Os contos e crónicas recolhidos neste blog foram todos publicados no jornal “Re-nhau-nhau”, trimensário humorístico do Funchal, nos números do seu aniversário, coincidente com a época do Natal. Recolheram-se 36 contos e crónicas publicados no jornal nas edições dos meses de Dezembro dos anos de 1946 a 1977.

Partida para o Funchal em 1946

AS ESTRANHAS TEORIAS DE SEBASTIÃO MATIAS

Conheci o Sebastião Matias quando ele frequentava assiduamente uma tertúlia literária “Studium” onde várias gerações de estudantes, numa aparente brincadeira, tiraram os seus cursos.

Sebastião Matias era estudante de Filosofia e no decorrer das discussões académicas discernia de tal forma e desenvolvia tão estranhas teorias que os colegas e amigos lhe chamavam o Matias das Filosofias.

Quando o conheci andava ele preocupado com um problema que considerava de suma importância e que o absorvia por completo – tratava-se do problema do destino das coisas.

À semelhança do que acontece com o Homem que desde o nascimento à morte, seguindo o seu destino, pode passar por riquezas e misérias, sofrer dores e rejubilar com alegrias, conhecer a felicidade e a desgraça, amar ou odiar, ser amado ou ser odiado e nunca sabe como vai morrer – se no aconchego de um leito com toda a assistência espiritual e humana ou numa catástrofe, na hecatombe de uma guerra desgraçadamente abandonado e sozinho - à semelhança do que acontece com o homem – pensava Sebastião Matias – as coisas também sofrem vicissitudes do seu destino.

E confiando a barbicha rala que então usava, exemplificava:

- Em regra, o destino das coisas anda ligado ao destino das pessoas suas possuidoras. Vejam, por exemplo, o destino de um objecto que está longos meses na montra de uma loja e um dia é levado por um comprador qualquer. Tal objecto foi certamente fabricado juntamente com dezenas, centenas ou milhares de outros pares, feitos da mesma massa, igualzinho no feitio, exercendo as mesmas funções para que foram produzidos. Pois bem, continuava discorrendo Sebastião, cada objecto que saiu da mesma forma ou da mesma máquina, de uma fabricação em série, seguirá um destino diferente. Uns ficarão a amarelecer nas montras e nos armazéns dos vendedores, transformados em inúteis monos; outros viajarão, percorrendo as sete partidas do Mundo, entrando em ambientes elegantes ou assistindo às mais altas conferências políticas ou de negócios – em contacto com personalidades de relevo, ouvindo as suas opiniões, escutando os seus lamentos, conhecendo as suas intrigas. Outros ainda, arrastarão a vida humilde dos seus donos, na quietude de um modesto lar, de um modesto empregado...

- Já pensaram, continuava Sebastião, no destino de um simples bocado de papel? Tanto nele se podem escrever os mais belos poemas de um poeta inspirado, os mais profundos pensamentos de um filósofo ou as mais ternas frases de amor de um romântico como as mais cruéis palavras de ódio ou as mais desumanas decisões se entrar na posse de um rancoroso ou de um déspota...

- Ou ter um destino muito mais triste se for usado como papel de embrulho ou outra utilização menos digna – observou um companheiro de tertúlia, para encerrar a dissertação...

* * *

Também Sebastião se interessava muito pelas questões de vontade, sobretudo pela força de vontade, e pelos vários complexos que atingem certas pessoas. Dedicou-se, principalmente, ao estudo da cura ou eliminação desses complexos pela força de vontade. Debruçou-se sobre os mais complexos tratados de psicologia e especializou-se na educação da vontade e nas suas doenças. Definiu as vontades fracas, próprias dos apáticos, dos emotivos, dos irresolutos e dos rotineiros e estudou a sua cura através, da educação da vontade, pela higiene do corpo, pela prática dos bons hábitos, pelo espírito de disciplina, pela cultura dos grandes ideais humanos, com o objectivo de se resistir às tentações de todos os vícios e prazeres, fortalecendo, em suma, a Vontade.

Foi nessa altura que Sebastião conheceu D. Berta, uma viúva rica que gastava prodigamente a fortuna deixada pelo marido, amealhada em longos anos de exploração de um negócio de fanqueiro com vendas a prestações. Viúva rica casada fica, diz .a sabedoria das Nações, e a D. Berta não faltavam pretendentes, ainda mal tinha aliviado o luto. Em vida de seu defunto marido tinha levado vida modesta, recatada, cheia de economias, a ver a conta do banco crescer e logo que esta atingia uma quantia razoável comprar um bom prédiozinho de rendimento. Mas agora, viúva e sem filhos, trespassada a loja por mais umas boas centenas de contos, era a vez de gozar bem a vida, por ela e pelo marido que esse, coitado, tinha levado uma vida de trabalho a juntar tostão a tostão, que significava privação a privação, aquela enorme fortuna.

D. Berta viajou, teve flirts, tinha carta de condução e comprou um belo carro para passear, no qual nunca lhe faltaram boas companhias.

D. Berta nunca foi grande volante mas chegou a entrar em rallies e gincanas com o seu béguin de momento, mas um dia, no verão, quando se pavoneava no Algarve num belo carro descapotável, foi de encontro a uma carroça de um vendedor ambulante de fruta, atropelando o vendedor, mandando o burro pelos ares, espalhando por toda a praça centenas de peças de fruta, num reboliço medonho. O carro ficou muito amachucado mas D. Berta saiu ilesa do acidente, apenas fortemente desmoralizada. Ficou de tal maneira assustada que por mais tentativas que fizesse nunca mais foi capaz de guiar.

Quando se punha ao volante ficava de tal maneira nervosa que o carro seguia às curvas e por mais de uma vez teve de fazer travagens bruscas para não chocar com outros veículos. D. Berta desistiu de guiar e foi nesse transe que Sebastião a conheceu.

Logo diagnosticou um complexo de medo que se resolveria pela força de vontade.

Pretendeu convencer a senhora que sabia guiar perfeitamente. Tinha feito o seu exame de condução, tinha praticado muito, chegara a adquirir grande confiança em conduzir.

Aquele desastre tinha sido um mero acidente que podia ter acontecido a qualquer pessoa por mais experiência que tivesse. Devia readquirir confiança em si própria e voltar a guiar.

Mas D. Berta continuava cheia de complexos e não se atrevia a seguir sozinha num carro, nem nenhuma das suas amigas se decidia a passear com ela de automóvel.

Sebastião continuava a incutir-lhe confiança:

- A Senhora sabe guiar, sabe guiar muito bem! Diga comigo: - Eu sei guiar, eu sei guiar...

D. Berta, coitada, repetia aquelas palavras sem convicção:

- Eu sei guiar, eu sei guiar muito bem...

- Isso, isso, entusiasma-se Sebastião, diga com mais força, tem de se convencer que sabe guiar muito bem ... Continue, vá: - Eu sei guiar, eu sei guiar muito bem, eu vou passear de automóvel e sou eu quem vai a guiar...

D. Berta papagueava aquela lenga-lenga e quase adormecia de cansaço. Até que chegou o dia em que D. Berta teria que pôr à prova a sua força de vontade. Sebastião prontificou-se a acompanhá-la no carro, dando assim grande prova de confiança nela. E animava-a:

- Vamos, minha Senhora, vejo que vou consigo sem receio nenhum porque a Senhora sabe guiar, sabe guiar, sabe guiar muito bem...

D. Berta aparentemente confiante, pôs o carro em marcha, arrancou com uns solavancos sofríveis e seguiu pelas ruas da cidade. Sebastião, ao lado da condutora, satisfeito com a marcha dos acontecimentos, continuava a incutir-lhe confiança:

- Veja que tudo está a correr bem, a Senhora guia maravilhosamente.

E comentava os obstáculos que a Senhora ia vencendo:

- Essa curva foi muito bem dada, muito bem.... Fez muito bem em meter agora a segunda... Perfeito, perfeito...

Sebastião considerava a Senhora completamente reabilitada para o volante quando surgiu pela frente, atravessando-se na rua um enorme camião... Teria sido necessário fazer uma manobra rápida, uma travagem brusca, talvez uma guinada rápida de volante para evitar o choque... Mas, a D. Berta faltaram-lhe os reflexos. Ficou aterrorizada com o volume descomunal do camião que se aproximava rapidamente para ela. Não fez nada, largou o volante, deu um grito de terror e tapou a cara com as mãos... Sebastião ainda tentou dar uma guinada ao volante mas já era tarde... O choque deu-se, brutal, com um estrondo ensurdecedor, no meio de uma nuvem de poeira, vidros estilhaçados e chapas retorcidas.

D. Berta e Sebastião envolvidos por toda aquela amálgama, foram retirados, a custo, muito feridos, com algumas costelas e outros ossos partidos, mas felizmente sem ficarem em perigo de vida... Este exercício da cura pela vontade custou-lhe muitos meses de cama. D. Berta nunca mais pegou num volante e resolveu casar-se de novo, principalmente, como ela dizia, para o marido lhe guiar o carro. Sebastião desiludido com a experiência, dedicou-se à exploração de outras teorias...

* * *

Dedicou-se então, apaixonadamente, aliás como a tudo a que se dedicava, à Astrologia. Estudou exaustivamente a influência dos astros na vida humana e tornou-se um perito na matéria. Conhecia em cada dia a conjugação dos astros e em face do signo de uma pessoa, sabia o que lhe convinha dizer ou evitar em determinado dia. Na tertúlia do café “Studium” entretinha-se a aconselhar os colegas quanto à conduta para os dias seguintes, explicando, por meio de cartas astronómicas dos astros influentes em função do momento precioso do nascimento dos interessados – hora, dia, mês e ano... Assim, definia se convinha ou não faltar a um exame, fazer um pedido, evitar um arrufo com a namorada ou arriscar uns escudos no totobola, conforme o signo a considerar...

A sua fama como astrólogo correu célere, embora ele se considerasse um simples amador. Mas havia os descrentes que não acreditavam naquelas previsões e classificavam a prática como superstição. Sebastião combatia-os, fundamentando as suas teorias em estudos sérios e referindo um alto número de individualidades que se distinguiram em todos os ramos de actividade humana, nas Artes, nas Ciências, na Política e que não tomavam uma decisão sem consultar os astros.

Esta nova actividade de Sebastião Matias, acompanhada, aliás, da sua vasta cultura e mesmo de um encanto pessoal, abria-lhe as portas da melhor sociedade e com frequência era convidado para recepções e saraus literários onde brilhava e encantava os outros com os seus conselhos e previsões astrológicas.

Numa dessas reuniões, Sebastião foi alvo das atenções especiais dos convidados. O número de interessados pela astrologia era muito grande e Sebastião teve de responder a numerosas consultas. E descrevia tão bem os caracteres e indicava com tanta convicção a conduta que as pessoas deviam seguir, quer fosse a propósito de negócios quer fosse a propósito de interesses sentimentais, que todos queriam saber o que diziam a seu respeito os astros.

Entre os assistentes encontrava-se uma linda Senhora, considerada uma das mulheres mais bonitas da sua geração. Chamava-se Eva e era tão cortejada quanto infeliz aos amores, como quase sempre acontece às mulheres excepcionalmente belas. Estava a caminho do quarto casamento, depois de uma viuvez e de dois divórcios, tinha pouco mais de trinta anos e fazia andar a cabeça à roda de muitos homens de todas as idades. Não acreditava na Astrologia, nem sabia qual era o seu signo. Considerava a Astrologia como uma espécie de superstição. Foi convidada a consultar Sebastião que já estava a interessar-se pelo seu caso. D. Eva não se sentia inclinada a meter-se nesses assuntos, tinha uma espécie de receio em obter um horóscopo fatalista, preferia viver na ignorância do seu futuro, do seu destino, e viver uma vida ao acaso, como até ali.

Por fim foi instada, acedeu a responder a algumas perguntas de Sebastião. Começou por declarar ter nascido a 23 de Agosto.

- Nesse caso é virgem...

- Virgem?! Exclamaram em coro os circundantes, juntamente com a própria D. Eva.

Sebastião, estranhando a dúvida, limitou-se a confirmar:

- Garanto que é Virgem, astrologicamente falando.

D. Eva não quiz saber mais nada sobre o seu signo e Sebastião deixou de se interessar pela Astrologia.

Sebastião formava-se nesse ano e tinha de apresentar a sua tese de licenciatura. Depois de muito pensar, havia-se decidido por um tema que há muito o preocupava. Já havia até contado o caso aos amigos e tinha-se aconselhado com os professores.

Tinha escolhido um tema aliciante – A Pancada. Sim, a pancada, a pancada propriamente dita, com a paulada, a martelada, o traumatismo, o choque, tudo o que contundisse com qualquer ser ou qualquer coisa...

Sebastião tinha até esboçado um longo ensaio, de que às noites, lia largos passos aos amigos da tertúlia do Café. Era um ensaio sobre a Pancada e os amigos quando o viam perguntavam-lhe ironicamente como ia o ensaio de pancadaria...

Mas o trabalho de Sebastião era, com efeito, um trabalho sério. Desenvolvia a teoria de que a pancada esteve sempre na base de qualquer civilização. Na própria educação do Homem aparecia a pancada como elemento pedagógico tradicional. Neste aspecto, Sebastião opunha-se à necessidade da pancada. Reconhecia que tudo quanto o Homem construía apoiava-se na pancada. As pedras para a construção partiam-se com pancadas. A mesma pedra para ser aparelhada e cortada em blocos que erguiam palácios e catedrais, sofreu pancadas. As grandes obras do Homem que alteraram a própria Natureza, como a abertura de túneis que venceram montanhas e canais que ligaram oceanos foram feitas à pancada. As obras primas de escultura que o Homem arrancava à pedra bruta faziam-se com pancadas. O artista lavrava a prata e transformava-a em magníficas obras de Arte por meio de pancadas.

Quantos milhões de pancadas teriam sido necessárias para erguer as pirâmides do Egipto? Naquele tempo, como noutros menos recuados, aumentava-se o rendimento do trabalho dos escravos à pancada.

Nas galés marcavam-se remadas com pancadas dadas a compasso. Tanto as tábuas das antigas naus e caravelas como as chapas de aço dos modernos navios eram unidas com pancadas.

Uma coisa, porém Sebastião não queria reconhecer – a influência da pancada na formação ou na educação do Homem. Aceitava que, por vezes, a pancada fazia voltar à vida um recém-nascido com morte aparente, levando um bom par de açoites mal acabasse de nascer. Mas não podia admitir que o homem, criação de Deus fosse por qualquer razão espancado. Infelizmente sabia que desde a origem da humanidade todas as espécies de violência tinham sido exercidas sobre o homem. Nas escolas davam-se reguadas nas mãos das crianças quando não estudavam ou não sabiam as lições ou apanhavam com uma menina de cinco olhos até as mãos incharem e espirrarem sangue, se não pancadas pelo corpo todo com uma vara ou um azorrague... Se até muitos pais espancavam barbaramente os filhos não só com as mãos mas com correias e toda a espécie de objectos contundentes com o propósito de os educar! – Com estas práticas espalhavam-se sementes de violência e mais tarde, pela questão mais fútil, os homens jogavam à pancada. E não só os homens individualmente – os grupos, as nações...

Sebastião quase se rendia à fatalidade de os homens levarem a vida a espancarem-se uns aos outros e lembrava-se que um poeta havia contado:

Na batalha da vida forçoso se torna
Que uns hão de ser martelo,
outros bigorna.
Conclusão fatal deste dilema
Abandonar a bigorna triste
e ser martelo...

Na batalha da Vida... se até os poetas reconheciam que a Vida era uma guerra permanente, ai daquele que não estivesse na posição cimeira de ser martelo...

Mas não, havia que reagir. Pela Razão, pela Moral, pela Religião, a Pancada tinha de ser banida para sempre na formação e na educação do Homem.

Teria de ficar reservada apenas como meio mecânico necessário para a realização das grandes obras que promovem o aumento do seu bem estar... Só assim uma Civilização se poderia impor e perdurar no Tempo, na Eternidade...

Assim, pensava Sebastião Matias no seu Ensaio sobre a Pancada, no ensaio de pancadaria contra a Pancada...

* * *

Nenhum amigo de Sebastião sabia se ele alguma vez já tinha amado. Desconfiavam que era infeliz aos amores. No entanto, o que todos sabiam era que nunca ninguém tinha respeitado, considerado, e admirado tanto a Mulher como ele. Para Sebastião a Mulher era sempre a Irmã, a Noiva, a Mulher, a Mãe...

Para Sebastião a Mulher era a Amizade, a Ternura, a Dedicação e o Sacrifício ... Na idade em que teve de fazer os seus versos cantou a Mulher em poemas de grande beleza. Cantou-lhe os cabelos, as faces, o colo, as mãos, o corpo todo... Num poema em que cantava os dedos da Mulher, comparava-os, quando fechados, a botões de flores que desabrochavam em obras maravilhosas e em afagos de amor que curam as dores e saram as mágoas...

E esses dedos eram, claro, lírios ou nenúfares que brotavam das águas ou flores raras de todas as cores...

Os amigos comentavam que Sebastião punha a Mulher num pedestal tão alto que depois não era capaz de lhe chegar...

Na verdade, um dia soube-se que Sebastião se apaixonara. Era uma empregada de uma galeria de arte que frequentava assiduamente. Conversava com ela com enorme ternura, dava-lhe pequenas lembranças de uma extraordinária delicadeza, fazia-lhe versos maravilhosos. Quando falava dela aos amigos colocava-a nos píncaros da Lua, punha-a de facto num pedestal altíssimo e nunca a conquistou...

Quando um dia Sebastião se resolveu a pedir-lhe formalmente namoro com sinceras promessas de casamento, declarando-lhe toda a ternura que sentia por ela, a confessar-lhe que sentia nela a sua alma gémea, ela mostrou-se indiferente e desprezou-o. Gostava apenas de o ouvir, até mesmo de o desfrutar, achava-o inteligente, culto, com uma interessante imaginação... mas nada mais...

Sebastião teve um grande desgosto. Deixou de frequentar a galeria de arte. Mas passados tempos passou por lá, a rondar a porta, ao fim da tarde, à hora de fecharem as lojas... E então viu sair a sua apaixonada. Seguiu-a com a vista e viu-a aproximar-se de um rapaz, apertaram-se as mãos, deram um abraço, enlaçaram-se os dedos e, muito chegados, desceram a rua absortos num grande enlevo. Sebastião havia reconhecido o rapaz: o caixeiro da loja de fazenda que ficava defronte da galeria, o qual nunca tinha sido capaz de fazer um simples verso nem nunca oferecera uma prenda que envolvesse uma doce ternura...

Desesperado, Sebastião correu a refugiar-se numa boîte . Mandou vir uma bebida. A orquestra tocava música moderna. Reparou no pianista, no bateria, no contrabaixo. O pianista batia com os dedos nas teclas do piano de que saíam sons melodiosos , o bateria batia nos tambores e nos pratos e na caixa de rufo, obtendo um agradável ritmo... O contrabaixo batia nas cordas, numa espécie de pizzicato. Afinal aqueles artistas também batiam nos instrumentos e com aquelas pancadas faziam arte... Daquela não se tinha ele lembrado para o seu Ensaio.

Um amigo entrou na boîte e viu-o acabrunhado. Veio por trás dele e massajou-lhe demoradamente o ombros. Sebastião voltou-se para ver quem o afagava assim.

Chegando o copo à boca, disse para o amigo:

- A música é vinho...

Este só lhe respondeu:

- E embebeda mesmo...

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A orquestra tocava agora o Begin the Beguine de Cole Porter. Era a música predilecta de Sebastião que começava a sentir um extraordinário bem estar naquele ambiente morno da boîte, com o amigo a massajar-lhe lentamente os ombros, como se estivesse num banho de sauna.

Voltou a reparar nos músicos que batiam nos instrumentos. Ainda iria a tempo de aproveitar aquela ideia para o seu Ensaio sobre a pancada, para o seu Ensaio de pancadaria como diziam os amigos... E sorriu-se ao relembrar toda a sua série de falhadas e estranhas teorias e do apodo que os amigos lhe puseram, a ele Sebastião Matias, o Matias das Filosofias...


Cícero Galvão
Dezembro de 1966

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