Os contos e crónicas recolhidos neste blog foram todos publicados no jornal “Re-nhau-nhau”, trimensário humorístico do Funchal, nos números do seu aniversário, coincidente com a época do Natal. Recolheram-se 36 contos e crónicas publicados no jornal nas edições dos meses de Dezembro dos anos de 1946 a 1977.

Partida para o Funchal em 1946

A MENINA E A BONECA


Era um encanto quando a menina passava, acompanhada da mãe, por aquela montra da loja de brinquedos. Era uma excitação para os seus quatro anitos ver tantas maravilhas expostas - Automóveis, vários bichos de peluche muito felpudos, coloridas bolas e bonecas, muitas bonecas. Sobretudo as bonecas prendiam a atenção da menina que não queria arrancar da montra onde esborrachava o narizito vermelho e embaciava o vidro com a respiração.

A mãe tinha de a despertar, puxando-lhe a mão com força:

- Vamos, filha, estamos com pressa!

A petiza ainda resistia mas lá se deixava arrastar lamuriando. Era sempre assim quando passava por aquela montra. Mas um dia o encanto foi maior. Na montra estava uma linda boneca, com um alegre vestido, com uma cara linda, de belos olhos azuis e a cabeça cheia de caracóis louros.

A menina ficou encantada com a boneca e perguntou à mãe o preço:

- Quanto custa, mamã, uma boneca assim tão linda?

A mãe também impressionada com a perfeição da boneca, espreitou o preço, numa etiqueta pendurada no vestido. Eram quatrocentos escudos.

- É muito cara, filha! Custa muito dinheiro! Só para pessoas muito ricas!

E a petizita ficou triste perante a realidade de não lhe ser possível ter a boneca.

Mas a menina depois de chegar a casa, a todo o instante falava da boneca. Brincava com ela em imaginação. Era vê-la, de vez em quando, sem nada nos braços, a fingir que embalava a boneca imaginária para a adormecer e a ralhar porque a menina não queria dormir.

Como acontece a muitas crianças que imaginam amiguinhas, esta criou uma boneca invisível para brincar. Até lhe pôs um nome: Catarina. E era uma obcecação com a boneca imaginária. Fingia que a adormecia e a deitava. Dava-lhe banho e de comer. Depois passou a pedir à mãe que a levasse mais vezes à rua para ver a boneca. A mãe fazia-lhe a vontade e sempre que saía levava-a para ver a boneca. A menina admirava-a muito com os olhos cheios de ternura e fixava-lhe todos os detalhes: os cabelos doirados, olhos azuis, as faces coradas, os dentitos a verem-se atrás dos lábios semi-abertos, uma covinha no queixo, o vestido aos folhos, os sapatinhos pretos de verniz, muito brilhantes nos pequenos pés com meias brancas muito esticadas. Era, na verdade, uma adoração ver a boneca.

- Que pena ser tão cara!, exclamou a menina para a mãe.

E acrescentou com um raciocínio cheio de lógica:

- Também se não fosse tão cara já a tinham comprado e assim não a podia ver na montra quase todos os dias...

E, momentaneamente, assaltava-lhe uma grande alegria ao pensar que sendo a boneca cara, nunca mais ninguém a compraria. Embora não a pudesse comprar e brincar com ela quando quisesse, ao menos via-a todos os dias e brincava com ela em imaginação.

De noite sonhava com a boneca. A mãe, por vezes, dava com ela a agitar-se na camita a proferir palavras:

- Dorme Catarina! Não faças maldades!

E depois sossegava, afagando a almofada, como se fosse a boneca.

Numa manhã apareceu muito triste a falar com a mãe. A Catarina estava doente. Tinha que se chamar o médico. E pedia o termómetro para ver a febre que tinha. A mãe sossegava-a, dizendo-lhe que a boneca não estava nada doente e até a levou à rua para a petiza ver a boneca na montra.

- Vês, que está bem? Cheia de saúde e com tão boas cores!

A menina ficou muito alegre e disse que foi ela que tinha sonhado que a Catarina tinha adoecido e estava cheia de febre. E concluía:

- Mas agora já está boa, estava ali cheia de saúde!

Um dia, porém, a menina teve uma grande desilusão. A mãe tinha saído e não a levou. Era próximo do Natal, fazia frio e a mãe convencera-a a ficar em casa para se não constipar. Chovia muito e podia até adoecer. A menina pedia só para ver um bocadinho a boneca e a mãe prometeu-lhe que a veria no dia seguinte. Convenceu-se a menina. Mas passado pouco tempo depois de a mãe sair sentiu um desejo enorme de ver a boneca. Então foi pedir insistentemente à empregada que a levasse à rua, num instante, para ver a Catarina. E insistia: Era ali perto, não demorava nada! Tinha umas recomendações a fazer ao dono da loja. Fazia de facto muito frio e a boneca podia adoecer de verdade. Tinha que dizer ao dono da loja que vestisse um casaco muito quente à boneca. Tanto lamuriou que convenceu a empregada a levá-la.

Quando chegou à loja e mirou a montra, ficou espantada. A boneca já lá não estava! Percorreu com os seus olhos muito espertos a montra por todos os lados, mas nada! A boneca tinha sido tirada da montra. Foi espreitar à porta da loja, na esperança de a ver numa prateleira atrás do balcão, mas também não estava lá.

A menina, desolada, cheia de tristeza, disse para a sua companheira:

- Pronto, venderam-na! Com certeza que foi uma senhora muito rica que a comprou!

E desatou a chorar.

A empregada consolou-a como pôde e levou-a para casa.

Quando a mãe regressou das compras, encontrou a menina muito triste. A menina contou-lhe que tinha ido ver a Catarina e que ela já não se encontrava na montra nem na loja. E repetia:

- Foi com certeza uma senhora muito rica que a levou!


A mãe também a sossegou. Prometeu-lhe que no dia seguinte procurariam outra boneca igual. Com certeza que haviam de encontrar, pois nunca faziam só uma boneca. E foi deitá-la.

Mas no dia seguinte, muito cedo, a mãe acordou ao chamamento da menina:

- Mamã, mamã! Venha ver depressa! A Catarina está aqui ao meu lado na minha cama! Ela fugiu e veio ter comigo!

A mãe correu ao quarto da menina e viu efectivamente a boneca ao lado da filha. A petiza levantou-se e dava saltos na cama de contente. A mãe sorria de satisfação vendo a alegria da filha e abraçava-a carinhosamente. Então a menina, num lampejo, adivinhou nos olhos da mãe toda a verdade. Ela tinha saído na véspera sem a levar. Depois, logo a seguir saiu ela com a empregada e já não viu a boneca na loja.... E cobrindo o rosto da mãe com muitos beijos exclamou:


- Obrigada, querida mamã, és formidável! Afinal a senhora muito rica eras tu!


Cícero Galvão
Dezembro de 1975

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