À memória da minha Mãe
Tinha onze anos e a minha mãe matriculara-me no primeiro ano do curso do comércio.
Passara na praia os três longos meses de férias de verão, que naquela idade me pareciam, de facto, tão longos, e tinha a impressão que esquecera tudo que a minha zelosa professora me ensinara para o exame de quarta classe.
Os chineses dizem que depois dos quarenta anos parece que os anos só têm seis meses. Isto poderá querer dizer que antes dos quarenta anos, os anos devem parecer que têm o tempo normal, mas também se acerta se se disser que antes dos vinte, parece que os anos têm tempo dobrado. À volta dos dez anos, então, parece que os anos nunca mais acabam.
Os chineses sabiam muito e já tenho pensado se aquela máxima seria do sábio filósofo Confúcio. Eu podia afirmar que sim, sem receio de desmentido, mas na verdade só sei que tal brocardo é chinês, do autêntico, do antigo, de rabicho, olhos em amêndoa e pézinhos enformados, como hoje já não se fabrica, como soe dizer-se.
Mas deixemo-nos de filosofias (talvez melhor de chinesices) e entremos na matéria.
Pois segundo a lição que se pode tirar daquela máxima confucionista (ou sua patrícia e contemporânea, pelo menos) aqueles três meses de férias pareceram-me longos anos e sentia no cérebro a sensação de vácuo.
Como já disse, esquecera tudo. Toda a minha ciência primária se evaporara com o esforço físico despendido naquele verão, a nadar, a remar, a jogar à bola e à barra livre e à barra bandeira. Devia ter crescido uns bons centímetros, o peso aumentara um bom par de quilos, mas a ciência é que encurtara e se fosse susceptível de ser pesada, não faria deslocar o prato de uma balança de precisão.
Parece que tinha mantido a prenda de saber ler, porque todos os sábados não me escapava o “ABC-zinho”, o velho jornal infantil daquele tempo, ilustrado pelo bondoso e engenhoso Tio Pirilau, o tão grande como infortunado artista arquitecto Cottinelli Telmo.
E foi com a consciência perfeitamente tranquila da profunda ignorância em que me encontrava que entrei no primeiro ano do curso de comércio. Minha mãe destinara-me à carreira de Mercúrio e que bem arrependido estou em ter enveredado por outros caminhos. Mas isto é matéria parasitária que não interessa à história, ou será outra história, como diria o meu colega Rudyard Kipling....
Sem saber sequer as matérias que iria estudar, foi com ansiedade que entrei na escola naquele primeiro dia de aulas. O estômago não consentira qualquer alimento e, muito de manhãzinha, vomitara com tremendos arrancos o café com leite e o pão com doce de maçã, preparado por minha mãe, com os frutos tão aromáticos que trouxéramos de férias e com as mesmas mãos tão habilidosas que naquele transe me aliviaram amparando-me ternamente a testa.
E lá fui de cara preocupada e estômago vazio averiguar a turma em que ficara colocado e consultar as pautas dos horários.
E então é que vi que tinha de estudar naquele ano cinco disciplinas, a saber: o Português, o Francês, a Aritmética, a Geografia e a Caligrafia (e que proveito tão grande tirei desta última matéria que ainda hoje quase ninguém consegue ler a fio meia dúzia de linhas dos meus escritos).
Fiquei aterrado com tanta ciência que teria de aprender, eu que partia do zero científico e a única ferramenta que possuía era praticamente saber ler, escrever e contar.
Mais aterrado fiquei quando vi que para cada matéria havia um professor diferente, de aspecto grave e circunspecto, alguns de pêra e barba hirsuta e com certeza sem nariz para óculos, pois quase todos usavam luneta. Achei até um esbanjamento haver um professor para cada disciplina, eu que estava habituado à omnisciência da velha mestra da escola primária que ensinava tudo, desde os mistérios da análise gramatical, da divisão e classificação das orações, até aos complicados problemas de aritmética, passando pela Geografia, a História e as Ciências Naturais que englobavam noções já adiantadas de Física e Química, Zoologia, Botânica e Mineralogia! A minha admiração já grande pela muito asmática e muito míope mestra, aumentou extraordinariamente quando para ensinar cinco matérias a meninos de 11 anos eram precisos cinco professores! Ou a querida mestra era um portento de saber na sua modéstia e timidez, ou aqueles senhores tão solenes eram profundamente ignorantes e de muito limitados conhecimentos. E, com efeito, no decorrer de sucessivos anos lectivos, grandes oportunidades tive para me lembrar da minha velha professora e para aumentar a minha sincera admiração pelo seu saber...
Mas a minha surpresa maior foi quando os professores começaram a receitar os livros e compêndios para o estudo dos programas de cada disciplina. Depois de ter assistido à primeira lição de cada mestre, estava comprador de numerosos livros de estudo, cadernos de exercícios, atlas, dicionários e compêndios de caligrafia.
Quando uma tarde cheguei a casa foi um tanto enfiado que apresentei a minha mãe a copiosa lista de livralhada que eu elaborara metodicamente com o nome da obra, o nome do autor, o número da edição e a casa editora.
Eram ao todo quatro livros de estudo, um Atlas Universal, três dicionários, um compêndio de exercícios de aritmética e outro de caligrafia e quatro cadernos desta última matéria, numerados 1, 2, 3, 4, conforme a gradação da habilidade do aluno.
Ao todo eram 14 volumes que deviam custar muitas dezenas de escudos e foi receoso que entreguei a lista a minha mãe, pois sabia quanto pesaria aquele encargo nas suas contas de boa dona de casa. Esperei calado, a sua reacção, mas depois de ter percorrido, linha a linha, a comprida lista, só me perguntou se eram já precisos, de facto, todos aqueles livros. Disse que sim timidamente, acenando a cabeça, e minha mãe, sem mais comentários, e preocupada com a lida da casa, só me respondeu que se comprariam no dia seguinte.
Suspirei daquela prova financeira, e no dia seguinte minha mãe, que nunca se esquecia das obrigações, antes de eu sair de casa deu-me uma nota de 500 escudos para adquirir os livros, recomendando-me cuidado especial com o troco, que devia ser bastante.
Confesso que fiquei inchado com tal prova de confiança e com a ideia de - qual novo rico – exibir a nota aos meus colegas de turma, pois só depois das aulas terminadas podia ir à livraria enfeirar todos aqueles alfarrábios.
No íntimo estava ansioso por que chegasse a hora de ir à Livraria fazer aquela importante figura de abastado comprador de tanto cartapácio, tanto mais que tinha a promessa de dois ou três colegas de irem comigo para apreciarem em primeira mão aquelas belíssimas edições.
Entrámos numa Livraria, acanhada, de aspecto modesto, na travessa de S. Domingos, e o livreiro que nos atendeu era o próprio dono, já grisalho, de nariz adunco de judeu, meios óculos, que nos recebeu com delicadeza e bonomia.
Quando viu a tremenda lista de livros, todo se desfez em amabilidades, desconfiando até da fartura, pois quis que ficasse bem esclarecido se levava logo todos os volumes. Sosseguei-o, afirmando-lhe que sim, e para lhe demonstrar a minha capacidade financeira fui puxando da nota de quinhentos que guardara cuidadosamente na minha carteirinha de pele com monograma de prata, prenda do meu exame de quarta classe.
O homem quando viu a nota, olhando por cima dos meios óculos, devia ter pensado que, na realidade, tinha freguês e, numa azáfama, desatou a tirar das prateleiras da sua acanhada Livraria os volumes requisitados, fazendo para cada um, um comentário breve, preciso, em regra elogiativo.
Mas quando chegou ao Atlas, teve uma exclamação depreciativa: O quê, o menino não quer um Atlas melhor?! Porque não compra já um belo Atlas, com numerosos mapas físicos, políticos e económicos, de belas cores e com descrições pormenorizadas de países e regiões? Tinha ali uma esplêndida edição, era um Atlas inglês que duraria vidas e passou-me o grosso volume, na verdade, encantador cheio de mapas e gráficos, vistosamente coloridos. Enquanto o homem procurava os restantes volumes na prateleira, fiquei a contemplar extasiado toda aquela substancial riqueza de informação geográfica, juntamente com os meus colegas que estavam simplesmente maravilhados com um esplêndido gráfico a cores com o comprimento dos maiores e mais importantes rios do mundo. O homem declarara aliciante que me fazia “um preço especial” e eu, sem saber quantas dezenas de escudos iria custar aquela fantasia, decidi-me por comprar o Atlas. Os meus colegas felicitaram-me muito calorosamente.
Entretanto já o homem encontrara o nº 4 dos cadernos de exercícios caligráficos e chegara a vez dos dicionários.
Leu a lista em voz sumida, como se fosse só para ele: “Um dicionário popular Português-Francês, outro Francês-Português, e o Dicionário do Povo, de português”. Voltou a franzir o sobrolho e a fazer uma careta depreciativa. Seguiu-se uma extensa exposição sobre dicionários em geral e dicionários de português em especial e recomendou-me finalmente que não comprasse tais livros baratos, sem categoria, impressos em papel ordinário e mal encadernados.
Uns livros sem valor que dificilmente aguentariam um ano lectivo. E, perante o meu pasmo de tanta erudição livresca, acabou por me indicar a última maravilha em matéria de dicionários. Nada menos, nada mais do que “O dicionário das sete línguas”.
E ao exclamar este título sonoro (tão impressionante que não hesitei em escolhê-lo para título do presente episódio), o homem pegou num grossíssimo calhamaço e atirou-o pesadamente sobre o negro balcão, tal como um “régisseur” de circo anuncia, ao rufo dos tambores, um número arriscado e sensacional, ou um moderno e dinâmico locutor da rádio, atira para o ar o nome da vedeta da moda que vai cantar a última canção em voga.
Fiquei petrificado com a magnífica apresentação da obra, lindamente encadernada em carneira, de grande formato, talvez com mais de duas mil páginas de óptimo papel e o nome a letras de oiro na capa e na lombada.
Mas o homem não se calava com o elogio do dicionário: Nada mais, nada menos do que o significado de cada palavra em português e os correspondentes complementos dos vocabulários dessas línguas para português.
Era efectivamente de ficar encantado. Peguei cuidadosamente naquela avantajada relíquia enquanto o homem me esclarecia que custava 250$00, mas que me fazia um descontozinho, para amigos, de 10%. Apertei a nota de quinhentos escudos na mão, pois sentia-a sumir-se, e olhei os meus colegas com ar de entendido, como quem dizia: “O que é bom é caro” ou “É caro mas é outro asseio” e resolutamente exclamei : “Fico com o livro!”.
Os meus companheiros quase soltaram um “Bravo” de aplauso...
O livreiro entretanto concluía o aviamento da encomenda e já tirava a conta.
Passei-lhe a nota e recebi umas magras dezenas de escudos.
Os livros devidamente embrulhados, formavam um enorme volume e foi ajoujado com ele que entrei em casa naquele fim de tarde.
Minha mãe ficou admirada com tão descomunal embrulho e quando eu, entusiasmado, lhe ia mostrar as preciosidades bibliográficas, perguntou-me naturalmente pelo troco.
Mostrei-lhe as escassas dezenas de escudos que me restavam e minha mãe, admirada, quis examinar os livros que tinham custado tanto dinheiro.
Só então caí em mim e verifiquei que o livreiro tinha feito bom negócio à custa do meu entusiasmo pelos livros e da minha inexperiência. Com a sua habilidade de bom vendedor tinha transformado uma despesa provável de uma centena de escudos, num encargo insuportável para a minha economia doméstica.
Como era de esperar, minha mãe condenou in limine a compra do Atlas e principalmente a do gigantesco dicionário das sete línguas, o qual nem sequer era portátil, e impôs-me que no dia seguinte voltasse à livraria, afim de desfazer aquele péssimo negócio. Fiquei varado com a decisão. Quis justificar a compra, mas faltavam-me os argumentos que abundavam no livreiro. Minha mãe foi inabalável – teria de desfazer a transacção o mais depressa possível.
No fundo, reconhecia a sua razão e a minha leviandade em deixar-me tentar com tão belos livros, gastando quase quinhentos escudos – talvez toda a pensão de minha mãe.
Fui deitar-me, amuado, sem jantar. Sentia uns enormes remorsos do que tinha feito e ao mesmo tempo uma vergonha imensa de ir ter novamente com o livreiro.
Passei uma noite horrível. Parece que não consegui adormecer à procura de uma solução, de uma plataforma. Já de madrugada parece que a achei: proporia a troca do “Dicionário das sete línguas” pelos dicionários populares e o resto em dinheiro. Quanto ao “Atlas” inglês proporia a sua troca por outro Atlas mais barato e o resto em livros de recreio. Só assim me atreveria a entrar em contacto com o livreiro.
Na manhã seguinte, ao pequeno almoço, propus esta base a minha mãe. Ela fez as contas e complacentemente acedeu, não sem me admoestar que tivesse mais cuidados para outra vez.
Mais encorajado, lá segui em direcção à livraria, sozinho, a ensaiar mentalmente um discurso para recitar ao dono da loja, logo que o avistasse.
Quando me viu, o livreiro reconheceu-me e perguntou-me com ar descarado:
- Então o que quer mais o menino ?
- Mais?! Exclamei em tom indignado.
Lá lhe expliquei, como pude, a desaprovação da compra e no fim elucidei-o das condições da troca.
O homem devia ter sentido grande desgosto mas não teve outro remédio se não concordar e, de má catadura, deu-me a escolher os livros que eu queria por troca.
Recordo-me que escolhi, então, livros que há muito desejava possuir: vários livros de Júlio Verne, “O Mistério da Estrada de Sintra”, “As Minas de Salomão” e alguns outros que ainda hoje figuram na minha modesta estante. Mas, feitas as contas, eu estava ainda credor de quinze tostões.
E passava os olhos pelas estantes à procura de um volumezito daquela importância e o livreiro, agastado, olhava-me com ar trocista e não me ajudava com qualquer sugestão.
E como eu não lobrigasse um livrinho de quinze tostões, olhei para ele, numa espécie de encolher de ombros, com ar indeciso, suplicante.
Então, por trás dos óculos de meia lua, vi brilhar os pequenos e velhacos olhos do livreiro, num fugaz sorriso. O nariz tornou-se mais adunco, formaram-se finas rugas aos lados da boca, os lábios apertaram-se e, de repente, dispararam cinicamente esta gracinha:
- Só se o menino quiser levar os quinze tostões em pevides e amendoim.
Percebi a ironia do energúmeno e senti-me vexado, ofendido na minha dignidade. Era um atentado à honestidade que tinha posto naquela transacção.
Mas a simplicidade dos meus onze anos reagiu bem e instintivamente ordenei com ar grave:
- Faça um embrulho e dê-me o resto do dinheiro!
O homem, não esperando aquela decisão tão firme, obedeceu-me como um autómato e não trocámos mais palavras - a partir daquele momento cortámos relações para toda a vida.
Quando transpus a porta da livraria tinha feito uma jura solene: a de nunca mais em vida minha comprar o que quer que fosse naquela loja.
Com efeito tenho cumprido religiosamente aquela jura.
Mas aqui, muito confidencialmente, desabafo com os meus queridos leitores que, apesar de já terem passado mais de vinte anos e nada mais ter comprado naquela velha livraria (nem sequer um livro de mortalhas), o que mais me desespera é o facto daquele cínico livreiro ainda não ter aberto falência...
Cícero Galvão
Dezembro de 1953
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