festa de Natal, todos os homens pareciam de facto de boa vontade.

Num portal de um cinema uma mulher tinha montado uma venda de jornais e revistas. Num caixote forrado de jornais, uma criança de tenra idade dormia serenamente. Aquela família não devia ter Natal.

Àquela hora já não havia fregueses para os jornais e a pobre mulher certamente aguardava que a sessão de cinema acabasse, na esperança de, à saída, alguns espectadores ainda lhe comprassem qualquer jornal da noite ou uma revista.

De longe observei aquela mãe transida de frio que não se resolvia a regressar a casa naquela noite dedicada à família. Mas teria ela verdadeiramente uma casa ou mesmo uma família? Pelo menos alguma família tinha, pois a criança que dormia no caixote forrado de jornais devia ser sua filha, a avaliar pelos cuidados com que ela a protegia do frio com uns farrapos e lhe afagava os cabelos.

Observei também a criança que era robusta e perfeita, de faces coradas e feições muito correctas.

Devia ter menos de um ano, dez ou onze meses, e já a tinha visto noutras ocasiões, de dia, acordada, pôr-se de pé, apoiada nos bordos do caixote, lambuzando-se com as gulodices que lhe davam.

A criança era com efeito linda e eu pensava quantos casais abastados ou mesmo remediados, gostariam de ter um bébé assim.

Havia, na verdade, coisas extraordinárias - quantos casais que podiam proporcionar todas as comodidades, tratamentos e boa alimentação aos filhos, os tinham franzinos e doentes e aquela criança criada sem cuidados, sem higiene, no meio do pó das ruas e tendo como agasalho jornais velhos, era de uma perfeição invulgar e respirava saúde.

De súbito, um casal passou e reparou no bébé. A senhora, comovida com a cena, baixou-se, disse qualquer coisa à mãe que sorria desvanecida e afagou a cabecita da criança. Esta abriu os olhos, uns grandes olhos, de mansinho, e o rosto abriu-se-lhe num luminoso sorriso. Depois a senhora pegou na criança ao colo, acariciou-a mais e voltou a pousá-la no improvisado berço. Trocou breves palavras com o marido e entregou à mãe, discretamente, algumas notas enroladas na mão.

Entretanto o cinema tinha acabado, os espectadores começaram a sair e alguns compravam àquela pobre mulher jornais ou revistas. Misturei-me com eles e quando passei perto dela parei, fiz uma pequena festa na cabecita linda do petiz, comprei também um jornal e deixei esquecida uma nota nas mãos daquela mãe, perguntando-lhe curioso:

- Como se chama o menino?

Respondeu-me a pobre mulher, parecendo admirada com a pergunta:

- Como se chama o menino?...

E depois de uma hesitação:

- Ora, como havia de se chamar?! O menino chama-se Jesus!

Troquei um último sorriso com o menino, apressei-me para a consoada que esperava por mim e continuei a sorrir-me sozinho, satisfeito por pensar que aquela mãe e aquele menino chamado Jesus iam ter certamente um dia de Natal muito feliz.

Cícero Galvão
Dezembro de 1969

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