Quem me havia de dizer que eu, um dia, teria de tomar aquela atitude com o Ferdinando?
Meu amigo de infância, o Ferdinando foi sempre um recatado rapaz, filho obediente, trabalhador, bom estudante e era o meu melhor amigo, o meu amigo dilecto, daqueles que os pais gostam que os seus filhos se dêem com eles.
Pois o Ferdinando cresceu, estudou, formou-se e, encarreirado num bom lurar, casou-se.
Percorreu, com toda a normalidade, o ciclo evolutivo que vai da infância à idade adulta, como aliás era de prever, dado o seu carácter e a maneira serena, calma, ponderada como encarava e resolvia todos os acontecimentos e todos os problemas que a Vida punha perante ele.
Não foi daqueles amigos de infância que a adolescência, a maior idade ou o diferente Destino de cada um separa e pela vida fora se encontram só de vez em quando.
Não, o Ferdinando era um amigo de sempre. Amigo de sempre no tempo e no espaço, como nos despedíamos, com um abraço, no final da nossa correspondência, sempre que o acaso do trabalho ou as férias nos separavam temporariamente.
Quando lhe nasceu o primeiro filho deu-me a honra de me convidar para seu compadre e fui padrinho do neófito com uma grande alegria e uma grande satisfação por assumir tais responsabilidades que cimentavam mais ainda aquela tão pura e sincera amizade, dando-lhe foros de verdadeiramente familiar.
Depois, o lar que o Ferdinando constituira foi acrescido por mais filhos, muitos filhos, lindas e encantadoras crianças que adoravelmente me tratavam por tio, o que me desvanecia e me prendia para sempre àquela exemplar família cuja vida se desenrolava dentro dos mais puros princípios da moral cristã.
Estão, pois, os meus queridos leitores a ver a minha enorme aflição, a minha atrapalhação, melhor, a minha tremenda angústia, que me desorientava por completo, quando me contaram o que tinha acontecido ao Ferdinando com as inevitáveis consequências para a sua família.
Não queria acreditar quando a minha mulher me contou a volta que se verificara no lar do Ferdinando que eu considerava como o meu segundo lar.
Ao tomar-se conta da notícia era, na verdade, caso para se cair para o lado sem sentidos, varado de admiração.
Minha mulher confidenciara-me entre lágrimas de desgosto, nada mais, nada menos, que o Ferdinando tinha abandonado a família!
Era esta, com efeito, a pura verdade, escusávamos de estar com eufemismos!
Na manhã. desse dia, a mulher do Ferdinando procurara a minha, não só para desabafar, como também para pedir os meus bons oficios para uma chamada ao bom caminho do transviado Ferdinando. E, no meio de um choro convulsivo, contara tudo à minha mulher. Ferdinando abandonara a casa havia já algumas semanas e era evidente que andara mouro na costa, ou melhor moura na costa.
De há tempos para cá que ele vinha demonstrando cada vez maior desinteresse pela família e pela vida de casa, inventando mil pretextos para chegar tarde ou para viagens de serviço que justificavam a sua ausência frequente durante muitos dias.
Apurara a mulher que o Ferdinando se perdera de amores por uma jovem elegante vizinha a quem costumava dar boleia à ida e à volta do emprego.
Ela era secretária da administração de uma importante empresa e os frequentes encontros com o Ferdinando, encontros que começaram por ser ocasionais e depois eram já combinados, tinham-no apaixonado pela pequena, sentimento a que ela correspondia generosamente.
A questão evoluíra de tal forma que o Ferdinando acabara por deixar a casa, abandonando a mulher e os filhos.
Ainda há pouco tinha estado com eles e não havia dado por nada. Tinham guardado bem as conveniências e agora aí estava eu com o tremendo encargo de falar com o Ferdinando para o fazer voltar ao bom caminho, como a mulher me solicitava e eu sentia que era meu elementar dever, dadas as minhas relações com ele, como as de um verdadeiro irmão.
Mas como fazer essa diligência, Santo Deus?!
Como havia eu de abordar assunto tão delicado quando estivesse com o Ferdinando, aquele santo (santinho de pau carunchoso, soprava-me o meu subconsciente)?!
Como podia eu chamar ao bom caminho aquele amigo de infância que se transviara?!
Minha mulher insistia para que eu interviesse, dada a minha intimidade com a família e o ascendente que, em certa medida, tinha perante ele.
Inventando o pretexto de um negócio qualquer combinei um almoço com o Ferdinando.
Quando nos sentámos à mesa de um sossegado restaurante dos arredores sentia-me nervoso e não sabia como encetar a conversa.
Começámos por conversar de banalidades, do pretenso negócio, pretexto para o almoço, de tudo menos do verdadeiro motivo que me tinha levado a encontrar-me com ele. Até que me enchi de coragem e perguntei-lhe como iam a mulher e os filhos, pois que, por ele ter saído por uns dias, já não ia lá a sua casa havia algum tempo. O Ferdinando nesta circunstância mostrou-se mais à vontade do que eu, percebeu perfeitamente a minha intenção e contou-me tudo. Tinha-se apaixonado loucamente pela vizinha e resolvera deixar a casa mas não abandonaria a família porque continuaria a contribuir com tudo para a sua subsistência. Nunca lhes faltaria nada! Sentia-se altamente responsabilizado por ter desviado do bom caminho a pequena que revelava bons sentimentos e era de boas famílias e não podia agora desprezá-la sob pena de a tornar uma desgraçada.
Eu podia ficar descansado: à mulher nunca faltaria nada. Mas a vida tinha destas coisas. O caso dele não era único. E continuava a argumentar deste teor.
A breve trecho apercebi-me da conversa do Ferdinando, da sua argumentação, que tendo ele no fundo, uma boa formação, estava perante um problema de consciência relativamente à situação que tinha criado à pequena. Era para ele agora uma questão de honra não desprezar a jovem vizinha, tanto mais que os seus pais a tinham escorraçado depois de saberem o que se tinha passado, porque a sua própria mulher, despeitada, lhes havia contado tudo.
Tentei argumentar com o Ferdinando, dizendo-lhe que a sua obrigação fundamental era a da famí1ia que havia constituído.
Que tinha de reagir perante os acontecimentos e, sem deixar de proteger moralmente a pequena, devia romper com aquela 1igação e voltar à família como era seu dever.
Mas o Ferdinando não se convencia. Sentia-se responsabilizado por tudo e não podia naquele estado de espírito abandonar a pequena.
Então lembrei-me de uma história que conheço há muitos anos e francamente não sei se fui eu que a imaginei, se a li, ou se, como se diz num prefácio dos "Homens e Bichos" de Axel Munthe, simplesmente a sonhei ou se sonhei que a sonhei. Seja como for, decidi-me a contar a história ao Ferdinando e se o leitor conhecer o seu autor, diga-mo para me tirar deste embaraço.
Tomei fôlego e com uma expressão e um tom de voz verdadeiramente fraternais comecei a contar:
- Olha, Ferdinando, meu verdadeiro amigo, meu irmão: As mulheres são o Diabo, quando não se trata das nossas próprias mulheres, claro! Às vezes põem-nos numa situação de culpados quando são elas as verdadeiras culpadas. Estás perante essa rapariga com um complexo de culpa e quem sabe se, afinal, tu é que és a grande vítima da sua ambição, da sua vaidade, da sua leviandade e ela é que é a verdadeira culpada! Tu tens nome, tens uma posição invejável na sociedade, tens fortuna! Ela interessou-se por ti e insinuou-se...
E por este andar contei-lhe tim-tim por tim-tim a tal história que se aplicava ao caso...
E continuei: - Escuta, conheço uma história em que também há uma ligação de um intelectual de renome, um grande escritor, com uma linda rapariga também dada às intelectualidades. Mas as suas relações tinham chegado a um ponto de saturação, pela parte dele, de forma que se traduziam numa frieza, num desinteresse que embora quisesse disfarçar não conseguia.
Sentia-se ele responsabilizado pelo que tinha acontecido e não queria afastá-la porque sentia nisso uma espécie de remorsos. Ela apercebia-se do seu desinteresse e da cerimónia que ele fazia para romper definitivamente com aquela ligação.
E foi ela que um dia se resolveu a falar claro. Numa ocasião em que o intelectual se mostrava longínquo mas denunciava hesitação ou escrúpulos, tratando-a mesmo, como ela sentia, com uma certa comiseração, foi ela que pôs termo à situação equívoca.
- Há muito que venho notando o teu desinteresse, a tua saturação por mim. Mas, por outro lado, sinto que, por uma questão de delicadeza ou de pena, ou talvez por um sentido de responsabilidade, não tens tido coragem de romper comigo. Quero, portanto, dizer que não deves sentir esses remorsos. Se estás convencido que foste tu que me conquistaste, que me seduziste, que, como julgas, me fizeste perder de amores por ti, estás redondamente enganado! Lembras-te como nos conhecemos? Tinha-me entusiasmado por ti em virtude da publicidade feita à tua volta, a propósito da publicação de um teu livro. Confesso que até essa altura ainda não tinha dado por ti como escritor. Mas o ruído da publicidade fez-me interessar pela tua obra que li num fôlego e acabei por me interessar também por ti. Lia tudo o que se escrevia a teu respeito, não perdia as tuas entrevistas nos jornais, na rádio e na televisão. Com efeito estavas em forma nessa época: tinhas imaginação, tinhas verve, tinhas mesmo um certo poder de argumentação, enfim tinhas admiradoras e eu passei a ser uma delas. Tive então um enorme desejo de te conhecer pessoalmente. Um dia vi-te entrar para uma sala de concertos e comprar um bilhete. Eu também ia ouvir esse concerto. Já tinha bilhete mas tive uma inspiração. Dirigi-me à bilheteira e comprei um lugar ao lado do teu. Durante o concerto não reparavas em mim mas como eu não tinha programa, a certa altura tentei espreitar o teu quando o consultaste. Reparaste no meu gesto e amavelmente emprestaste-me o programa, indicando-me a peça que se estava a tocar. Agradeci timidamente mas só te devolvi o programa no fim do concerto, porque fingia-me acanhada, não sabendo o que fazer entretanto. Foi quando te apresentaste, talvez um tanto admirado por eu não dar indícios de te reconhecer.
Sim, tu, a pessoa de quem naquele momento toda a gente falava. Quando ouvi o teu nome, fingi então reconhecer-te. Mostrei-me profunda conhecedora da tua obra o que te desvaneceu. Cultivei a tua vaidade. Sem darmos por isso já estávamos na rua e convidaste-me a tomar chá. Levei tempo a aceitar, mas é claro que aceitei, pois se isso já estava previsto desde que me sentei ao teu lado. Durante a conversa anunciei-te que no dia seguinte ia à inauguração de uma exposição de pintura de um pintor meu amigo. Nesse tempo desenvolvia uma grande actividade intelectual e não me escapavam concertos, exposições e conferências. Não foi para mim surpresa quando te vi na tal inauguração, embora me mostrasse surpreendida por aquela feliz coincidência. E daí por diante fui-te deixando pistas que tu seguias fielmente até te conquistar por completo, mas dando sempre a impressão que tu é que me conquistavas...
De há tempos para cá notei o teu aborrecimento. E depois notei também a tua falta de coragem para o denunciares, para pores as coisas em pratos limpos, e tenho andado a saborear todo esse teu embaraço. É que eu também me aborreci de ti mas não farei tanta cerimónia. Afinal tu não eras aquele intelectual superior que a publicidade apregoava. Tiveste uns fogachos de talento, é certo, escreveste duas ou três obras felizes, a publicidade emprestou-te fama, mas depois caíste na vulgaridade. Quando notei que te aborrecias de mim, rejubilei e tive pena de ti... Estava ansiosa que te aborrecesses de vez e tivesses a coragem de desaparecer de vez. Mas tu continuavas hesitante, cheio de indecisão, absolutamente falho de personalidade e não te resolvias a abandonar-me. Compreendi que não tomavas uma decisão por condescendência para comigo. Pensavas que na tua consciência pesava a culpa de me teres desencaminhado, de me teres feito abandonar os estudos e de me teres enchido de vergonha por ter saído da casa dos meus pais... Estavas convencido que me protegias e que eu sem ti não seria ninguém. Como estavas enganado! E para to provar sou eu que tomo uma atitude franca, clara: Também me aborreceste porque me desiludiste irremediavelmente. E assim como te conquistei, deixo-te neste momento. Podes ir-te embora e não tenhas quaisquer escrúpulos, pois se julgas que foste tu que me desviaste, eu é que te conquistei e voluntariamente quis ser companheira do teu destino...
Podes sair, não tenhas qualquer preocupação comigo...
Contei a história, de um fôlego, e olhava ansiosamente para o Ferdinando à espera da sua reacção psicológica. Com aquela história pretendia fazer-lhe ver que, possivelmente, ela também teria graves culpas naquela ligação, que justificavam da parte dele menos escrúpulos em a abandonar.
Mas então notei que o Ferdinando se mostrava enervado, com uma expressão que denotava completo desacordo com a moral da história, não reconhecendo nela qualquer paralelismo com o seu caso...
E, numa explosão de raiva, batendo um murro na mesa, assim como quem não quer deixar os seus créditos por mãos alheias ou ver minimizados os seus méritos de conquistador, exclamou irado:
- Não, não! No meu caso não tenho dúvidas nenhumas! As coisas não se passaram assim! No meu caso fui eu que conquistei a pequena!...
Pensei que era afinal um caso completamente perdido e eu próprio estivera para ali a gastar em vão todo o meu latim. E sem dizermos mais palavra abandonamos aquele pacato restaurante com a minha missão completamente falhada...
Mas para sossego dos puritanos ou dos Catões que me leiam, sempre contarei o final da história, da outra história, da história do meu amigo Ferdinando...
Também o tédio, o aborrecimento ou a saturação acabou por atingir aquela aventura, aliás igual a tantas outras. E um dia a pequena (como ele tão ternamente lhe chamava) de cuja conquista tanto se sensibilizava, para não dizer orgulhava, fugiu-lhe, ao que constou, com um arquitecto...
Por certo este teria mais vastos projectos que o Ferdinando e a pequena não hesitou em trocá-lo...
E o Ferdinando, que já andava a meditar na história que eu lhe havia contado, aquela história que não sei bem se fui eu que a imaginei, ou se a sonhei, ou se sonhei que a sonhei, procurou-me para me contar tudo, para me confessar que tudo aquilo tinha sido uma aventura sem nexo.
Estava disposto a terminar com aquele intermezzo, rompendo de vez com aquela estúpida ligação.
E deu-se o regresso ao lar, ao carinho da mulher e dos filhos. E eu voltei ao grato convívio daquela família onde sempre encontro a amizade fraterna dos meus compadres e a especial ternura do meu afilhado e de tantos sobrinhos...
Cícero Galvão
Dezembro de 1968
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