Os contos e crónicas recolhidos neste blog foram todos publicados no jornal “Re-nhau-nhau”, trimensário humorístico do Funchal, nos números do seu aniversário, coincidente com a época do Natal. Recolheram-se 36 contos e crónicas publicados no jornal nas edições dos meses de Dezembro dos anos de 1946 a 1977.

Partida para o Funchal em 1946

A ARTE DE BEM FALAR AO TELEFONE

O Senhor Silva, respeitável capitalista da nossa praça, tinha na sua secretária, nada mais, nada menos do que meia dúzia de telefones. Um ligado à central da empresa, outro, privativo, ligado directamente à rede, outro, interno, ligado aos vários serviços da empresa, e mais três telefones directos que ligavam directamente às filiais da empresa em Paris, Londres e Nova Iorque.

Na mesa daquele homem verificava-se quase sempre grande azáfama, com os telefones a retinir a todo o momento, sucedendo-se os telefonemas, trocando-se as linhas, por vezes falando o Silva consigo próprio. Com frequência vinham telefonemas de Paris e de Nova Iorque ao mesmo tempo e se o negócio dizia respeito às duas filiais o Silva punha os interlocutores em contacto, juntando o auscultador de um aparelho ao bocal do outro, enquanto ele atendia um terceiro telefonema. Dava gosto ver aquela azáfama e os seus colaboradores que observavam frequentemente aquelas andanças consideravam-no muito a sério um autêntico “virtuose” do telefone.

Um dia o nosso homem de negócios tinha de receber uma pessoa importante que lhe ia propor um não menos importante negócio, quer dizer, de harmonia com a importância das pessoas.

A visita sentou-se à beira da secretária do Silva e começou a expor ao que vinha. Nisto, toca um telefone. O Silva faz sinal de que era só um momento de interrupção e atende a chamada. Era um caso complicado de uma abertura de crédito num banco. O Silva citava números, exigia descontos, ameaçava que mudava de banco. De vez em quando encolhia os ombros para a visita, como que a desculpar-se, mas só passados mais de dez minutos deu por terminado o negócio e pousou o auscultador.

- Oh Freitas, desculpe a interrupção. Mas estes bancos, estes bancos... Se não nos pomos à defesa levam-nos couro e cabelo... Faça favor de continuar...

O Freitas balbuciou: - Bem, tenho comprador em Carachi...

Novo toque de telefone. O Silva, visivelmente contrariado, pede nova suspensão da conversa e atende. Era de Paris. Outra complicação com compra de uma partida de champanhe. O Silva falava e gesticulava, fazendo sinalefas ao Freitas, desculpando-se da interrupção, demonstrando o seu virtuosismo ao telefone enquanto ajustava o negócio. Terminado o telefonema exclamou: Oh estes franceses, estes franceses... Mas, oh Freitas, desculpe, diga lá o que é que compram em Carachi?...

O Freitas, enfim, ia a começar: - O meu correspondente em Carachi...

Toca novamente um telefone. Mais gaifonices do Silva a pedir desculpa. Era a filha. Perguntava se podia passar pela caixa e levantar cinco contos para um fim de semana no Funchal com umas amigas. O Silva não queria largar a massa mas a filha tanto insistiu que lá o convenceu e terminou o telefonema. Pousado o telefone, suspirou o Silva: Ai estas raparigas, estas raparigas... Mas, oh Freitas, diga lá, o seu comprador em Carachi é mesmo firme?

Tentou responder o Freitas: - É pessoa de confiança e oferece bom preço por...

Outro toque de telefone. Era a mulher. Novo sinal do Freitas a desculpar-se. Tapando o bocal com a mão segredou ao Freitas: É a minha mulher, é chatice pela certa!

Era a mulher a dizer que não fosse jantar tarde porque iam lá os Pires. Que não se esquecesse de levar o champanhe francês porque as reservas da casa estavam esgotadas. Por fim, lá desligou. E recomeçou: - Ai estas mulheres, estas mulheres... Mas, oh Freitas, desculpe mais uma vez, isto agora deve parar, diga lá, diga lá, então o que é que compra o seu homem de Carachi?...

O Freitas, já impaciente, remexendo-se na cadeira, respondeu:

- Bem, em Carachi há muita falta de ...

Trim... Trim... Outro impertinente telefonema. Era o filho. Soube que a irmã tinha apanhado cinco contos e também queria ser contemplado.

O grupo tinha sido aumentado e também iam uns rapazes... Até parecia mal ele não ir também. Como o fim de semana era ao Funchal, o Silva não tinha coragem de dizer que não. Lá deferiu o pedido. Desligou e ainda a pensar no tiro comentava: Estes rapazes, estes rapazes... Veja lá, oh Freitas, mais cinco contos. Bem, oh Freitas, vamos lá a ver se isto agora sossega. Diga lá então o que quer o seu amigo de Carachi?...

- Bem, o cliente de Carachi...

Toca de novo um telefone. – Irra! Não se conteve o Silva. Isto hoje está demais! Mas fez sinal ao Freitas para mais uma vez esperar. No entanto, logo que ouviu a voz da interlocutora a expressão do Silva abriu-se num sorriso. Piscou um olho ao Freitas, fez-lhe sinal de silêncio com o indicador sobre os lábios e o Freitas ouviu: - Oh querida, hoje é impossível... Vão lá os Pires jantar... Oh amor, bem sabes como eu sacrifico todos os compromissos por ti mas hoje é-me impossível sair contigo... Amanhã já pode ser... Sim, levo champanhe francês, daquele cá da casa, do que tu gostas. Daquele que faz muitas bolhinhas e picos no nariz... ah, ah, ah...

O Freitas não podia mais. Levantou-se e, em bicos dos pés, saiu do gabinete subrepticiamente...

Quando o Silva acabou aquele namoro descarado e clandestino voltou-se para o lugar onde estava o Freitas ainda com um sorriso feliz a bailar-lhe nos lábios e a dizer: - Estas garotas, estas garotas...

Mas ficou surpreendido quando não o viu.

Ainda estava mal refeito da surpresa quando tocou novamente o telefone. O Silva atendeu e o seu espanto foi maior. Era o Freitas que de uma cabine, do outro lado do fio, conseguia finalmente falar à vontade com o Silva. E começou assim a conversa: - Olhe, oh Silva, lembrei-me daquele slogan “não vá, telefone” e como não havia meio de falar consigo quando estava aí ao seu lado, vim cá fora telefonar-lhe porque assim estamos à vontade...

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O Silva concordou e sempre fechou o tal negócio chorudo com Carachi que lhe deu para muito champanhe e para as suas extravagâncias.

Cícero Galvão

Dezembro de 1972

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