O meu amigo Serzedelo partira há anos para África e nunca mais dera noticias de si. Sabia, por amigos comuns, que triunfara em Moçambique, que estava francamente próspero e que casara com uma linda mulher da África do Sul.
Como me lembrava bem do Serzedelo, vago estudante de Economia, que passava os dias no Café Chiado com a bica e a sebenta em cima da mesa, em frente dele, bebericando a bica, mas nem sequer folheando a sebenta!
Tinha seguido para Economia, dada a sua vocação inata para os negócios, mas o seu dinamismo era incompatível com a preparação laboriosa, com a sedimentação lenta de cinco longos anos das matérias que hão-de formar um verdadeiro economista. Ele não tinha qualquer predisposição para doutrinas nem para teorias. Não entrava com a Economia Política, nem com a Política Económica nem tampouco com a Estatística Matemática. A sua inclinação era para coisas práticas. Sabia fazer dinheiro de tudo e arvorara-se em editor de sebentas, isto é, era o que se chama, em vernáculo calão académico, um sebenteiro. Tirava bom lucro da actividade que praticamente o mantinha em Lisboa.
Ao fim de três anos de marcar passo sem vencer as teorias mas triunfando na vida prática, arranjou um emprego em Moçambique e abandonou os estudos.
A breve trecho, de empregado passou a patrão, com negócio de exportação de produtos ultramarinos e de importação de tudo que de bom podia ir do Continente. Fez fortuna.
Já me tinha constado que o Serzedelo estava de férias em Lisboa e um belo dia deparei com ele no velho Café Chiado (onde havia de ser?) a comer uma fumegante sopa de tomate servida pelo velho Pina que há 30 anos servia sucessivas gerações.
Caímos nos braços um do outro, tive de mandar vir também uma sopa de tomate e dispuz-me a ouvir o relato de 15 anos de ”campanhas de África”, com as inevitáveis caçadas e perigosas incursões na selva, como de costume.
Começou por me declarar que fazia poiso já há dias no Café Chiado para encontrar os antigos colegas e amigos, mas já apareciam poucas caras conhecidas.
Nisto, reparei, que a sua perna direita estava envolta numa massa branca e com um estribo de metal para se poder pôr de pé e caminhar.
Perguntei-lhe que desastre tinha sido aquele, se tinha acontecido em África, por exemplo, numa caçada, ou já no Continente.
Com a curiosidade aguçada pedi-lhe que me contasse a história daquela perna metida em gesso, enquanto já atacava o suculento bife.
- Sabes lá a contrariedade que tive durante a viagem, continuou o Serzedelo.
E, como quem desabafa, começou a contar:
- Embarquei em Lourenço Marques, de regresso ao Continente, para uns meses de férias, depois de 15 árduos anos de luta pela vida. Além de sentir um enorme desejo de voltar a ver os meus, queria que a minha mulher conhecesse a nossa terra-mãe. A viagem por mar é mais lenta, mas mais agradável, como sabes, e como tocávamos em vários portos de Angola e no Funchal aproveitava a oportunidade para já ir mostrando a minha mulher esses pedaços de terra portuguesa.
A viagem corria com bom tempo, boas acomodações, e muitas distracções e a Betty (a Betty é a minha mulher) e eu estávamos satisfeitos com as férias magníficas que uma viagem por mar, num bom barco, sempre nos proporciona. A Betty é de temperamento alegre, desportiva, gosta muito de dançar. Passávamos as tardes na piscina, as noites no dancing e a nossa disposição era óptima.
Tudo correu assim, às mil maravilhas, como soe dizer-se, mas quando chegamos ao Lobito é que as coisas se modificaram.
Calcula lá tu que neste porto entrou um novo passageiro, com um ar petulante, de trajo apurado e atitudes donjuanescas, de bigodinho fino, que logo por azar se instalou num camarote ao lado do nosso.
No almoço, no seu primeiro dia de viagem, pede licença para se sentar à nossa mesa, apresenta-se como sendo um conde italiano, interessado em negócios de navegação, falando uma algaraviada de italiano, francês e português que custava a entender.
Era daquelas pessoas que fazem toda a despesa da conversa, perguntando e respondendo às questões que põem, e têm sempre curiosíssimas histórias para contar, a propósito do que se diga ou do que aconteça.
Ao fim de pouco tempo já contara os seus importantes negócios em empresas de navegação italianas, as suas relações na alta sociedade de vários países, os seus interesses em negócios com o próprio Onassis, de quem era tu cá tu lá...
Quando se apanhou a sós comigo, chegou a vez de blasonar as suas conquistas amorosas. Já me tinha palpitado que um tipo daqueles era por força um conquistador ou gostava de se fazer passar por tal.
Durante uma noite inteira tive de lhe escutar as suas numerosas aventuras.
Em Roma, em Milão, mais tarde em Paris, não houve donzela ou dama de beleza de sensação, que lhe tivesse escapado.
- Não acredita? Perguntava ele de vez em quando, interrompendo as suas pormenorizadas descrições.
Eu afirmava logo que acreditava piamente em tudo quanto ele dissera.
E ele prosseguia ufano encetando a descrição de nova aventura:
- De uma vez em Paris, foi um escândalo! Calcule que no decorrer de certa época, a Ópera teve de fechar por minha causa.
E perante o olhar de espanto que eu lhe fizera explicou:
- Sim, teve de fechar porque a prima dona, apaixonada por mim, abandonou a companhia e fugiu comigo. Foi sensacional, durante dias e dias não se falou noutra coisa em Paris. Os jornais publicavam extensas reportagens sobre o que consideravam um audacioso rapto e conjecturavam que a cantora estava sequestrada em qualquer lado. A polícia investigava, foi pedida a colaboração à Scotland Yard. No entanto, durante semanas andei com a prima dona, disfarçada de burguesinha vulgar, por onde quiz, de hotel em hotel, desde o Boulevard des Capucines até Saint-Germain des Prés. Por fim, passámos a fronteira para a Itália e fui deixá-la em casa da família em Milão. Quando o empresário soube da história exigiu uma pesada indemnização à artista que evidentemente paguei com generosidade e dei o caso por encerrado.
Era quase meia noite, minha mulher acabara uma partida de “bridge” e apareceu junto de nós.
Despedimo-nos e o conde, empertigando-se todo, beijou elegantemente as pontas dos dedos, sorrindo e balbuciando qualquer coisa de elogiativo.
Seguíamos em direcção ao nosso camarote e o conde puxando-me por um braço segredou-me atrevidamente: “Parabéns, meu caro, sua esposa é uma elegante elindíssima mulher!” Irritou-me aquele cumprimento e sem dizer palavra apressámo-nos a entrar nos nossos aposentos.
Passei a noite a matutar nas histórias do conde e mais na inconveniente frase de despedida.
Aquele tipo era verdadeiramente intolerável! Que audácia a dele em gabar uma mulher ao seu próprio marido! Passei uma noite inquieto, sem querer deixar transparecer à Betty a minha preocupação.
No dia seguinte de manhã fomos à piscina, como de costume.
Já lá estava o conde, todo bronzeado, com calções de côr castanha, os cabelos e bigode louros escuros e os olhos também acastanhados transparentes. O castanho era, com efeito, a sua côr predileta e as raparigas de bordo que habitualmente o disfrutavam puseram-lhe uma espirituosa alcunha - chamavam-lhe “o sabonete de glicerina”.
Quando o vi na piscina disse para a Betty: lá está aquele paspalho do “sabonete de glicerina!” Não cair ele à água e derreter-se por completo de uma vez!
A Betty, respondeu-me condescendente: Deixa-o lá, coitado, eu acho-o muito gentil e correcto. O conde já se aproximava e a Betty estendeu-lhe a ponta dos dedos que ele levou aos lábios delicadamente.
Fiquei furioso. Não me despi para tomar banho e sentei-me no bar para beber qualquer coisa.
Mas a Betty, alegre e despreocupada como era, e gostando muito de nadar, é que apareceu no seu elegante e bastante decotado “maillot” e mergulhou desenvolta nas águas da piscina.
O conde quando a viu entrar no banho atirou-se atrás dela, de cabeça, como se pode dizer, com a maior propriedade, neste caso. Foi-lhe no encalço, no seu “crawl” impecável, apanhando-a ao chegar à outra extremidade do tanque.
Sentaram-se ambos na borda, e encetaram conversa abanando os pés na água.
Eu observara tudo do bar, extremamente irritado e quando consegui cruzar o olhar com a minha mulher fiz-lhe peremptoriamente sinal que se viesse embora e desalvorei desesperado para o camarote.
Com efeito, passados momentos a Betty apareceu-me ao lado, fresca, radiosa, no seu vestido de algodão branco muito decotado que lhe ficava maravilhosamente. Então fiz uma cena. Admoestei-a severamente pela confiança que estava a dar ao energúmeno do conde. A Betty não aceitava a crítica e recalcitrava, dizendo que se tratava de um homem inofensivo mas muito gentil e educado. E dizendo isto insinuava uma comparação desvantajosa para mim.
Cada vez mais irritado, contei-lhe então as gabarolices que ele me havia relatado e fiz-lhe ver que ela se comprometia e me ridicularizava se continuasse a prestar-lhe atenção. Amuei seriamente. Ficámos fechados no camarote o resto do dia, não fomos jantar e deitámo-nos a ler cada um no seu beliche.
Anunciara-se para o dia seguinte uma festa a bordo. Passava-se nesse dia o Equador e uma Comissão Organizadora dos festejos tinha elaborado um divertido programa.
Com o amuo já meio passado, propus à Betty não comparecermos em festa alguma, ao que ela aquiesceu sensatamente.
Saímos do camarote, cortámos as voltas ao conde, e fomos jogar o “badminton” para o convés mais afastado. Passámos aí toda a manhã, mas ao voltar ao camarote, vimos ao longe o “sabonete de glicerina”, como sempre vestindo com elegância um trajo castanho claro. Não o pudemos evitar. Vinha esfusiante.
Informou-nos, com enorme alegria, que a comissão das festas tinha resolvido que o baile à noite fosse “masqué”. Ele andava numa roda viva a avisar todos os convidados que tratassem de arranjar a sua fantasia. Ele seria o animador da festa mas não dizia ainda como iria, seria uma surpresa. E ao despedir-se recomendou muito que não faltássemos, que puxássemos pela imaginaçãozinha e não deixássemos de ir devidamente fantasiados. E aos risinhos, repuxando o irritante bigodinho côr de mel, lá se foi aos saltinhos, tratar da organização do “bal masqué”.
Almoçámos no camarote e não saímos nessa tarde. Muni-me de várias revistas e de um bom livro e passei o dia a ler deitado no beliche.
Betty fez-me companhia, já com o amuo completamente passado e ainda nos rimos a bom rir a imaginar como é que o conde iria mascarado. Eu imaginava-o vestido de D. Juan, em trajo de gentilhomem do século XVIII. Betty considerava que lhe ficava mais a carácter a figura de um tribuno romano (não era ele de Roma?), de grande toga branca, traçada sobre os ombros, os braços nus e sandálias com correias entrelaçadas pelas pernas acima. Talvez não lhe ficasse mal uma coroa de louros a aureolar-lhe a cabeça.
Entretanto anoitecia. Uma densa penumbra envolvia o camarote e eu já via vagamente a silhueta de Betty deitada no beliche.
Nisto pareceu-me ver a Betty soerguer-se e começar a vestir uma saia rodada e um colete justo, colocando depois na cabeça um chapéu em forma de cone muito pontiagudo, donde pendiam tules que lhe caíam pelas costas abaixo. A porta do camarote abriu-se, entrou um feixe de luz e entrevi no limiar o conde já vestido para o baile! Vinha fantasiado de Romeu. Conhecia o trajo perfeitamente de uma gravura que ilustrava uma edição antiga do “Romeu e Julieta” de Shakespeare que havia em casa de meus pais e que eu folheava encantado quando era menino.
Afinal era esta a surpresa do conde!
Disfarçara-se de Romeu apaixonado e sedutor, lá trazia uma enorme escada de corda enrolada debaixo do braço e vinha buscar a sua Julieta!
Então olhei para o lado e vi a Betty, já pronta para o baile, realmente vestida de Julieta tal como na gravura que me encantara nos meus tempos de criança.
O Romeu fez uma reverente vénia e a Betty correu-lhe para os braços. Deram-se as mãos e afastaram-se. Fui-lhes no encalço, pé ante pé, e vi-os esfumarem-se no fim do corredor. Continuei a perseguição e deparei com eles enlaçados já a rodopiar no salão de baile uma valsa de Strauss, causando admiração de todos os convidados pela elegância com que dançavam.
A minha exasperação subia ao rubro. A orquestra cessara de tocar. Alguns pares saíram e Romeu e Julieta também. Escondi-me numa sombra para poder ver melhor até onde iria tanto descaramento.
O amoroso par encostara-se à amurada, ele passando o braço sobre os ombros dela, com as cabeças encostadas. Então ele beijou-a demoradamente!
Não pude resistir mais, saí do meu esconderijo e como o conde estava voltado de costas para mim, aproximei-me dele e apliquei-lhe um violentíssimo pontapé que o fez galgar pela borda fora, desaparecendo na escuridão do mar. A Betty, horrorizada, tapava a cara com a. mão., cheia de vergonha e de medo e, caindo de joelhos a chorar pedia-me perdão.
No entanto, com a violência do pontapé que dera, sentia uma enorme dor no pé direito e tive a sensação que desmaiava...
No camarote, Betty, em camisa de noite, refrescava-me a testa com um lenço molhado, batia-me na cabeça e exclamava:
- Acorda, acorda! O que foi isso?
Eu senti uma enorme dor no pé direito.
Consegui despertar, sentei-me no beliche e apalpei o pé, já inchado como um trambolho.
Então compreendi tudo: ao ver no lusco-fusco, já ensonado, a Betty levantar-se e vestir a camisa de noite para se deitar, adormeci profundamente e imaginei todo aquele pesadelo que terminou com o tremendo pontapé que apliquei, não no conde, mas na parede do camarote, partindo o pé desastradamente.
Com o enorme estrondo que ressoou pelos corredores do navio, acordaram os vizinhos que acudiram solícitos e como as dores continuassem insuportáveis, chamaram o médico e o enfermeiro que me meteram o pé em gesso.
E o Serzedelo acabou assim melancolicamente a sua narrativa, apontando para a perna estendida, enfiada numa enorme polaina branca até ao joelho:
- E aqui tens tu, menino, a razão por que me vês neste estado!
- E o conde? - perguntei interessado.
- Nunca mais o vi, constou-me que desembarcou no Funchal e fica por lá uns tempos...
Se o leitor, que já lhe conhece os sinais (não se esqueça que parece um sabonete de glicerina) conseguir localizá-lo na sua bela ilha, não hesite: mesmo com o risco de partir um pé, faça como o Serzedelo - dê-lhe um valente pontapé e mande-o pela borda fora.
Cícero Galvão
Dezembro de 1962
Como me lembrava bem do Serzedelo, vago estudante de Economia, que passava os dias no Café Chiado com a bica e a sebenta em cima da mesa, em frente dele, bebericando a bica, mas nem sequer folheando a sebenta!
Tinha seguido para Economia, dada a sua vocação inata para os negócios, mas o seu dinamismo era incompatível com a preparação laboriosa, com a sedimentação lenta de cinco longos anos das matérias que hão-de formar um verdadeiro economista. Ele não tinha qualquer predisposição para doutrinas nem para teorias. Não entrava com a Economia Política, nem com a Política Económica nem tampouco com a Estatística Matemática. A sua inclinação era para coisas práticas. Sabia fazer dinheiro de tudo e arvorara-se em editor de sebentas, isto é, era o que se chama, em vernáculo calão académico, um sebenteiro. Tirava bom lucro da actividade que praticamente o mantinha em Lisboa.
Ao fim de três anos de marcar passo sem vencer as teorias mas triunfando na vida prática, arranjou um emprego em Moçambique e abandonou os estudos.
A breve trecho, de empregado passou a patrão, com negócio de exportação de produtos ultramarinos e de importação de tudo que de bom podia ir do Continente. Fez fortuna.
Já me tinha constado que o Serzedelo estava de férias em Lisboa e um belo dia deparei com ele no velho Café Chiado (onde havia de ser?) a comer uma fumegante sopa de tomate servida pelo velho Pina que há 30 anos servia sucessivas gerações.
Caímos nos braços um do outro, tive de mandar vir também uma sopa de tomate e dispuz-me a ouvir o relato de 15 anos de ”campanhas de África”, com as inevitáveis caçadas e perigosas incursões na selva, como de costume.
Começou por me declarar que fazia poiso já há dias no Café Chiado para encontrar os antigos colegas e amigos, mas já apareciam poucas caras conhecidas.
Nisto, reparei, que a sua perna direita estava envolta numa massa branca e com um estribo de metal para se poder pôr de pé e caminhar.
Perguntei-lhe que desastre tinha sido aquele, se tinha acontecido em África, por exemplo, numa caçada, ou já no Continente.
Com a curiosidade aguçada pedi-lhe que me contasse a história daquela perna metida em gesso, enquanto já atacava o suculento bife.
- Sabes lá a contrariedade que tive durante a viagem, continuou o Serzedelo.
E, como quem desabafa, começou a contar:
- Embarquei em Lourenço Marques, de regresso ao Continente, para uns meses de férias, depois de 15 árduos anos de luta pela vida. Além de sentir um enorme desejo de voltar a ver os meus, queria que a minha mulher conhecesse a nossa terra-mãe. A viagem por mar é mais lenta, mas mais agradável, como sabes, e como tocávamos em vários portos de Angola e no Funchal aproveitava a oportunidade para já ir mostrando a minha mulher esses pedaços de terra portuguesa.
A viagem corria com bom tempo, boas acomodações, e muitas distracções e a Betty (a Betty é a minha mulher) e eu estávamos satisfeitos com as férias magníficas que uma viagem por mar, num bom barco, sempre nos proporciona. A Betty é de temperamento alegre, desportiva, gosta muito de dançar. Passávamos as tardes na piscina, as noites no dancing e a nossa disposição era óptima.
Tudo correu assim, às mil maravilhas, como soe dizer-se, mas quando chegamos ao Lobito é que as coisas se modificaram.
Calcula lá tu que neste porto entrou um novo passageiro, com um ar petulante, de trajo apurado e atitudes donjuanescas, de bigodinho fino, que logo por azar se instalou num camarote ao lado do nosso.
No almoço, no seu primeiro dia de viagem, pede licença para se sentar à nossa mesa, apresenta-se como sendo um conde italiano, interessado em negócios de navegação, falando uma algaraviada de italiano, francês e português que custava a entender.
Era daquelas pessoas que fazem toda a despesa da conversa, perguntando e respondendo às questões que põem, e têm sempre curiosíssimas histórias para contar, a propósito do que se diga ou do que aconteça.
Ao fim de pouco tempo já contara os seus importantes negócios em empresas de navegação italianas, as suas relações na alta sociedade de vários países, os seus interesses em negócios com o próprio Onassis, de quem era tu cá tu lá...
Quando se apanhou a sós comigo, chegou a vez de blasonar as suas conquistas amorosas. Já me tinha palpitado que um tipo daqueles era por força um conquistador ou gostava de se fazer passar por tal.
Durante uma noite inteira tive de lhe escutar as suas numerosas aventuras.
Em Roma, em Milão, mais tarde em Paris, não houve donzela ou dama de beleza de sensação, que lhe tivesse escapado.
- Não acredita? Perguntava ele de vez em quando, interrompendo as suas pormenorizadas descrições.
Eu afirmava logo que acreditava piamente em tudo quanto ele dissera.
E ele prosseguia ufano encetando a descrição de nova aventura:
- De uma vez em Paris, foi um escândalo! Calcule que no decorrer de certa época, a Ópera teve de fechar por minha causa.
E perante o olhar de espanto que eu lhe fizera explicou:
- Sim, teve de fechar porque a prima dona, apaixonada por mim, abandonou a companhia e fugiu comigo. Foi sensacional, durante dias e dias não se falou noutra coisa em Paris. Os jornais publicavam extensas reportagens sobre o que consideravam um audacioso rapto e conjecturavam que a cantora estava sequestrada em qualquer lado. A polícia investigava, foi pedida a colaboração à Scotland Yard. No entanto, durante semanas andei com a prima dona, disfarçada de burguesinha vulgar, por onde quiz, de hotel em hotel, desde o Boulevard des Capucines até Saint-Germain des Prés. Por fim, passámos a fronteira para a Itália e fui deixá-la em casa da família em Milão. Quando o empresário soube da história exigiu uma pesada indemnização à artista que evidentemente paguei com generosidade e dei o caso por encerrado.
Era quase meia noite, minha mulher acabara uma partida de “bridge” e apareceu junto de nós.
Despedimo-nos e o conde, empertigando-se todo, beijou elegantemente as pontas dos dedos, sorrindo e balbuciando qualquer coisa de elogiativo.
Seguíamos em direcção ao nosso camarote e o conde puxando-me por um braço segredou-me atrevidamente: “Parabéns, meu caro, sua esposa é uma elegante elindíssima mulher!” Irritou-me aquele cumprimento e sem dizer palavra apressámo-nos a entrar nos nossos aposentos.
Passei a noite a matutar nas histórias do conde e mais na inconveniente frase de despedida.
Aquele tipo era verdadeiramente intolerável! Que audácia a dele em gabar uma mulher ao seu próprio marido! Passei uma noite inquieto, sem querer deixar transparecer à Betty a minha preocupação.
No dia seguinte de manhã fomos à piscina, como de costume.
Já lá estava o conde, todo bronzeado, com calções de côr castanha, os cabelos e bigode louros escuros e os olhos também acastanhados transparentes. O castanho era, com efeito, a sua côr predileta e as raparigas de bordo que habitualmente o disfrutavam puseram-lhe uma espirituosa alcunha - chamavam-lhe “o sabonete de glicerina”.
Quando o vi na piscina disse para a Betty: lá está aquele paspalho do “sabonete de glicerina!” Não cair ele à água e derreter-se por completo de uma vez!
A Betty, respondeu-me condescendente: Deixa-o lá, coitado, eu acho-o muito gentil e correcto. O conde já se aproximava e a Betty estendeu-lhe a ponta dos dedos que ele levou aos lábios delicadamente.
Fiquei furioso. Não me despi para tomar banho e sentei-me no bar para beber qualquer coisa.
Mas a Betty, alegre e despreocupada como era, e gostando muito de nadar, é que apareceu no seu elegante e bastante decotado “maillot” e mergulhou desenvolta nas águas da piscina.
O conde quando a viu entrar no banho atirou-se atrás dela, de cabeça, como se pode dizer, com a maior propriedade, neste caso. Foi-lhe no encalço, no seu “crawl” impecável, apanhando-a ao chegar à outra extremidade do tanque.
Sentaram-se ambos na borda, e encetaram conversa abanando os pés na água.
Eu observara tudo do bar, extremamente irritado e quando consegui cruzar o olhar com a minha mulher fiz-lhe peremptoriamente sinal que se viesse embora e desalvorei desesperado para o camarote.
Com efeito, passados momentos a Betty apareceu-me ao lado, fresca, radiosa, no seu vestido de algodão branco muito decotado que lhe ficava maravilhosamente. Então fiz uma cena. Admoestei-a severamente pela confiança que estava a dar ao energúmeno do conde. A Betty não aceitava a crítica e recalcitrava, dizendo que se tratava de um homem inofensivo mas muito gentil e educado. E dizendo isto insinuava uma comparação desvantajosa para mim.
Cada vez mais irritado, contei-lhe então as gabarolices que ele me havia relatado e fiz-lhe ver que ela se comprometia e me ridicularizava se continuasse a prestar-lhe atenção. Amuei seriamente. Ficámos fechados no camarote o resto do dia, não fomos jantar e deitámo-nos a ler cada um no seu beliche.
Anunciara-se para o dia seguinte uma festa a bordo. Passava-se nesse dia o Equador e uma Comissão Organizadora dos festejos tinha elaborado um divertido programa.
Com o amuo já meio passado, propus à Betty não comparecermos em festa alguma, ao que ela aquiesceu sensatamente.
Saímos do camarote, cortámos as voltas ao conde, e fomos jogar o “badminton” para o convés mais afastado. Passámos aí toda a manhã, mas ao voltar ao camarote, vimos ao longe o “sabonete de glicerina”, como sempre vestindo com elegância um trajo castanho claro. Não o pudemos evitar. Vinha esfusiante.
Informou-nos, com enorme alegria, que a comissão das festas tinha resolvido que o baile à noite fosse “masqué”. Ele andava numa roda viva a avisar todos os convidados que tratassem de arranjar a sua fantasia. Ele seria o animador da festa mas não dizia ainda como iria, seria uma surpresa. E ao despedir-se recomendou muito que não faltássemos, que puxássemos pela imaginaçãozinha e não deixássemos de ir devidamente fantasiados. E aos risinhos, repuxando o irritante bigodinho côr de mel, lá se foi aos saltinhos, tratar da organização do “bal masqué”.
Almoçámos no camarote e não saímos nessa tarde. Muni-me de várias revistas e de um bom livro e passei o dia a ler deitado no beliche.
Betty fez-me companhia, já com o amuo completamente passado e ainda nos rimos a bom rir a imaginar como é que o conde iria mascarado. Eu imaginava-o vestido de D. Juan, em trajo de gentilhomem do século XVIII. Betty considerava que lhe ficava mais a carácter a figura de um tribuno romano (não era ele de Roma?), de grande toga branca, traçada sobre os ombros, os braços nus e sandálias com correias entrelaçadas pelas pernas acima. Talvez não lhe ficasse mal uma coroa de louros a aureolar-lhe a cabeça.
Entretanto anoitecia. Uma densa penumbra envolvia o camarote e eu já via vagamente a silhueta de Betty deitada no beliche.
Nisto pareceu-me ver a Betty soerguer-se e começar a vestir uma saia rodada e um colete justo, colocando depois na cabeça um chapéu em forma de cone muito pontiagudo, donde pendiam tules que lhe caíam pelas costas abaixo. A porta do camarote abriu-se, entrou um feixe de luz e entrevi no limiar o conde já vestido para o baile! Vinha fantasiado de Romeu. Conhecia o trajo perfeitamente de uma gravura que ilustrava uma edição antiga do “Romeu e Julieta” de Shakespeare que havia em casa de meus pais e que eu folheava encantado quando era menino.
Afinal era esta a surpresa do conde!
Disfarçara-se de Romeu apaixonado e sedutor, lá trazia uma enorme escada de corda enrolada debaixo do braço e vinha buscar a sua Julieta!
Então olhei para o lado e vi a Betty, já pronta para o baile, realmente vestida de Julieta tal como na gravura que me encantara nos meus tempos de criança.
O Romeu fez uma reverente vénia e a Betty correu-lhe para os braços. Deram-se as mãos e afastaram-se. Fui-lhes no encalço, pé ante pé, e vi-os esfumarem-se no fim do corredor. Continuei a perseguição e deparei com eles enlaçados já a rodopiar no salão de baile uma valsa de Strauss, causando admiração de todos os convidados pela elegância com que dançavam.
A minha exasperação subia ao rubro. A orquestra cessara de tocar. Alguns pares saíram e Romeu e Julieta também. Escondi-me numa sombra para poder ver melhor até onde iria tanto descaramento.
O amoroso par encostara-se à amurada, ele passando o braço sobre os ombros dela, com as cabeças encostadas. Então ele beijou-a demoradamente!
Não pude resistir mais, saí do meu esconderijo e como o conde estava voltado de costas para mim, aproximei-me dele e apliquei-lhe um violentíssimo pontapé que o fez galgar pela borda fora, desaparecendo na escuridão do mar. A Betty, horrorizada, tapava a cara com a. mão., cheia de vergonha e de medo e, caindo de joelhos a chorar pedia-me perdão.
No entanto, com a violência do pontapé que dera, sentia uma enorme dor no pé direito e tive a sensação que desmaiava...
No camarote, Betty, em camisa de noite, refrescava-me a testa com um lenço molhado, batia-me na cabeça e exclamava:
- Acorda, acorda! O que foi isso?
Eu senti uma enorme dor no pé direito.
Consegui despertar, sentei-me no beliche e apalpei o pé, já inchado como um trambolho.
Então compreendi tudo: ao ver no lusco-fusco, já ensonado, a Betty levantar-se e vestir a camisa de noite para se deitar, adormeci profundamente e imaginei todo aquele pesadelo que terminou com o tremendo pontapé que apliquei, não no conde, mas na parede do camarote, partindo o pé desastradamente.
Com o enorme estrondo que ressoou pelos corredores do navio, acordaram os vizinhos que acudiram solícitos e como as dores continuassem insuportáveis, chamaram o médico e o enfermeiro que me meteram o pé em gesso.
E o Serzedelo acabou assim melancolicamente a sua narrativa, apontando para a perna estendida, enfiada numa enorme polaina branca até ao joelho:
- E aqui tens tu, menino, a razão por que me vês neste estado!
- E o conde? - perguntei interessado.
- Nunca mais o vi, constou-me que desembarcou no Funchal e fica por lá uns tempos...
Se o leitor, que já lhe conhece os sinais (não se esqueça que parece um sabonete de glicerina) conseguir localizá-lo na sua bela ilha, não hesite: mesmo com o risco de partir um pé, faça como o Serzedelo - dê-lhe um valente pontapé e mande-o pela borda fora.
Cícero Galvão
Dezembro de 1962
Sem comentários:
Enviar um comentário