A magia, a quiromância, a astrologia e - por que não dizer – de uma maneira geral, as bruxarias estão manifestamente na ordem do dia.
Em todo o mundo, quotidianamente, milhões de seres ansiosos e angustiados consultam os magos, dão a sina a ler na palma da mão, estudam os signos, interpretam o seu horóscopo ou caem na consulta à sórdida bruxa - para adivinharem o dia de amanhã e conquistarem a felicidade, a fama e a fortuna.
Felicidade nos amores, sorte nos negócios, a obtenção da riqueza, tudo o mago, a bruxa, a quiromante ou o astrólogo podem ajudar a alcançar.
Montam autênticos consultórios, melhor ou pior instalados, conforme as pessoas a atender, mas por vezes com luxuosas acomodações e magníficas salas de espera que, fazem a inveja a médicos eminentes ou a clínicas da moda.
E multidões iludidas lá vão pagando as consultas e os conselhos desses feiticeiros e dando somas consideráveis pelos seus sortilégios e pelas mezinhas receitadas, misteriosa farmacopeia, que lhes há-de trazer a sorte, a fortuna, o amor...
E arruinam-se almas, desfazem-se lares, desmoronam-se ilusões, paradoxalmente, quando se julgava que se ia comprar a felicidade e a ventura eternas.
Mas por vezes o acaso faz o prestígio do bruxo. Por simples coincidência os amores infelizes tornam-se felizes, o marido transviado volta ao doce lar, um negócio rendoso consegue fazer-se, a saúde pode voltar e atribui-se a felicidade e o êxito à intervenção do bruxo.
A pequena história que se segue é um exemplo real do efeito do acaso no crédito dos bruxos... e assim se forma o seu prestígio e a sua fortuna...
O casal Barata já há muito que dava forte indícios de graves desentendimentos. Casados há mais de dez anos, Gertrudes e Desidério Barata tinham vivido sempre, como soe dizer-se, como Deus com os Anjos, mas a partir de certa altura a mulher, possuída de injustificados ciúmes, começou a fazer a vida negra ao marido, o pacato e puritano Desidério, honrado comerciante da praça de Lisboa, estabelecido há muitos anos com armazém de solas e cabedais.
Debalde o Desidério se esforçava para sossegar a mulher, mas os seus ciúmes exacerbados agravavam cada vez mais a situação.
Sempre que chegava a casa, o marido era alvo de meticuloso exame, ao principio disfarçadamente, mas depois era já descaradamente que a Gertrudes o cheirava, o revolvia, lhe examinava os lenços, os bolsos e as roupas interiores à busca de qualquer indelével mancha de rouge ou bâton e, antes de o beijar, analisava-lhe as faces, centímetro quadrado por centímetro quadrado, não fosse haver lá o mais ténue vestígio de boca de mulher.
A vida para Desidério ia-se tornando insuportável e era um martírio para ele voltar para casa. Começou por deixar de vir almoçar. Perdia-se por restaurantes e cafés, a comer e a parodiar com os amigos e só muito tarde, aparecia para jantar, o que fazia com grande sacrifício, pois a mulher com os malditos ciúmes ia de mal a pior. Por vezes, faltava até ao jantar e quando regressava tarde, estabelecia-se tremendo conflito, pois a Gertrudes explodia em impropérios contra o marido que pacientemente a ouvia e calava, o que a irritava ainda mais. O desgosto do Desidério pela mulher era cada vez maior. Faltava noites inteiras a casa, Ignorava-a por completo e a Gertrudes acusava-o de crueldades mentais e desacreditava-o perante a vizinhança e as amigas.
Um dia, ao pequeno almoço Desidério foi surpreendido por um olhar aterrado da criada que fixava os olhos na sua chávena almoçadeira, cheia de café com leite. À saída, cruzando-se com a serviçal no corredor, perguntou-lhe entre dentes: - “Porque me olhava assim ainda há pouco?“ Ao que a criada respondeu, também entre dentes, torcendo ridiculamente a boca: - “Preciso muito de falar com o senhor. “ Mas já a mulher assomava à entrada do corredor, fuzilando o Desidério e a criada com os olhos, não lhe agradando nada aquele cochichar, e o marido não teve outro remédio se não escapulir-se precipitadamente pela porta fora.
Mas passou o dia ansioso por saber o que a criada lhe queria contar. Voltou mais cedo para casa mas não teve oportunidade.
No dia seguinte, novos olhares misteriosos da criada sobre o café com leite e novo segredo, à socapa, à saída da porta: - “ O senhor espere por mim no mercado, tenho de falar consigo .“
O Desidério, desconfiado, lá foi para a porta do mercado esperar a criada. Passados momentos lá apareceu ela, esbaforida, quase disfarçada, embuçada num xaile negro muito enrolado ao corpo - “Então que havia?“ perguntou o patrão, e a criada, conservando o ar misterioso, ciciou muito em segredo: - “O senhor anda a correr grandes perigos. A senhora todas as manhãs deita-lhe uns pós no café!”
O Desidério não queria acreditar no que ouvia e instintivamente soltou um “O quê?“ Mas a criada continuava, zelosa e venenosa : - Era a pura verdade! A senhora andava com bruxas!
Com bruxas? - Exclamou, espantado, o patrão. - Sim, com bruxas confirmou a criada. A senhora todas as noites sai e vai para a casa de uma mulher, que mora ali perto, que é tida e havida como dada a bruxarias e até já esteve presa! E depois, quando chega a casa, é uma azáfama de rezas, defumações, benzeduras. A senhora queimava uns pós num defumador, com os quais polvilhava também a roupa do patrão e tinha ainda um pó branco que guardava num frasco pequeno e era desse pó que ela todas as manhãs deitava uma pitada no café quando o patrão tomava o pequeno almoço.
O Desidério não queria acreditar, sentia-se esmagado com o que a criada lhe contava e nem sabia o que pensar nem o que dizer.
Mas já a criada continuava a narrativa das bruxarias da senhora, dominando o patrão que continuava apático, aterrado com a ideia de a mulher o andar embruxar... A criada aproveitava a ocasião para se queixar de que ganhava pouco... E o Desidério deu-lhe uma nota de cinquenta escudos e mandou-a embora.
Durante todo o dia não lhe saiu aquela ideia da cabeça. Não foi almoçar nem jantar a casa e à noite hesitou se havia ou não de voltar para junto da mulher. Por fim, decidiu-se a voltar, mas já era tarde e quando se deitou a mulher dormia profundamente.
Resolvera não tomar mais qualquer refeição em casa, com receio dos pós da mulher mas a criada, ao cruzar-se por ele disse-lhe em segredo, torcendo a boca, como sempre fazia quando segredava:
- Pode tomar hoje o café porque é de confiança!...
O Desidério não trocou palavra com a mulher e, à saída, a criada arranjara-lhe maneira para lhe dizer que tinha deitado fora os pós da senhora.
Entretanto a mulher redobrava de ciúmes, tornando-lhe a vida cada vez mais insuportável. Pensou a sério no divórcio e estava decidido a consultar um bom advogado. Agora só tomava o pequeno almoço em casa, mas mesmo assim só quando a criada lhe fazia o sinal de “que era de confiança“. Esta continuava a marcar-lhe encontros para a porta do mercado para lhe contar os passos da senhora e de cada vez esportulava-lhe cinquenta escudos “porque a vida ia mal e ganhava pouco“.
A Gertrudes veio a saber das entrevistas da criada e foi o fim do mundo. Foi nessa discussão que o Desidério, comerciante honrado e homem de princípios, ia perdendo a cabeça e a chegar a vias de facto. E foi nessa altura que desabafou e pôs tudo em pratos limpos: Acusou-a abertamente de andar a praticar bruxarias contra ele e que era o momento de se acabar com tudo. Mas a Gertrudes explodiu: - Tudo isso era uma refinadíssima mentira! Eram intrigas da cabra da criada para lhe extorquir dinheiro! E ele, idiota, parvo, que lho dava, ela bem o sabia!
Depois desta terrível cena, o Desidério desarvorou de casa, disposto a romper com tudo. Mas logo nessa manhã, no escritório, recebeu um telefonema da sogra, pedindo-lhe com insistência para falar com ele pessoalmente. O Desidério aquiesceu à entrevista e foi nessa tarde a casa dos sogros. Foi a sogra que o recebeu e lhe narrou que lhe tinha aparecido a filha lavada em lágrimas, a contar-Ihe tudo o que se passava e principalmente o despautério da criada com as acusações de que a filha andava metida com bruxas. Ora isso era uma repugnante calúnia! A sua filha, já pela educação que lhe dera, já p ela sua formação moral e religiosa, era incapaz de uma coisa daquelas. Jurava por todos os Deuses, punha as mãos no fogo por ela - era impossível que caísse naquela baixeza. Tudo fora ignóbil mentira da energúmena da criada que a filha, aliás, já despedira. A sua Gertrudes podia ser ciumenta, lá isso não o negava, mas daí a meter-se com bruxas havia uma longa distância. E pediu ao genro que reconsiderasse, que voltasse a casa. A filha gostava muito dele e os ciúmes eram disso uma prova irrefutável.
O Desidério saiu desorientado daquela conferência com a sogra. Na verdade, nunca lhe agradara aquela criada. Era fuinha, untuosa, mostrava-se por fim exploradora, quase chantagista. A mulher fizera bem em despedi-Ia. E com estes pensamentos resolveu voltar a casa à hora do jantar. A mulher recebeu-o de braços abertos, comovida. Amava-o muito e prometeu-lhe não fazer mais cenas de ciúmes. E sem aquele veneno em casa iriam finalmente ser felizes. O Desidério, no fundo, admirou a enérgica medida da mulher em despedir a criada e fez as pazes, embora um tanto frias. As relações, pouco a pouco, foram melhorando. Saiam para ir ao teatro ou ao cinema, ele fazia agora uma vida muito caseira, viviam novamente num mar de rosas, numa verdadeira segunda lua de mel. A Gertrudes já não se mostrava ciumenta e atribuía a um milagre aquela reviravolta. Apaparicava o marido, fazia-lhe todas as vontades, preparava-lhe os melhores mimos. Tinha decididamente reconquistado a felicidade. Uma noite, no fim do jantar, quando contemplava embevecidamente a mulher depois de se ter regalado com umas “barrigas de freira“ que estavam deliciosas e que ela havia preparado para ele, com muito amor e muita ternura, o Desidério confessava-se intimamente arrependido de ter acreditado nas calúnias da malvada daquela criada.
A Gertrudes, feliz, naquele ambiente tão calmo, revia-se na expressão do marido, cheio de bonomia, e os seus pensamentos oscilavam rapidamente entre a vida agitada e de desentendimento de ainda há poucos dias e a felicidade de agora. E a quem devia ela toda aquela ventura? À mamã que tinha intervindo com oportunidade? Não! Ela bem sabia a quem devia todo aquele bem-estar! E fitando ternamente o marido, apática, completamente alheada, continuando intimamente um solilóquio ditado pelos seus pensamentos, inesperadamente, instintivamente saiu-lhe pela boca fora este profundo desabafo: -“ E digam lá agora se não valeu a pena ir à bruxa!"
* * *
O silêncio que reinava antes, continuou, mas agora era um silêncio pesado, inquietante. Depois daquela inconveniente exclamação, daquela confissão involuntária do que havia sempre ocultado - até à mamã! - e que tanto a comprometia, a Gertrudes ficou aterrada e esperou ansiosa a reacção do marido. O Desidério fixava-a friamente. Desnorteado sem saber que fazer, sem saber que pensar. Silenciosamente levantou-se e saiu de casa. A Gertrudes julgou-o perdido para sempre e agora por certo não haveria outra bruxa que o fizesse voltar.
Entretanto, os negócios de solas e cabedais não corriam bem. Surgiam tremendas dificuldades. Os colegas do mesmo ramo atribuíam a crise à concorrência dos plásticos. Mas os sócios do Desidério, rotineiros, insistiam nos negócios das peles e continuavam fiéis aos couros. O Desidério, manifestamente preocupado e apreensivo quanto ao futuro da sua casa comercial, continuou a ir a casa mas deixou de novo de falar à mulher. Esta, sem saber o que se passava considerava o marido perdido, pensando que mais dia menos dia o rompimento decisivo seria fatal. Mas as preocupações do marido iam agora todas para os negócios com as vendas a decaírem assustadoramente, os encargos a subirem, as letras a vencerem-se e os bancos a cortarem-lhe o crédito. Só um verdadeiro milagre podia salvar a casa da falência.
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E uma bela manhã, ao pequeno almoço, como último recurso, vencido e convencido pelas circunstâncias, o Desidério fitou corajosamente a mulher, olhos nos olhos, contou-lhe a sua difícil situação comercial, e pediu-lhe submissamente: - Hás de dizer-me, ao certo, onde fica a casa da tal bruxa. . .
Cícero Galvão
Dezembro de 1958
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