Os contos e crónicas recolhidos neste blog foram todos publicados no jornal “Re-nhau-nhau”, trimensário humorístico do Funchal, nos números do seu aniversário, coincidente com a época do Natal. Recolheram-se 36 contos e crónicas publicados no jornal nas edições dos meses de Dezembro dos anos de 1946 a 1977.

Partida para o Funchal em 1946

UM MILAGRE DE S.JOÃO BOSCO

S. João Bosco foi padre e escritor.

Nasceu em Castel Nuovo d'Asti, Itália, em 1815 e morreu em Turim em 1888.

Fundou a Ordem dos Salesianos ou padres de S. Francisco de Sales, que tem por missão recolher crianças abandonadas ou pobres, criando escolas profissionais para essas crianças, onde adquirem uma profissão agrícola ou industrial.

S. João Bosco foi canonizado praticamente já nos nossos dias, em 1 de Abril de 1934.

Há já alguns anos pediram ao meu amigo Freitas, especializado em questões de organização administrativa e de gestão de pessoal, a sua colaboração para proceder à organização de um curso de formação de pessoal administrativo numa empresa, bem como cursos de reciclagem e de reconversão de pessoal.

Por sinal que um dos administradores quando se falou de cursos de reciclagem, embora concordando inteiramente, ficou preocupado porque não sabia onde se havia de ir arranjar tanta bicicleta.

Lá explicaram ao sujeito em que consistiam os cursos de reciclagem e ele sossegou...

O curso de reconversão era frequentado por pessoal não especializado ao qual se dava oportunidade de entrar nos quadros administrativos para preencher um certo número de vagas.

Os candidatos que sentiam vocação para a carreira administrativa nada tinham a perder em tentar o curso, pois se não mostrassem aptidões para trabalhos de escritório eram colocados noutros quadros para os quais mostrassem maior aptidão.

As matérias que constituíam os cursos para os cargos administrativos eram português (dividida em duas partes, gramática e redacção) e a aritmética comercial.

Chegada a altura da prestação de provas, o Freitas reparou numa senhora que enquanto fazia o seu exame escrito, escondia na mão esquerda um pequeno objecto.

Cábula para a ajudar no ponto não era com certeza pois, coitada da senhora, pouco letrada como era, sabia lá ela o que era uma cábula!

Intrigado com o caso, o Freitas atreveu-se a perguntar à senhora que objecto era aquele que escondia.

A senhora corou, um tanto enervada, e explicou que aquele objecto directamente nada tinha com o exame, pois tratava-se de uma relíquia de S. João Bosco, um pedacito de pano da sua capa.

Efectivamente, o tal objecto era uma pequena caixa de madeira escura com um tampo de vidro, através do qual se via um pequeno pedaço de uma espécie de fazenda acastanhada.

E a senhora esclareceu mais: - É uma relíquia que me acompanha sempre nos momentos mais difíceis da minha vida. Não é minha. É de uma grande amiga que me deixa trazê-la sempre que preciso e esta prova é decisiva para a minha vida. Timidamente perguntou: - Não faz mal que eu tenha aqui a relíquia comigo, pois não?

O Freitas respondeu-lhe que estivesse à vontade com a sua relíquia e afastou-se.

Terminaram as provas e o Freitas não pensou mais no caso.

Passados uns dias reuniu-se o júri para obter a classificação final.

Eram três os membros do júri - um classificava a prova de gramática, outro a de redacção e outro a de aritmética comercial.

Cada membro do júri dava a nota do ponto apreciado e foi-se fazendo assim a lista de classificação dos candidatos, até que chegou a vez de apreciar as provas da tal senhora que trazia a relíquia de S. João Bosco.

O Freitas reconheceu a prova pela boa letra e excelente apresentação e não resistiu à tentação de contar o episódio da relíquia aos colegas.

Quanto às notas eram muito baixas.

As provas de gramática e aritmética comercial tinham sete valores e a de redacção estava classificada com oito.

No conjunto as provas prestadas tinham obtido a média de pouco mais de sete valores e não mereciam, portanto, aprovação.

O júri ia passar adiante. Mas nisto toca o telefone. Era para o Freitas. Era um amigo.

Depois do telefonema, o Freitas contou aos colegas do júri:

- Vejam a coincidência! Era um amigo meu a recomendar a candidata de que acabamos de apreciar as provas. Já era para me telefonar há mais tempo. Mas não lhe foi possível. Contou-me uma história triste de pobreza envergonhada. A senhora, embora solteira, tem grandes encargos de família. Tem a seu cargo dois sobrinhos órfãos e um irmão mais novo e ela faz tremendos sacrifícios para manter o irmão a estudar. Enfim, lá lhe tive de dizer que a senhora tinha provas muito fracas e não estava aprovada. Foi curiosa esta coincidência, vir o telefonema mesmo no momento em que tínhamos acabado de ver a prova...

Por momentos ficaram todos calados. O vogal que classificara a prova de gramática, entretanto, voltou a apreciar a respectiva prova que estava classificada com sete valores.

E quebrou o silêncio: - Bem, a prova da senhora efectivamente está fraca, mas está limpa, tem boa apresentação, vendo bem as coisas talvez lhe pudesse dar nove valores...

O Freitas que tinha apreciado a redacção (oito valores), impulsionado não se sabe por que forças, também voltou a ler a prova e sentenciou: - A apresentação é de facto excelente. A senhora tem uma letra linda. Se fosse uma prova de caligrafia teria uma excelente nota. A redacção é fracota mas tem uma certa fluência e não tem erros de ortografia. Bem, talvez lhe possa também dar um nove.

O Freitas reparou então que sem qualquer combinação prévia estavam todos possuídos de um sentimento de boa vontade e espírito de tolerância.

Chegou a vez de se pronunciar o que tinha apreciado a prova de aritmética comercial.

E estava a ver agora a prova com óculos cor de rosa.

Descobriu coisas certas que não tinha notado da primeira vez. A apresentação era também excelente e não tinha considerado esse aspecto na primeira classificação.

Considerou que a senhora tinha qualidades de método que poderiam fazer dela uma boa empregada de escritório depois de uma certa experiência.

E salientava que efectivamente a prova estava muito limpa, muito bem apresentada, e concluiu assim: - Bem, apesar de tudo, sempre posso dar-lhe um nove...

Chegou assim a senhora à média de quase nove valores.

Então o Freitas, num sentido de justiça, observou que havia alguns candidatos que tinham média de nove e que os candidatos com nove e mais valores não chegavam para as vagas existentes.

Assim, propunha que com um pouco de água benta (benta por S. João Bosco?) se bonificassem os pontos com um valor como era prática fazer até nos estabelecimentos oficiais.

Assim só ficariam excluídos os que tinham classificação muito baixa, depois de uma revisão atenta das provas.

Todos concordaram. Feitas as contas finais a senhora da relíquia passou e teve direito a ser provida num lugar de escriturária, sem prejuízo de ninguém.

Acabaram a reunião todos com a consciência tranquila e uma grande serenidade de espírito.

À saída o Freitas passou por uma sala onde viu a tal senhora. Cumprimentaram-se com o olhar e o Freitas reparou que ela na mão esquerda apertava nervosamente a relíquia de S. João Bosco...

Cícero Galvão
Dezembro de 1977

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