Os contos e crónicas recolhidos neste blog foram todos publicados no jornal “Re-nhau-nhau”, trimensário humorístico do Funchal, nos números do seu aniversário, coincidente com a época do Natal. Recolheram-se 36 contos e crónicas publicados no jornal nas edições dos meses de Dezembro dos anos de 1946 a 1977.

Partida para o Funchal em 1946

O PEQUENO MARÇANO

O petizito, com a sua saca de retalhos onde guardava toda a sua bagagem e um pequeno embrulho com o farnel que a mãe carinhosamente lhe preparara, tomou a camionete rumo ao comboio que o levaria a Lisboa.

Dos dez filhos do casal, era o mais velho dos que estavam ainda em casa e tinha só onze anos. Os mais crescidos já tinham todos abalado para a cidade, as raparigas para servir e os rapazes para lojas e oficinas.

Só ficavam agora quatro em casa, dos nove anos para baixo até ao bébé que só gatinhava ainda. Ele ia ter com um dos irmãos mais velhos, que era já um homenzinho de dezasseis anos, e era meio-caixeiro numa loja em Lisboa.

A mãe ajudara-o a subir para a camionete, repetia-lhe as recomendações, mil vezes feitas antes da partida, e enxugava uma lágrima de saudade à ponta do avental.

No verão tinha passado pela aldeia um sujeito de Lisboa que gostara do garoto. Tinha ficado apalavrado arranjar-lhe um emprego na sua loja e dar-lhe-ia comida, dormida e o ordenado que fosse da lei.

O pequeno José Maria tinha acabado a quarta classe e ficara combinado que o homem escreveria marcando a data em que havia de partir para Lisboa.

Dias antes a mãe recebera a carta. Era sempre a mãe que tratava daquele negócio da colocação dos filhos. E lá estava ela mais uma vez a despachar um para as lides da cidade, e só ela e Deus sabiam como tinha o coração apertado.

O motorista fez soar várias vezes o claxon, a anunciar a partida e a chamar os atrasados. O rapaz já se tinha acomodado num lugar de janela e olhava a mãe com os olhos húmidos que na estrada aguardava que a camioneta arrancasse. Logo que iniciou a marcha trocaram um último olhar de adeus e acenaram as mãos até o veículo desaparecer numa nuvem de fumo de gasóleo.

O José Maria observava a estrada debruada de pinhais, caminhos que ele conhecia, palmo a palmo, das suas brincadeiras e excursões com companheiros de escola. Embora cheio de saudades da mãe, do pai e dos irmãos e de tudo o que o rodeara durante os seus poucos anos, uma esperança o animava quando pensava que ia conhecer novas terras e novas gentes.

Na sua generosidade de criança levava o firme propósito de trabalhar afincadamente e ser cumpridor. Um irmão mais velho que já estava empregado na cidade tinha-se dado bem. Quando ia a férias aparecia bem vestido, trazia algum dinheiro que repartia com ele e com os outros irmãos e todos os meses mandava uma importância para ajudar os pais. Ele devia também ser assim.

Enquanto lhe ocorriam estes pensamentos, a camionete chegou à estação de caminho de ferro. E foi uma azáfama para descer, comprar o bilhete e saltar para o comboio, porque este partia logo de seguida.

Depois foi a sensação de uma experiência nova, a sua primeira viagem de comboio, agora através de paisagens inteiramente desconhecidas para ele, o andamento veloz que o fazia ver as casas, as árvores, os postes do telégrafo, aos riscos horizontais, a ficarem rapidamente para trás.

E assim chegou a Lisboa. O irmão ficara de o esperar na estação para o levar à loja do tal senhor que o queria para marçano. O homem não era lá da terra. Aparecera um dia de passeio, acompanhado do patrão do irmão que era da aldeia e calhou combinarem o emprego. Que tal seria ele? O patrão do irmão era bom homem. Tratava-o bem e no verão, quando ia passar uns dias à terra, até lhe dava boleia. Lembrava-se mal da figura do sujeito e não simpatizara muito com ele. Notara que era de poucas falas, um tanto áspero, ríspido no trato.

Mas tinha esperança que não iria dar-se mal. Trabalharia com vontade e tudo havia de correr bem.

O irmão, no cais, quando o viu à janela do comboio, saudou-o alegremente e depois ajudou-o a descer com o seu saco de retalhos. Era ao fim da tarde e logo o encaminhou para a loja do patrão.

Era uma mercearia de bairro, acanhada, na qual trabalhavam apenas o dono e um empregado. Ele seria o marçano, o moço de recados que de manhã teria de ir a casa dos fregueses para recolher as encomendas e, depois de aviadas, fazer a distribuição com um cesto às costas. Nos intervalos trabalharia na loja e num pequeno armazém, a varrer, a limpar e a ajudar ao balcão.

O dono da loja naquele dia da chegada estava de má catadura. Recebeu-os à pressa e informou-o de que naquele dia ficaria em casa dele, mas nos dias seguintes dormiria na loja e viriam trazer-lhe a comida. E despediu o irmão secamente, dizendo-lhe que fosse descansado porque o rapaz ficava bem entregue.

O patrão no dia seguinte revelou-se efectivamente um bruto. O pequeno José Maria passou a dormir numa enxerga no chão, a um canto do armazém, e dispunha de alguidar de barro para se lavar. A comida era escassa, constituída por restos da casa do patrão, que a mulher trazia de manhã numa marmita e tinha de dar para o almoço e para o jantar. Mas isso era o menos. O patrão mostrava-se cada vez mais intratável. Irascível por natureza, não perdoava a mais pequena falta ao rapaz. Dizia-lhe palavrões e os safanões sucediam-se.

O pequeno José Maria trabalhava das oito da manhã às oito da tarde e ficava fechado na loja durante toda a noite. Aos domingos lá ia ter com o irmão. Mas não tinha coragem de se queixar. Além dos passeios ao domingo, o pequeno José Maria entretinha-se a ver o movimento das ruas e as montras dos estabelecimentos sempre que saía para receber as encomendas dos fregueses ou para fazer a sua distribuição.

Chegara o mês do Natal e a rua animara-se extraordinariamente. Os comerciantes quotizaram-se e enfeitaram a rua, de lado a lado, com cordões de lâmpadas de várias cores e figuras pintadas alusivas à quadra. Para o pequeno José Maria era um deslumbramento ver as luminárias.

O patrão continuava com os maus tratos e o rapaz acabou por ganhar coragem e queixou-se ao irmão. Este ficou apreensivo e prometeu arranjar-lhe outra casa. Que aguentasse até ao fim do ano, pelo menos, depois se veria.

O José Maria foi aguentando as sevícias do patrão, na esperança de que o irmão o libertasse daquele martírio.

Chegou a véspera do Natal. O pequeno José Maria teve de sair a meio da tarde para fazer um recado. Mas no regresso distraiu-se a ver as montras e o movimento das ruas. Numa praça havia um mercado improvisado de brinquedos. O que ele adoraria possuir uma daquelas maravilhas! Esqueceu-se das horas a ver o movimento de um combóio eléctrico. Depois, a observar um presépio, lembrou-se do Natal na sua aldeia. Os doces que a mãe fazia e a missa do galo.

Recordou-se da brincadeira das Janeiras, no princípio do ano, quando ia cantar em coro, com um rancho de amigos, à porta dos habitantes da aldeia que lhes davam guloseimas:

Esta casa é
Casa de homem de bem.
Gosta de toda a gente
E reparte do que tem.
São figos, são nozes,
É queijo e marmelada,
Ora deitem qualquer coisa
Cá para a rapaziada.

E à porta da senhora Adelina que tinha fama de ter bom vinho:

Viva lá senhora Adelina,
Raminho de bem querer!
Traga o pichorro e o copo,
Venha-nos dar de beber!

E depois em casa de uma vizinha que fazia uns excelentes enchidos:

Oh minha rica senhora,
Dê lá volta ao seu fumêro.
Se não quiser dar a metade,
Dê um chouriço intêro!

E o José Maria continuava sonhando com o seu Natal da aldeia que nesse ano não podia passar ao pé dos pais, dos irmãos e dos amigos.

E com estes sonhos o tempo passara e quando voltou a si viu que já era muito tarde. Escurecera e as luzes decorativas já alegravam a rua cujo movimento era cada vez maior. Assustado com o atraso abalou numa corrida para a loja onde chegou esbaforido, a deitar os bofes pela boca.

O patrão estava desesperado com a demora de mais de três horas! Num dia de movimento como aquele e sozinho na loja com o caixeiro!

Quando viu entrar o marçano assustado, a arfar de cansaço, o patrão explodiu: - Seu malandro! Por onde andou a vadiar?! Aqui a roubar o meu dinheiro! No fim do mês ponho-te com dono! E segurando o pequeno José Maria pela gola do guarda-pó cinzento, esbofeteou-o violentamente.

O rapaz ficou atordoado. Com a força das bofetadas caiu no chão. Levantou-se e chorou de raiva que era só o que podia fazer contra as brutalidades daquele malandro. Tomou uma decisão: - Não estaria ali mais um minuto! E desarvorou pela porta fora, numa correria louca pela rua.

Depois caiu em si. Que iria fazer? O irmão tinha ido à terra passar o Natal. Encontrava-se sozinho, abandonado naquela imensa cidade. Parou de correr e estava completamente desorientado. Onde iria passar a noite? A noite de Natal! Porque é que o irmão não lhe arranjara já outro emprego?

E deambulou atónito pelo passeio, voltando a mirar as montras. As lojas estavam quase a fechar. Nisto parou junto de uma mercearia parecida com a do antigo patrão.

Observou a montra enfeitada com garrafas de vinho fino e de champanhe decoradas com tirinhas de papel branco imitando palha. No vidro da montra, em letras coladas feitas de algodão, liam-se as palavras: "Boas Festas", com uma grande estrela prateada por cima e outra por baixo, a um canto.

Nisto, ao lado da estrela que estava em baixo, saltou-lha à vista um letreiro que dizia: "Rapaz, precisa-se."

O José Maria, numa resolução, entrou na loja. Aquela hora já não havia fregueses e um velhote estava por detrás do balcão à espera da hora de fechar. Vendo entrar o rapaz, perguntou-lhe: - O que queres, garoto? E o José Maria, por sua vez, perguntou ansioso: - É o senhor que precisa de um rapaz?

Observou-lhe o velhote: - Então é a esta hora, na véspera de Natal, que procuras emprego?

O pequeno, timidamente, contou-lhe a sua história. O velhote ouviu-o atentamente e depois perguntou-lhe:

- Onde ficas esta noite?

- Se o senhor me deixar ficar mesmo aqui... Eu lá também dormia no armazém...

E o velhote com ar bondoso, respondeu-lhe, acabando com aquela ansiedade: - Bem, rapaz, ajuda-me a fechar a loja. Hoje ficas em minha casa e se te portares bem podes contar com o emprego.

Fechada a loja, encaminharam-se para casa e o rapaz fez a consoada com o seu novo patrão e a mulher.

E nunca para o pequeno José Maria voltou a haver um Natal tão feliz como aquele.

Cícero Galvão

Dezembro de 1974

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