Os contos e crónicas recolhidos neste blog foram todos publicados no jornal “Re-nhau-nhau”, trimensário humorístico do Funchal, nos números do seu aniversário, coincidente com a época do Natal. Recolheram-se 36 contos e crónicas publicados no jornal nas edições dos meses de Dezembro dos anos de 1946 a 1977.

Partida para o Funchal em 1946

A GRANDE EMPRESA


O meu amigo de infância Tude Cordeiro Meneses de Mendalvo era um Jacinto.

Não um jacinto, género de plantas bulbosas da família das liliáceas, hyacinthus vulgaris de Lineu, da subfamília das liliódeas, tribo das cileas, de lindas flores, mas um Jacinto com J grande, do género do Jacinto de “A Cidade e as Serras” do imortal Eça de Queiroz, descendente de uma nobre família do termo de Alcobaça onde ainda hoje existe uma povoação com o seu apelido.

O nome próprio deste meu amigo - Tude - tem uma interessante história que talvez valha a pena contar.

O seu avô materno, D. Gonçalo de Mendalvo, era um velho fidalgo que vivia os seus últimos anos da sua longa vida no vetusto solar da família e só tinha tido filhas o que lhe causava grande desgosto. Por sua vez as filhas casadas também só tinham filhas.

Sempre que estava para lhe nascer mais um neto, o venerando D. Gonçalo esperava ansiosamente que viesse um varão - mas nada! A notícia encontrava sempre o nobre ancião de olhar desconfiado e quando lhe diziam que tinha nascido mais uma linda menina, exclamava quase zangado e de sobrecenho carregado: Que diacho! Esta gente só sabe fazer louça rachada!

Mas a arrelia passava-lhe depressa e adorava as netas.

A sua filha mais nova estava outra vez de esperanças e D. Gonçalo também de esperanças de novo se encontrava, mal disfarçando a sua ansiedade na expectativa de ver enfim chegar um neto.

E o milagre deu-se dessa vez. Em casa de D. Mafalda, a filha mais nova do honrado fidalgo, via pela primeira vez a luz do dia um forte rapaz.

A alegria da família foi enorme - o pai do menino não cabia em si de contente e logo encarregou a filha mais velha de ir ao solar do avô levar-lhe a feliz notícia.

- E diz ao avô que é um grande rapagão e que lhe dou a honra de lhe escolher o nome!

A petiza correu pressurosa a dar a boa nova ao nobre velho que a recebeu comovidíssimo com os olhos rasos de água. Mas passados os primeiros momentos de emoção, o velho reagiu e mandou pela neta um recado ao genro:

- Diz ao teu pai que agradeço a atenção que teve e que então o menino fica a chamar-se Tude!

A miúda transmitiu de seguida ao pai o parecer do avô sobre o nome do neófito e logo aquele, ainda atarefado com os trabalhos resultantes do acontecimento, nunca tendo ouvido tão estranho nome, exclamou:

- Tude? Não haverá engano? Vai lá saber isso ao certo ao avô!

Mas o avô confirmou o nome a dar à criança.

- Tude, sim senhor. É um nome das mais nobres tradições na nossa família! E diz lá ao senhor teu pai que já que me encarregou de baptizar o menino, este ou há-de ficar Tude... ou nada!

Mais tarde esclareceu o genro porque havia escolhido nome tão pouco vulgar para o neto. Tude era um antigo nome que havia sido usado por muitos varões da família - e todos tinham sido ilustres e valentes, segundo antigas crónicas que o velho guardava religiosamente. Um Tude de Mendalvo, em 1340, batera-se bravamente no Salado e tinha voltado ao reino cheio de glória. Outro Tude, rezava uma velha lenda, lutara ao lado de D. Sebastião em Alcácer Kibir e morrera heroicamente nessa batalha, trespassado por um alfange de um berbere.

Outros Tudes da família, pelo rodar das séculos, tinham-se distinguido nas Artes, nas Letras e nas Ciências. Era um nome arcaico que caíra em desuso mas que o nobre ancião queria agora revivificar na pessoa do seu neto recém-nascido.

Mas se o nome próprio constituía uma exigência do avô, este tinha um solene pedido a fazer ao genro no qual punha o seu melhor interesse.

Com efeito ele era o último Mendalvo varão e corria-se o risco de perder-se o nome de tão ilustre família por falta de descendência masculina.

Como tinha agora um neto pedia encarecidamente ao genro que o último apelido do rapaz ficasse o dele para assim não se perder, na poeira dos tempos, o nome de tão nobre casa.

O genro não era de origem fidalga. Era um rijo plebeu cujo apelido era Cordeiro e cabe aqui fazer uma rápida referência como tinha entrado naquela família um homem do povo.

Cordeiro tinha conhecido de perto Mafalda quando anos antes regressara de África, para onde partira menino e moço a angariar a vida, pois era pobre mas sentia dentro de si energias a uma ânsia de trabalhar e de progredir que o não deixavam ficar quieto ali na aldeia a estiolar. Um parente afastado que estava em Angola arranjou-lhe lá emprego e para lá seguiu cheio de fé e de vontade de trabalhar. Tinha então dezoito anos e era alto e forte como um roble gigante da serra. Saúde, optimismo e ambições não lhe faltavam e na terra todos gostavam dele, incluindo o velho D. Gonçalo que o auxiliou na sua ida para África emprestando-lhe dinheiro para as passagens e outras despesas, sem qualquer interesse, não permitindo assim que ele se desfizesse, para emigrar, das suas pequenas courelas, como acontecia a tantos outros que se metiam à aventura.

Doze anos por lá andou a trabucar, sem voltar à aldeia que tinha sempre no pensamento, lutando sem desfalecer, revelando excepcionais qualidades de trabalho e de unidade que o impunham aos colegas e lhe garantiam a admiração e a estima dos patrões.

De moço de armazém de produtos ultramarinos, em poucos anos, com as economias que fez, passou a negociante do ramo em que se especializara. O café e o sisal, e também a lisura que punha sempre em todas as transacções, enriqueceram-no. Um caso como muitos, é certo, mas no que respeita ao Cordeiro havia que salientar a honestidade de processos que punha sempre nos seus negócios. Na terra já havia constado o seu triunfo e sua prosperidade. Ele próprio escrevia amiúde a D. Gonçalo, contando-lhe os seus trabalhos, narrando-lhe os seus projectos, por vezes pedindo o seu prudente conselho. Por mais de uma vez escreveu-lhe para lhe pagar a dívida que contraíra quando partiu para a África, o que felizmente podia fazer sem sacrifício nenhum, mas o velho fidalgo tinha posto uma condição que não queria desrespeitar: O Cordeiro só lhe pagaria a dívida pessoalmente quando um dia voltasse à Metrópole, rico e próspero.

E assim aconteceu realmente. Doze anos depois o Cordeiro regressava à terra e liquidava escrupulosamente a dívida que tinha contraído.

Tinha agora trinta anos e estava um homem feito, na força da vida, ainda mais forte, mais entroncado, tisnado por aquele magnífico sol africano, com uma interessante personalidade, revelando uma grande confiança em si próprio de homem que sabia muito bem o que queria e para onde ia.

D. Gonçalo gostou de voltar a vê-lo e de o ouvir falar com um transbordante entusiasmo das suas iniciativas e das suas ideias. Naqueles doze anos não tinha apenas trabalhado arduamente e feito fortuna. Tinha-se também cultivado.

Logo que chegara a Luanda, ainda como moço de armazém, tinha-se matriculado num curso comercial cujas aulas frequentava à noite. E depois do curso concluído, já em melhor situação, nunca deixara de ler e de estudar, mantendo-se a par de toda a vida da Província, em especial no que respeitava à sua economia.

D. Gonçalo orgulhava-se de ter contribuído para o êxito daquele rapaz, magnífica vergôntea da sua terra. E muito intimamente pensava como gostaria de ter tido um filho assim, com aquela fibra, ele que só tivera filhas franzinas e descoradas.

Foi nessa ocasião que Cordeiro voltou a ver Mafalda, a filha mais nova de D. Gonçalo que devia andar agora pelos vinte e dois anos, oito anos mais nova do que ele.

Quando abalara para África era ela uma garota de dez anos alegres e azougados mas agora estava uma senhora serena e distinta: um tanto polida e de hábitos delicados.

Cordeiro ficou admirado com a mudança. Quando a viu no escritório do pai ficou verdadeiramente deslumbrado. Era a única filha solteira e ajudava o pai na administração da casa. Também ela gostou de o ver, pois ainda se lembrava perfeitamente dele, embora fosse urna miúda quando ele partira. Achava-o na mesma, talvez mais forte. O Cordeiro disse-lhe uma amabilidade e elogiou a sua beleza, o que a fez corar ligeiramente.

O Cordeiro contou os seus planos a D. Gonçalo. Em Angola era o principal sócio de uma empresa comercial e industrial e era sua intenção fundar uma fábrica na terra que desse ocupação mais regular e mais remuneradora aos trabalhadores da região.

Quanto a ele, pensava repartir a sua actividade por Angola e pelas coisas que montasse na terra, passando parte do ano em África e outra parte junto dos seus.

Também pensava constituir família...

D. Gonçalo aprovava os projectos que achava sensatos e o Cordeiro começou a visitar o fidalgo com certa frequência quase sempre para discutir com ele as suas iniciativas e propósitos de desenvolver a terra. Não raro assistia a estas conversas a formosa Mafalda que se interessava pelos assuntos em discussão e frequentemente emitia o seu parecer. Os encontros passaram a ser diários, as visitas ao solar dos Mendalvos entraram nos hábitos quotidianos do Cordeiro e a breve trecho não passou despercebida a Gonçalo a corrente de simpatia que se estabelecera entre a filha e o rapaz. E na verdade assim era. Pelo lado de Cordeiro, apesar de audaz e ambicioso e de gostar doidamente de Mafalda, não se atrevia a olhar para tão alto, não fosse desgostar o fidalgo ou que o levasse a pensar que o visitava por interesse. Quanto a Mafalda, também esta sentia uma grande admiração por ele, pelo seu carácter firme e pela sua alegria e decisão. Adivinhava que ele gostava dela, sentia-se atraída para o seu convívio sempre que ele chegava para falar com o pai e por vezes pensava, o que a fazia esboçar um sorriso triste, num impossível casamento, ideia que logo afastava pois não era de admitir neste caso a concordância do seu austero pai.

Contudo tanto o rapaz como a Mafalda estavam profundamente enganados a este respeito. Na realidade, por sua vez, o velho fidalgo adivinhara a ternura, o interesse, enfim, a amizade que surgira naturalmente entre os dois, mas receava que qualquer deles nunca se decidisse a falar, dada a diferença de classes, ou do medo que sentiam de ferir o seu orgulho de fidalgo. Mas a verdade é que aquele casamento dar-lhe-ia grande satisfação, pois gostava imenso do rapaz e via a vantagem de refrescar com sangue novo, sangue plebeu cheio de vida e de virtudes, o sangue da sua família já cansado e anémico pelos sucessivos casamentos entre a parentela.

Uma tarde o Cordeiro chegou ofegante e nervoso ao solar, pois precisava de falar com urgência ao fidalgo. Quem primeiro encontrou foi Mafalda e não resistiu em dar-lhe em primeira mão a novidade: a fábrica de fiação e tecelagem que havia perto da vila estava à venda e ele estava disposto a comprá-la.

Sabia que a fábrica estava decadente por deficiências de gerência mas estava convencido que com a sua administração havia de progredir. Há muito que queria fazer qualquer coisa em benefício daquela terra mas era difícil de arrancar. Tinha agora uma oportunidade de começar, salvando da falência uma unidade industrial, mantendo o trabalho e o pão a muitas centenas de trabalhadores.

Entusiasmava-o a ideia de reorganizar com os seus métodos toda a empresa.

Mafalda entusiasmava-o com a ideia e acompanhava-o a imaginar reformas, novas construções, a criação de obras sociais, como se a ela fosse legítimo colaborar naquela iniciativa, pois em rigor nada tinha a ver com aquilo.

Entretanto D. Gonçalo tinha entrado no escritório, ouvira parte da conversa e apercebera-se da transacção. E encontrou ali um pé para promover uma aproximação entre a filha e o Cordeiro. Com a sua habitual franqueza declarou a ambos: - Eu só vejo uma maneira dessa obra se fazer e trabalharem os dois na recuperação da fábrica com o entusiasmo que estão aqui a demonstrar - é casarem-se! É casarem-se e quanto antes, pois já não têm idade nem tempo para desperdiçar, tanto que há para fazer!

Olharam os dois, estupefactos, o fidalgo e foi a filha quem quebrou o silêncio: - Mas o pai falava a sério? Era capaz de consentir neste casamento?

O Cordeiro, atrapalhado, com timidez, balbuciava umas palavras: - Se é do gosto de D. Gonçalo... Mas não sei se a menina Mafalda...

- Qual menina, nem meia menina, - respondeu o pai - eu vos abençôo, meus filhos, e marquem para o mais breve possível a data do casamento!...

Com efeito, fez-se o casamento, tanto do gosto de D. Gonçalo e de grande satisfação dos habitantes de toda a vila.

Cordeiro comprara a fábrica e após o casamento, com a entusiástica ajuda da sua mulher, começou a trabalhar afanosamente na sua remodelação.

Os negócios progrediram e em breve outra unidade industrial era montada, e outra, e outra...

Já lhes havia nascido uma menina – mais outra para a colecção, como arreliadamente observou D. Gonçalo – estiveram anos sem ter mais filhos até que se deu o feliz acontecimento com que começou esta narração - o do nascimento de Tude. Voltemos ao solene pedido que o velho fidalgo fez ao genro - que o último apelido da criança fosse o seu para assegurar a continuidade do nome da família.

Cordeiro não esperava um pedido daqueles. Ele sabia que o seu apelido era vulgar e não tinha nobreza. Sabia mesmo que alguns invejosos parentes da mulher tinham feito graça com o seu nome simples de homem do povo. Uma prima afastada, tão feia e solteirona quanto snob, ironicamente tinha sugerido a Mafalda, por despeito, que passasse a escrever o seu novo apelido, o seu nome de casada – Cordeyro - com y. Como ela dizia sempre tinha mais cachet e disfarçava a origem humilde do marido.

Mafalda nunca ligara àquelas manifestações de inveja mesquinha, apoiada ao arcaboiço forte do marido que lhe dava uma confiança ilimitada na vida. Cordeiro sabia isso tudo, mas sempre pensara que o filho deveria ter o seu nome. No entanto, um pedido do sogro para ele era uma ordem e compreendia bem o seu desejo de que o neto perpetuasse o nome da família, tanto que lhe pedia isso quase humildemente. Por outro lado, como bom português que era, sempre tinha sentido uma forte admiração pela fidalguia.

Por tudo isso condescendeu em sacrificar o Cordeiro à nobreza do nome da família da mulher. E assim o menino recebeu na pia baptismal o nome de Tude Cordeiro Meneses de Mendalvo.

Escusado será dizer que foi esmerada a educação de Tude. Conheci-o num colégio particular quando frequentava o liceu e pela vida fora sempre me dei com ele e observei de perto a sua vida. Por isso posso afirmar que este meu amigo de infância era um Jacinto! Durante os estudos secundários revelou um extraordinário pendor para as Artes e para as Letras e em breve adquiriu uma invulgar cultura humanística. Não se interessava grandemente pelos negócios do pai. Quando acabou o liceu foi estudar para França onde frequentou várias Universidades. Não lhe interessava especialmente concluir qualquer curso e assim frequentava as aulas dos melhores professores das melhores Universidades.

Em Paris chegou a estudar pintura e frequentou a Place du Têrtre, em Montmartre. Deixou crescer barbicha e deu-se com existencialistas. Em Viena estudou música com os melhores mestres. Passeou por toda a Europa e vagueava ele pela Escandinávia quando recebeu a triste notícia da morte do avô.

Mais tarde, entusiasmado pela cultura americana, deu um salto a Nova York onde frequentou a Universidade e Greenwich Village, o bairro dos artistas novaiorquinos.

Estudou nos museus e deslizou pela rampa cheia de arte moderna, do Guggenheim Museum.

Alugou um apartamento na Quinta Avenida e deu-se com a melhor sociedade americana. Mas em breve aborreceu os arranha-céus e regressou a Paris onde praticamente fixou residência. Vinha de vez em quando a Portugal onde o pai e a mãe o punham a par dos negócios da casa que continuavam a desenvolver-se extraordinariamente. Mas depois de umas semanas de contacto com as coisas práticas da vida voltava a Paris, aos Campos Elísios, à Opera, às conferências e vernissages de exposições de pintura e às grandes recepções. Passei várias semanas com ele em Paris e conheci o seu Grand Monde. Foi desde essa altura que comecei a chamar-lhe Jacinto...

No começo de um Verão, quando Tude se preparava para vir a Portugal passar umas semanas em casa dos pais, recebeu um telegrama. A mãe pedia-lhe que viesse com urgência. O pai adoecera de repente, estava mal e tornava-se necessária a sua presença. Tude tomou um avião e em poucas horas estava à cabeceira do pai.

Uma crise cardíaca prostrara o gigante. A sua vida intensa de trabalho não lhe poupara o coração e, no meio de uma desolação geral, em poucos dias o Cordeiro veio a sucumbir ao ataque.

Tude já não voltou a Paris e teve que assumir a administração da casa que o pai desenvolvera extraordinariamente. Era hoje uma grande empresa que empregava milhares de empregados e operários, abrangia várias fábricas e tinha um volume enorme de negócios.

Com a leal colaboração dos empregados superiores da empresa Tude deitou mãos à obra e arvorou-se em grande industrial.

Os negócios corriam normalmente segundo as rotinas estabelecidas e seguidas pelo pai, sem problemas nem acidentes de grande monta.

Tude adaptava-se bem àquela vida intensa e a casa continuava a progredir, acreditada como estava pela obra do pai.

Foi quando um Senhor; um tal Silveira - muito bem apresentado; de ar grave e solene se dirigiu aos escritórios da empresa e solenemente pediu uma audiência a Tude. Era um assunto muito sério que pretendia tratar. Tude concedeu-lhe a audiência e reservou-lhe toda uma manhã.

O senhor dizia-se especialista em organização de empresas, diplomado por uma Universidade estrangeira. Mostrava-se conhecedor das actividades da empresa, sabia em pormenor do seu movimento comercial e industrial e tinha conhecimentos da sua situação bancária.

Tude mostrava-se admirado por aquele estranho saber tanto ou mais do que ele da vida da sua própria casa. O Silveira esclarecia que fazia alarde daqueles conhecimentos para demonstrar a sua sagacidade e a sua capacidade. Mas não faria mistério do seu segredo - durante meses tinha lido na imprensa tudo o que se referisse às actividades da firma, tinha entrevistado clientes e fornecedores da casa e indirectamente tinha obtido informações comerciais e bancárias. Atrevidamente declarou que chegara à conclusão que a empresa estava financeiramente sólida, mas geria-se ainda por métodos “antiquados, obsoletos, ultrapassados”, segundo as suas próprias expressões. Em suma, vinha ali oferecer os seus serviços como técnico de organizações, pois estava ciente de que se a empresa não adoptasse com urgência métodos modernos de organização, quer no aspecto comercial, quer no aspecto industrial, não resistiria à feroz concorrência que se avizinhava. E demonstrava:

Tínhamos à porta o Mercado Comum, a EFTA, o GATT, a OCDE e outras combinações do abecedário e as empresas tinham de adaptar-se ao mundo de negócios que se realizassem no regime dessas organizações.

Tude ouvia estas teorias do estranho homem que não lhe eram de todo desconhecidas.

Ouvia com atenção mas não fazia comentários. O Silveira entusiasmado prosseguia, já em tom dominante, permitindo-se mesmo fazer reparos e criticas à administração da casa de Tude que o pai fundara e desenvolvera com tanta dedicação.

Tinha notado – continuava ele – que a casa não estava preparada para enfrentar as novas práticas económicas. E, ou muito se enganava, ou se não se arrepiasse caminho, em menos de meia dúzia de anos, aquela poderosa empresa era um caso perdido – ficaria à beira da falência! Era o seu prognóstico. E no meio nesta dissertação, o homem usava uma linguagem eminentemente técnica para impressionar. A cada passo falava em automação e na necessidade de automatizar os meios de produção e de administração. Citava a necessidade de planificar e programar as actividades da empresa. Referia-se com ênfase à problemática da dimensão, da produtividade e da rentabilidade empresarial. Até chegou a falar em Cibernética!

Enfim, o Silveira concluía que teria de haver a coragem necessária para salvar do caos toda aquela organização e adoptar e pôr em prática soluções válidas.

Tude, que começara por notar que aquele homem era simplesmente um atrevido, acabou por lhe achar graça, sobretudo àquela terminologia, e serenamente observava-o.

O Silveira, sentindo que deslumbrava e dominava o empresário, continuava a demonstrar os seus conhecimentos e por fim concretizou a sua proposta:

Pelo interesse - meramente profissional, note-se bem - que lhe despertara aquela empresa, pelo que ela representava já hoje na economia da Nação e com o propósito de defender o trabalho de alguns milhares de operários cujo futuro, como sociólogo, lhe causava muita preocupação, na sua qualidade de especialista oferecia os seus serviços ao Tude de Mendalvo para salvar a sua casa que, tecnicamente falando, considerava à beira da ruína.

Tude há muito pensava em remodelar os sistemas de trabalho da casa e meditava nas palavras do homem. Com efeito, havia grandes dedicações e mesmo muita experiência entre o pessoal, mas notava a existência do espírito rotineiro e a falta de elementos com ideias progressivas e modernas. Em certa medida dava razão ao homenzinho. Era preciso arejar a organização da casa, que tinha mais de trinta anos, com novos métodos e utilizar novas experiências e não dispunha de pessoas conhecedoras das novas técnicas de administração de empresas. Nesta matéria não tinha praticamente nenhum colaborador.

Com certa frequência, a propósito dos negócios da sua grande empresa, notava-se a falta de um técnico esclarecido que pudesse consultar ou até encarregar-se do estudo de um ou outro delicado problema.

O homem que estava diante dele tinha um ar arrogante, não havia dúvida. Era petulante na forma como punha as questões. Disfarçava mal o interesse evidente que tinha em arranjar um emprego – mas talvez fosse útil à empresa e Tude decidiu contratá-lo.

Durante várias semanas, depois de ser admitido, Silveira visitou todos os departamentos da firma, interrogou todos os responsáveis pelas várias secções, pediu-lhes inúmeros elementos e apresentou um minucioso relatório, recheado de mapas de desdobrar, estatísticas e gráficos. As suas conclusões eram em número de muitas dezenas e nelas recomendava enérgicas e drásticas medidas de reorganização. Salientava que o relatório era rigorosamente confidencial.

Tude passou a trabalhar com o Silveira quase todos os dias e os efeitos da sua actuação em breve se começaram a sentir.

Começou por criar o que ele chamava o “Serviço de Relações Humanas”, afim de estabelecer a melhor harmonia entre o pessoal, promover a maior justiça e equidade nas decisões que lhe dissesse respeito, obtendo-se assim melhor rendimento de trabalho.

O nosso técnico tinha notado que a idade média do pessoal da firma era muito elevado e impunha-se reformar todos os empregados que tivessem mais de 65 anos. Era necessário refrescar a empresa com sangue novo e todas as secções estavam repletas de velhada, cheias de vícios que era preciso limpar pois já não se adaptavam às novas técnicas.

Esta medida caiu como uma bomba, pois Tude concordou em mandar para casa muitas dezenas de empregados, mas fez questão em conceder-lhes reformas por inteiro, completando as pensões da caixa de previdência, embora isso custasse todos os meses muito dinheiro à casa. Esses antigos empregados, coitados, lá se tiveram de conformar com aquela imposição de descanso obrigatório e, cheios de desgosto, passaram à ociosidade.

Seguidamente o Silveira convenceu o Tude que, a propósito de qualquer questão que surgisse entre os empregados, se fizesse um rigoroso inquérito para se apurarem devidamente as responsabilidades e com melhor critério se pudesse fazer justiça. Em caso de faltas de certa gravidade deveria instaurar-se processo disciplinar. Segundo a sua opinião esta medida estava na melhor linha de orientação para se estabelecerem as melhores relações humanas.

E sucederam-se os processos disciplinares. Por dá cá aquela palha, à menor falta que um empregado cometesse, instaurava-se um processo disciplinar com instrutor e secretário devidamente designados. O pessoal vivia num desassossego e passava grande parte do tempo a depor como testemunha nos respectivos processos. Os empregados cruzavam-se nos corredores ou nas escadas ou encontravam-se nos elevadores e ao perguntarem para onde iam ou de onde vinham, as respostas eram sempre as mesmas: Vou depor no processo de Fulano ou venho de depor no processo de Sicrano! Nas várias secções discutia-se apaixonadamente o andamento dos processos e aguardava-se com ansiedade as respectivas decisões.

Um dia o Silveira, em face do grande número de processos em curso, propôs a criação dos “Serviços de Justiça” e que se contratasse um juiz aposentado para dirigir os trabalhos e outros funcionários para instrutores dos processos. É que já não dispunha de empregados idóneos a quem distribuísse os processos, pois até acontecia que a maior parte dos instrutores de uns processos eram arguidos noutros o que não se lhe afigurava conveniente...

Nessa altura deu que falar um caso que ficou conhecido nos anais da empresa pelo Processo WC.

Foi o caso de uma empregada, solteirona e com certas manias muito pessoais, se ter queixado de um colega não ter fechado devidamente a casa de banho quando lá se encontrava, numa altura em que, devido a umas obras, naquele sector só estava em funcionamento uma casa de banho para todo o pessoal.

Queixava-se a senhora que devido ao colega não ter fechado a sala de banho quando lá se encontrava, e tendo ela necessidade de lá ir, pôde entrar facilmente, deparando com o colega em cuecas o que considerava um atentado contra o pudor. A queixa teve o devido andamento e foi feito rigoroso inquérito.

O ponto fundamental da questão era o de saber se o colega não fechara a porta de propósito, se se esquecera de a fechar, ou se a fechadura estava avariada como declarava o arguido. Foram ouvidas dezenas de testemunhas e declarantes sobre a matéria. De tudo foram lavradas dezenas de autos de declarações, elaborados relatórios de peritagens e fizeram-se acareações. Foi designado um perito serralheiro, requisitado a uma das oficinas da fábrica da empresa, para se pronunciar sobre o estado da fechadura.

Depois de conclusos os autos e quando Tude apreciava cuidadosamente o volumoso processo para dar a sua decisão final, chegaram uns comerciantes estrangeiros que queriam avistar-se com ele por causa de uma importante encomenda de tecidos. O chefe da secção respectiva teve dificuldade em ser recebido pelo patrão, pois este estava em conferência com o Silveira, ocupadíssimo com o importante Processo WC e não podia atender ninguém.

O chefe da secção insistiu e Tude lá o recebeu à pressa. O empregado esclareceu-o de que se tratava de uma importante encomenda, da ordem dos vinte mil contos e que não convinha perder. Além do mais havia a concorrência e se a casa não cuidasse bem do assunto podia perder-se a transacção...

- Pois vá para o Diabo o negócio que eu agora não tenho tempo para essas coisas! Estou a apreciar o Processo WC e não tenho paciência para aturar maçadores!...

O empregado, estupefacto com aquela atitude, limitou-se a dizer:
- Seja como o patrão quiser...
Despediu os estrangeiros e não se fez o negócio.

Por estes e outros factos semelhantes, sentia-se uma certa crise na empresa. Do mal estar entre o pessoal, então nem era de falar nisso. Os numerosos processos disciplinares tinham dado origem à aplicação de vários castigos desde a suspensão de trabalho por alguns dias até a aplicação de multas e demissões. Vivia-se num ambiente de desconfiança. Corria o boato entre o pessoal que havia sido criada uma polícia especial constituída pelos elementos que haviam substituído os empregados reformados e demitidos e que eram todos da confiança do Silveira. Os atritos entre os empregados sucediam-se e os respectivos processos também.

E pela primeira vez, em mais de trinta anos de actividade, verificaram-se dificuldades de tesouraria. Foi o chefe da contabilidade que deu o alarme...

A questão teve de remediar-se com o crédito concedido por um Banco.

Foi então que os empregados mais antigos resolveram reagir e foram ao velho solar dos Mendalvos para falar abertamente com o patrão.

Tude recebeu-os imediatamente e aqueles velhos empregados tiveram ocasião de desabafar. Em sua opinião o rendimento do trabalho tinha diminuído espectacularmente, devido à tensão permanente em que vivia todo o pessoal. Além disso as despesas tinham aumentado extraordinariamente com reapetrechamentos desnecessários, com os enormes encargos resultantes da reforma obrigatória de tantos empregados e outras despesas inúteis propostas pelo Silveira. Acrescia que as vendas também tinham diminuído verticalmente, pois o patrão, ocupado com assuntos de importância secundária, não tinha tempo para apreciar certos negócios que se apresentavam à empresa. Atribuíam este estado de coisas à intervenção atrabiliária do Silveira em todos os assuntos da casa e à audiência que lhe dava o patrão.

O “Serviço de Relações Humanas”, como ele o orientava, era um autêntico paradoxo. Para bem de todos acabaram por pedir o seu afastamento.

Tude ouvira a exposição daqueles honrados homens apreensivamente e quando se despediram prometeu que ia ponderar devidamente o assunto.

Combalido, desorientado, sofrera um tremendo choque e não sabia que fazer.

Há muito que notara a acção perniciosa dos processos de trabalho do Silveira, mas este tinha criado tal ascendente sobre ele que faltava-lhe a coragem para tomar qualquer medida.

Resolveu aconselhar-se com a mãe.

Durante dias não apareceu no seu gabinete de trabalho. Constava nas fábricas e nos escritórios que o patrão estava doente. Não recebia em casa ninguém, nem o Silveira que nervosamente tentava falar com ele. Nos serviços da empresa deixou de se obedecer às ordens do Silveira e na ausência do patrão os respectivos chefes assumiram a direcção dos negócios.

Passados alguns dias Tude voltou ao seu gabinete. Mandou chamar o Silveira mas este partira na véspera para Lisboa, segundo o informaram.

Mandou arquivar todos os processos disciplinares que estavam por despachar e suspendeu os que estavam em curso. Readmitiu os reformados que quisessem voltar ao serviço e passou a tratar com todo o interesse dos negócios da casa com os respectivos encarregados.

Dias depois voltou o Silveira que pediu para ser recebido pelo Tude.

O assunto era simples - não tinha sido compreendido naquela empresa. O pessoal reintegrado tinha feito resistência passiva e sabotara os seus métodos de trabalho. Enfim, vinha comunicar-lhe que era seu desejo deixar o lugar, tanto mais que acabara de receber um convite, que já tinha aceitado, para ir reger uma cadeira de “Relações Humanas” numa Universidade americana, no Texas...

Tude convocou para uma reunião magna todos os empregados antigos da casa, incluindo os velhos reformados, uma espécie de Conselho dos Veteranos.

Recebeu-os na seu gabinete de trabalho, sob o olhar do pai que dominava a sala numa magnífica fotografia.

Apertou-lhes a mão, um a um, observou-os a todos no meio de um silêncio comovente e com voz calma falou-lhes assim:

- Digam-me cá amigos: Como é que fazia o meu pai que no seu tempo éramos todos tão prósperos e vivíamos tão felizes?...


Cícero Galvão
Dezembro de 1964

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