A irmã mais pequena do Rui tinha uma boneca de cabelos ruivos. Era uma boneca vulgar, não se distinguia das outras bonecas por qualquer razão – mas era ruiva. Só por isso se distinguia das outras bonecas.
A irmã do Rui tinha muitas bonecas de cabelos pretos, de cabelos castanhos ou loiros, lisos ou aos caracóis e canudos, mas de cabelos ruivos só tinha aquela. Nem era a boneca preferida da sua dona e por vezes ficava muito tempo esquecida no quarto dos brinquedos.
No entanto, a boneca ruiva era a preferida do Rui, o irmão da menina. O Rui era um rapagão de seis anos, nada dado a brincadeiras de meninas. Para ele os brinquedos eram as bolas, os automóveis de todas as marcas e feitios, um triciclo, no qual era um virtuoso em manobras arriscadas no corredor e nas curvas perigosas à entrada nos quartos, mas em relação aos brinquedos da irmã só tinha um fraco - a boneca ruiva.
Por acaso uma amiga da mãe tinha também cabelos ruivos e sempre que a senhora ia lá a casa, era um encanto para o garoto. Não se arredava de ao pé da senhora, ficava muito quieto a admirá-la todo o tempo da visita. Recebia com satisfação e retribuia a todos os carinhos que a senhora lhe fazia. Um dia, depois da senhora sair, não se conteve e declarou para a mãe: - Que lindos cabelos tem esta senhora! São ainda mais bonitos que os da boneca! A mãe confirmou a opinião do filho, achando-lhe muita graça pela sua. predilecção por aquela cor de cabelos que entre nós é rara.
Quando o Rui saía com a mãe e deparava com uma menina ou uma senhora ruiva, o que era raro, era uma adoração. Largava a mão da mãe e ficava especado a olhar para a menina ou para a senhora até ela desaparecer entre a multidão.
Numa dessas saídas a mãe parou numa montra de uma loja de modas no Rossio a ver o que estava exposto. Distraiu-se e, de repente, deu por falta do filho. Procurou-o à volta e nada! Ficou assustada. Perguntou aos circunstantes se tinham visto um menino de seis anos e dava-lhes os sinais. Mas os transeuntes, apressados, não tinham visto criança nenhuma. Deu a volta à grande praça, sempre atenta a qualquer criança que passava, mas nenhuma era o Rui. Passou aos Restauradores, com o mesmo resultado. Continuava a interrogar as pessoas que passavam e os polícias, mas sem êxito. Estava disposta a ir participar às autoridades o desaparecimento do filho, mas antes fez nova tentativa para o encontrar, dando nova volta ao Rossio. Foi inútil a diligência. Ah! quando ele aparecesse tinha de ser severamente castigado! Cada vez o rapaz se mostrava mais indisciplinado. Levaria um bom par de açoites e ficaria de castigo várias semanas em casa. A criança tinha desaparecido há perto de uma hora e a mãe estava desesperada. Por onde andaria? Numa última tentativa desceu a Rua do Ouro em direcção ao Terreiro do Paço. Então, quando já ia perto do fim da rua, deparou com o miúdo que vinha em sentido contrário. Especaram os dois, frente a frente. A mãe com um olhar ameaçador. O petiz com um olhar cheio de medo, apercebendo-se só agora da sua falta, receando ser castigado ali mesmo, fazendo uma expressão de humildade e de súplica do perdão que julgava impossível.
E então ao petiz só lhe acudiu um grito de justificação para aquela falta, um pedido de desculpa para aquela maldade que tanto tinha ralado a mãe.
Um grito que era simultaneamente uma confissão e um pedido de desculpa que a mãe certamente compreenderia:
- Mamã, ela era ruiva!
E a mãe do Rui compreendeu e perdoou.
Cícero Galvão
Dezembro de 1975
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