Os contos e crónicas recolhidos neste blog foram todos publicados no jornal “Re-nhau-nhau”, trimensário humorístico do Funchal, nos números do seu aniversário, coincidente com a época do Natal. Recolheram-se 36 contos e crónicas publicados no jornal nas edições dos meses de Dezembro dos anos de 1946 a 1977.

Partida para o Funchal em 1946

O ZÉ CEGO

Chamavam-lhe Zé Cego mas não era completamente cego.

Em criança tivera uma grave infecção nos olhos que se arrastou durante anos, devido a incúria da mãe que na sua pobreza não lhe podia prestar grandes cuidados.

Os vizinhos recomendavam-lhe que levasse o menino ao médico. Mas era bom de dizer. Naquela aldeia sem recursos e, coitada, sem dinheiro, sem marido, que embarcara para o Brasil e nunca mais dera notícias, deixando-a no casebre de chão térreo cheia de filhos, como podia levar o petiz ao médico, que ficava tão longe na vila!

Limitava-se a lavar os olhos da criança, todas as manhãs, com água da fonte, mas este tratamento só servia para lhe tirar as pústulas que se acumulavam durante a noite e que lhe colavam os olhos, sempre a purgarem por causa da infecção.

O miúdo piorava, começou a notar-se que cada vez via menos, com a vista sempre num vermelhão, as pálpebras inchadas e cheias de tortulhos.

A mãe conformava-se que o filho ficasse cego. Se fosse na velha China acabaria por comprar um tantã e pendurava-o ao pescoço do filho para anunciar a aproximação de um cego, como conta Pearl Buck.

Mas um dia, a conselho de uma vizinha, resolveu-se a levá-lo a um bruxo de uma aldeia próxima que tinha fama de bom curandeiro. O homem observou o doente com atenção, censurou a mãe pelo desleixo e acabou por lhe receitar umas ervas para fazer um chá para lavar os olhos do filho.

O tratamento foi dando resultado. Pouco a pouco, os olhos foram deixando de purgar, deixaram de ser ramelosos e a infecção acabou por ceder.

Mas os estragos foram enormes. Os olhos do pequeno ficaram quase fechados pelas pálpebras encolhidas como esfíncteres, encarquilhadas, sem pestanas. Ficou quase cego.

Então pôde ir para a escola. Os colegas puseram-lhe logo várias alcunhas - foi o cegueta, o pitosga, o mirolho, mas por fim a que ficou foi a de Zé Cego, que incluía o diminutivo do seu nome próprio e o identificava melhor.

E Zé Cego ficou para a aldeia pela vida fora. Mostrou-se esperto, habilidoso, depressa aprendeu a ler. Quando deixou a escola, passou a ganhar a vida fazendo recados e pequenos biscates.

Ficou muito grato e amigo do curandeiro que lhe havia salvo um resto de vista e visitava-o amiudadamente. Aprendeu com ele algumas mezinhas e o povo já lhe pedia conselho para curar uma ou outra maleita menos grave.

Vivo e desembaraçado mostrava uma grande imaginação.

Um dia o Joaquim Lata, que tinha uma oficina de latoeiro, notou que lhe faltavam batatas de um armazém que estava sempre fechado. Não eram ratos porque dos roedores não havia vestígios. O armazém só tinha uma porta, nem mais nenhuma entrada nem janelas, para estar sempre escuro, como convinha à conservação dos tubérculos.

Pôs-se de atalaia mas não conseguia apanhar o ladrão e as batatas continuavam a desaparecer. Era um mistério que já intrigava a aldeia. O Zé Cego foi consultado mas não encontrou solução para o caso.

Depois de um dia em que novamente havia desaparecido grande quantidade de batatas, o Joaquim Lata jurou fazer vigília aturada durante noites seguidas. E uma noite quando se dirigia para um recanto escuro de onde se avistava a porta do armazém, viu um vulto acochado à soleira que fugiu precipitadamente à sua aproximação, deixando uma vara comprida abandonada no caminho.

O Joaquim Lata julgou reconhecer o Zé Cego no vulto que fugia, mas não logrou alcançá-lo pois sumiu-se como por encanto na escuridão, por trás de umas sebes.

O Joaquim Lata voltou para trás e pegou na comprida vara. Tinha quatro ou cinco metros, mais ou menos o fundo do armazém. Era fina e muito aguçada na ponta onde ainda se encontrava uma gorda batata espetada.

Aquilo era obra do Zé Cego, não havia dúvida. Com a longa e afiada vara, metia-a pela gateira da porta e, uma a uma, roubava as batatas do Lata.

O acusado nunca confessou o crime mas o que é certo é que as batatas nunca mais desapareceram e pela graça que a aldeia achou à façanha, o Zé Cego viu aumentado o seu prestígio.

* * *

Havia festa na aldeia e o povo estava cheio de contentamento.

Ia inaugurar-se nesse dia o novo chafariz e o lavadouro, obra em que o senhor Azevedo, presidente da Junta de Freguesia, tinha posto todo o seu melhor empenho.

Era uma bela fonte com lindos azulejos decorativos e duas bicas, para dar maior vazão ao povo que ia por água.

O lavadouro era também magnífico, de cimento armado, com muitos lugares cobertos para as mulheres lavarem a roupa em água corrente, abrigadas do sol ou da chuva.

O Presidente da Junta, homem bom da terra, com as magras receitas oficiais e muita generosidade da sua bolsa tinha conseguido levar a cabo a obra em que tinha posto muito gosto para o bem dos habitantes.

A aldeia estava lindamente enfeitada com bandeiras e chorões de verdura e lindos arcos decorados com flores de papel. O Zé Cego tinha tomado parte activa nas decorações e andava numa roda viva a fazer buracos para segurar os postes, a acartar verdura e até a fazer flores de papel de seda.

O senhor Azevedo, protector do Zé Cego e que este adorava cegamente, como com propriedade se poderia dizer, convidara o Presidente da Câmara e o Governador Civil para presidirem à inauguração do melhoramento.

Era uma honra para a terra receber tão altos dignitários da política e tudo se tinha preparado para os receber condignamente. Na manhã do tão ansiosamente esperado dia da inauguração só faltava ligar a canalização à fonte. Já tinha sido toda montada, pois a água vinha da serra, duma nascente fresca e puríssima, que ficava a uns bons dois quilómetros. O Silva canalizador tinha tomado a obra de empreitada por um preço para amigos, para fazer um jeito à rapaziada. Os canos tinham chegado na véspera ao chafariz e ficara para a própria manhã da inauguração a ligação dos canos às lindas torneiras de latão, que reluziam, bem areadas, como oiro.

O Governador e o Presidente da Câmara deviam chegar pelo meio-dia, seriam recebidos no limite da freguesia pelo Presidente da Junta e pelos vogais e seguiam para o largo onde se inaugurava a fonte.

Seguia-se depois um lauto almoço bem regado com o belo vinho da região. O Presidente da Junta tinha preparado um discurso que há dias já andava a ensaiar.

Eram já dez horas da manhã e o Silva canalizador não havia meio de aparecer. O Presidente da Junta e os vogais começavam a estar inquietos. O Zé Cego foi encarregado de ir procurá-lo. Onze horas - e nem Zé Cego, nem canalizador. Os convidados podiam aparecer de um momento para o outro e a fonte e o lavadouro ainda não tinham água.

Nisto chegou o Zé sozinho, esbaforido. O Presidente, os vogais, os principais responsáveis lançaram-se para ele precipitadamente. Então o Silva? Onde está? Vai ser uma vergonha! O Governador a chegar e de água nem pinga!

O Zé Cego, ofegante, então informou:

- O Silva está com uma grande bebedeira que nem se aguenta nas pernas! Consegui acordá-lo, mas não se podia levantar. E a cair de bêbedo dizia que já estava feita a ligação e que da fonte em vez de correr água corria vinho, muito vinho, a jorros, tanto, tanto, que ele tinha-se farto de beber e ficara assim.

O Zé Cego ainda tentara trazê-lo mas não servia de nada, bêbedo como estava.

Mas que fazer agora? Era uma vergonha. O Governador, o Presidente da Câmara e os numerosos convidados deviam chegar dentro de meia hora e não havia água. Faltava fazer a ligação final e não havia ali ninguém que o soubesse fazer. O Presidente da Junta desesperava e exclamava que bem o haviam prevenido que não desse a obra ao Silva! Era um bêbedo descarado! Não quis acreditar, julgou que fosse despeito e agora bem arrependido estava. Bem, pediriam desculpas ao Governador e ao Presidente e fariam a inauguração sem água. Abreviariam a cerimónia e iriam depois todos almoçar. Com as boas iguarias e a bela pinga depressa esqueceriam o percalço e no dia seguinte o Silva ou outro canalizador poriam a água a correr.

Nisto o Zé Cego teve uma ideia.

- Senhor Presidente, senhor Presidente! Não é preciso passar por esta vergonha!

E o Zé Cego expôs o seu plano:

- Temos ainda meia hora e podemos ligar rapidamente às torneiras um depósito de água que se põe em cima de um escadote por trás da fonte. E se bem pensou, melhor o pôs em execução, perante a estupefacção dos circunstantes que tacitamente aprovaram o plano.

O Zé Cego pôs tudo a mexer. Um emprestou o escadote, outro um pequeno depósito de água, outro ainda foi buscar um tubo de borracha das trasfegas. O Zé Cego por trás do chafariz procedia à ligação das torneiras ao pequeno depósito por meio do tubo de trasfegar. Feita a ligação em poucos minutos, procedeu-se à experiência que resultou perfeitamente - abertas as torneiras a água corria com força e borbulhante que até parecia provir de fonte inesgotável. Era pena que o depósito não fosse maior, mas a água que ele continha devia chegar para a cerimónia.

Tinha-se combinado que no acto da inauguração e depois de umas boas girândolas de foguetes e morteiros, o senhor Governador abriria a torneira da direita e o senhor Presidente da Câmara abriria a torneira da esquerda.

Tudo havia pois de correr bem, pois a cerimónia era simples e o depósito devidamente ensaiado tinha água que ainda dava para uns bons cinco minutos.

Só faltava agora disfarçar a caranguejola arranjada atrás do chafariz, quais bastidores de teatro de diletantes. Mas isso também se arranjou: com vários ramos de cedro, pinheiros e eucaliptos que o rapazio rapidamente foi buscar à mata, camuflou-se devidamente aquela engenhoca.

Depois de reabastecido de água o depósito, feitas as experiências, o Presidente da Junta e os vogais, bem como outras pessoas, dirigiram-se apressadamente para o limite da freguesia e chegaram mesmo a tempo porque nesse instante entravam na freguesia os carros do Governador, do Presidente da Câmara e das suas numerosas comitivas, pois como se sabia que haveria um bom almoço e o vinho da região tinha boa fama, os convidados eram em grande número e não se fizeram rogados.

Depois de uns rápidos cumprimentos todos se dirigiram para o largo onde se inaugurava o chafariz que não ficava longe.

Chegados ao local da inauguração o Presidente da Junta, ansioso, observava tudo cuidadosamente, mas ficou sossegado quando viu o Zé Cego com os seus olhos mirrados, mas de rosto prazenteiro, postado ao lado das bicas como uma zelosa sentinela.

A banda de uma terra vizinha, que se comprimia no acanhado coreto, tocava uma marcha alegre que, a um sinal do Presidente da Junta, interrompeu de repente com duas pancadas surdas do bombo. Seguiram-se as girândolas de foguetes e morteiros. E quando se acabou o fogo as comitivas do Governador e do Presidente da Câmara largaram aos vivas: - Viva o senhor Governador! Viva o senhor Presidente da Câmara! - Viva! Viva! gritava o povo entusiasmado, e repetiram-se estes vivas muitas vezes, cuja iniciativa partia das comitivas dos visitantes.

Conseguida uma pequena pausa, começaram os discursos. Falou em primeiro lugar o Presidente da Junta que foi timidamente aplaudido. Falou depois o Presidente da Câmara que no fim foi muito ovacionado e teve muitos apoiados durante o discurso. Finalmente tomou a palavra o senhor Governador, cuja comitiva lhe proporcionou fortes aplausos antes, durante e depois da sua eloquente oração.

No fim da série de discursos ouviu-se respeitosamente o hino e, a convite do Presidente da Câmara abriram as reluzentes torneiras e a água correu a jorros! Estava oficialmente inaugurado o chafariz e as comitivas romperam novamente aos vivas: - Viva o senhor Governador! Viva o senhor Governador! Viva o senhor Presidente da Câmara! Viva o senhor Presidente da Câmara! e assim sucessivamente.

O povo da terra era tímido, acanhado, e ninguém tomava a iniciativa de soltar um merecido viva ao senhor Azevedo, Presidente da Junta de Freguesia.

A água continuava a correr com riscos de se esgotar o depósito e o Zé Cego correu pressurosamente a fechar as torneiras. No entanto o Zé Cego não estava satisfeito com o esquecimento do senhor Azevedo e fazia cara de poucos amigos.

Sentia a grande injustiça que se estava ali a passar. Então toda aquela obra era devida ao Presidente da Junta e nem sequer lhe davam um viva! Ele é que tinha dado para ali do seu dinheiro mais de metade do custo da obra e os outros é que tinham as honras!

Os da terra, tímidos e acanhados, não tomavam a iniciativa de largarem um viva, notando todos, no entanto, com constrangimento, o esquecimento a que o senhor Azevedo estava a ser votado.

Então o Zé Cego, num rasgo de iniciativa, e interpretando o sentir de toda aquela boa gente da sua terra, empertigando-se no cimo do chafariz soltou um brado, que era uma desafronta:

- Viva o senhor Presidente da Junta, caramba!

O senhor Azevedo lançou-lhe um olhar de reconhecimento e a multidão, acanhada até ali, rompeu em calorosos vivas. As comitivas do Governador e do Presidente da Câmara é que se manifestaram com mais sobriedade.

Seguiu-se o almoço como estava programado, oferecido pelo Presidente da Junta que à última hora honrou o Zé Cego com um convite, como prova do seu reconhecimento pela sua grande dedicação para que a cerimónia não resultasse num fracasso e pelo conforto moral que lhe deu com aquele entusiástico viva final.

Acabada a festa, a vida da aldeia voltou à normalidade, mas o prestígio do Zé Cego ficou muito engrandecido por toda a sua actuação naquele grave problema da inauguração do chafariz. O Zé Cego passou a ser uma pessoa importante, praticamente como um conselheiro de toda a aldeia.

Do seu convívio com o homem de virtude que lhe salvara a vista ficou a saber certas rezas e mezinhas boas para afastar doenças e maus olhados. Assim começou a ser procurado pelos doentes da terra a quem ele ia receitando, a princípio com muitas reservas, mas depois mais afoitamente. Tinha ervas e orações de uma grande eficiência e que faziam passar rapidamente os piores males.

Assim, por exemplo para as dores de dentes, tinha uma oração a S. Clemente, que ele pronunciava Climente, e que fazia passar o mal num ápice.

Colocava o paciente muito sossegado e de olhos cerrados, sentado diante dele, e rezava-lhe assim:

Naquele monte mal assente
Está o senhor São Climente.
Nossa Senhora lhe diz:
- Que tens tu, oh Climente?
- Dói-me o queixo, mais o dente!
- Queres que benza, Climente?
- Quero sim, minha Senhora!
- Sobre estas tuas pontadas,
Põe tuas cinco dedadas.
Padre Nosso, Avé Maria,
Patisco, Aleluia!
Já está!

E a dor passava como por encanto, ficando o paciente por uns momentos com os dedos de uma das mãos juntos a comprimir o dente dolorido.

Também para as febres tinha outra oração muito boa. Era região de sezões e de vez em quando lá tinha ele um cliente a quem rezava assim, com muitas benzeduras, agitando um ramo de hortelã e batendo-lhe com um pauzinho pelo corpo:

Vai-te quartã,
Olha a hortelã!
Mosquito mau,
Levas com o pau!
Deixa este corpo
Que não é de porco!
Vai-te febrão,
Deixa o corpo são

E depois com voz cava e solene estas palavras cabalísticas:

Fari-Fi, Fum, Fum!
Vai de liques!
Vai de leques!
Ela aí vai: Fsch...Pum!

E a febre lá se ia embora e o doente ficava são.

No entanto, no que o Zé Cego estava a criar maior fama era na especialidade de males de amor. Em amores mal sucedidos ou mal correspondidos tinha já obtido êxitos assinalados. Além dumas rezas, a mezinha consistia fundamentalmente no uso de uma cabeça de víbora que tivesse sido morta numa noite de lua cheia, devendo o interessado fazê-la esfregar, quantas mais vezes melhor, no corpo da pessoa amada mas sem esta dar por isso.

E foi na esperança de obter bons resultados com este tratamento que o Pardelhas, o ferrador da terra, um dia foi procurar o Zé Cego para lhe encomendar uma cabeça de víbora e pedir os seus bons ofícios para que passasse a ser correspondido pela Zefa Carqueja por quem se apaixonara loucamente. A Zefa não lhe ligava, afastava-o mesmo ostensivamente, e o Pardelhas consumia-se com aquela paixão. Lá foi por uma cabeça de víbora.

O Zé Cego ficou de lha arranjar, o que naquelas alturas era difícil, pois já raramente apareciam víboras no mato e para mais tinha de ser apanhada em noite de lua cheia. Entretanto foi adiantando trabalho fazendo as necessárias rezas que o Pardelhas escutou e repetiu religiosamente.

No entanto ele estava ansioso por obter a cabeça de víbora e esfregá-la o melhor que pudesse pelo corpo da Zefa, a sua amada, sem que ela desse por isso, operação que ainda não sabia como havia de fazer, mas que teria de arranjar maneira e para isso contava com a imaginação nunca desmentida do Zé Cego.

Chegou o dia da lua cheia e o Pardelhas correu pressuroso a casa do nosso homem de virtude, lembrando-lhe que era a altura de apanhar a tão desejada cabeça de víbora. O Zé Cego prometeu fazer o possível, mas agora apareciam poucas víboras e ele iria passar a noite no mato tentando apanhar alguma.

No dia seguinte de manhã o Pardelhas lá voltou a casa do mago, aflito pela obtenção do precioso talismã, pois cada vez a sua paixão pela Zefa Carqueja era maior e cada vez a sua amada se mostrava mais hostil. O Zé Cego tinha conseguido o desejado amuleto que lhe entregou embrulhado num papel, pois ainda estava fresquinho.

E também lhe deu solução para que fosse esfregado no corpo da Zefa: Daí a dias realizava-se um baile na Associação dos Bombeiros, e o Pardelhas devia tentar dançar com a Zefa e enquanto dançassem devia esfregar-lhe a cabeça de víbora nas costas.

Na noite do baile lá estava o Pardelhas com o seu fato domingueiro, desejoso de pôr em prática os conselhos do Zé Cego e numa ânsia esperava pela chegada da Zefa.

Por fim chegou a sua amada toda bem ataviada com o seu melhor vestido. A música começou a tocar, alguns pares romperam o baile e o Pardelhas precipitadamente foi convidar a Zefa para dançar. Mas, coitado do rapaz, nervoso como estava não balbuciou palavra e quando chegou ao pé dela, ela afastou-o com uma gargalhada aceitando o convite doutro.

O Zé Cego presenciou a cena e foi ele que mais uma vez salvou a situação. Chamou o Pardelhas de parte e ensinou-lhe como ele devia pôr em prática o feitiço. Sugeriu-lhe que fosse buscar outra rapariga para dançar, aproximasse-se da Zefa e lhe esfregasse com força nas costas a cabeça de víbora.

Assim fez o Pardelhas. Lá conseguiu uma rapariga para dançar, foi-se chegando ao compasso da música para a Zefa e quando já estava junto dela esfregou-lhe desastradamente com a cabeça de víbora no fundo das costas. A Zefa não percebendo do que se tratava sentiu a violência dos safanões, voltou-se, e vendo o Pardelhas irritou-se e insultando-o pregou-lhe uma valente bofetada.

O par da Zefa, julgando-a ofendida, resolveu defender a sua dama e aplicou violentíssimo soco nos queixos do Pardelhas, deitando-o por terra. Interveio o mestre sala que apaziguou os ânimos e acabou por expulsar o Pardelhas da festa.

O Zé Cego que com os seus olhos piscos havia presenciado de longe toda a cena, foi ter com o Pardelhas para o consolar. Estava varado com o sucedido. A cabeça de víbora nunca tinha falhado daquela maneira! É que a Zefa, rebarbativa como era tinha o diabo no corpo, não havia dúvida, e tinha que ser tirado. Ele iria estudar o assunto a fundo! O Pardelhas, ainda abalado dos queixos, tinha expressões de desânimo e queria desistir de tudo. Aquilo não era mulher, era uma fera! Nunca tinha visto ódio tão grande!

Mas o Zé Cego, que o ia acompanhando a casa, na escuridão da noite animava-o a não desistir.

- Um homem nunca desanima! Vou-lhe tirar o Diabo do corpo! Se não chegar uma cabeça de víbora, arranjam-se duas! Vais ver que ela ainda se vira para ti!

O Pardelhas foi curtir os seus desgostos para a cama e o Zé Cego regressou a casa preocupado com aquele insucesso.

No dia seguinte o Pardelhas foi desabafar com um amigo íntimo e contou-lhe tudo, desde os desprezos da Zefa aos conselhos do Zé Cego, à cabeça de víbora e à terrível cena do baile.

E mostrava-lhe a cabeça de víbora que com tanta esperança trazia sempre consigo.

Então o amigo, pegando na cabeça do bicho, mirou-a com olhos de entendido e exclamou:

- Ná! Isto não é cabeça de víbora! Foste enganado! Isto é uma cabeça de vulgar lagarto!

O Pardelhas ficou estupefacto. O quê? Aquele malandro do Zé Cego atrevera-se a zombar dele? Tinha de ajustar contas com ele! Havia de pagar bem cara a graça. Aquele bruxo cegueta atrevia-se a troçar dele! Havia de lhe dar tamanha coça que o racharia de meio a meio!

Não se sabe por que artes, o Zé Cego teve conhecimento que o Pardelhas já sabia que a cabeça do bicho que lhe havia arranjado não era de víbora e queria tirar desforço. A culpa afinal tinha sido do próprio Pardelhas que não o largava até que lhe arranjasse uma cabeça de víbora. Mas que é delas? Não apareciam! Passou até uma noite inteirinha no mato, mas nada! Até que viu esparralhado ao sol um gordo lagarto e foi uma tentação! As cabeças eram parecidas, o Pardelhas não daria pela troca e deixava-o de maçar.

E com um grande pedregulho matou o lagarto, cortou-lhe a cabeça e no dia seguinte entregou-a ao Pardelhas!

Nunca tinha imaginado é que a questão acabasse daquela maneira. O Pardelhas sabia agora de tudo e queria vingar-se. O Zé Cego sentia-se perdido e quando lobrigou o Pardelhas ao fundo do caminho de sua casa, saiu pelas traseiras e fugiu da aldeia. Devia ter-se refugiado em casa de um parente que morava numa povoação próxima. O que é certo é que o Pardelhas não conseguiu encontrá-lo para lhe aplicar o correctivo como queria.

Entretanto, o Pardelhas voltou à sua oficina de ferrador e uma bela manhã apareceu lá surpreendentemente a Zefa com uma égua para ferrar.

A Zefa era uma mulher de trabalho, filha única de um médio lavrador, que ajudava o pai nos trabalhos da sua casa agrícola. Bonita e desembaraçada, era enérgica e decidida, não tinha papas na língua, de carácter franco, mas também não era de reservas. Tinha de levar o animal ao ferrador e levava-o mesmo, apesar do acontecido com o Pardelhas.

Este é que não queria acreditar no que via, quando deparou com a dona dos seus sonhos entrar-lhe pela casa dentro. Todo ele ficou atrapalhado, cheio de nervos, sem saber que dizer, nem que fazer. O seu fraco por ela dominou-o por completo e apetecia-lhe cair aos pés e pedir-lhe desculpa do acontecido e declarar-lhe o seu grande amor. Mas estava apático, não era capaz de pronunciar palavra como sempre acontecia quando estava junto dela.

Foi ela ainda que o pôs à vontade, apercebendo-se da atrapalhação do rapaz e sentido-se confundida com tamanha paixão. E foi ela que lhe dirigiu a palavra:

- Olhe lá, oh Pardelhas, veja lá o que a minha égua tem numa das mãos que anda a coxear.

Então o Pardelhas voltou a si e soltou-se-lhe a palavra. Pediu humildemente desculpa do que aconteceu. Não tinha qualquer intenção de a molestar. Tinha tropeçado quando dançava e daí o encontrão que lhe deu. De resto tinha razão para estar aborrecida com ele mas nunca lhe quereria mal. Já devia ter notado como ele gostava dela. Ele, que era capaz de a estimar e fazê-la feliz só queria o bem dela... e assim por diante...

A Zefa ouvia-o com paciência e não reagia. Estava a achar graça à atitude humilde do Pardelhas e reconhecia agora que ele estava verdadeiramente apaixonado por ela. No fundo, sentia-se lisonjeada. Por fim, interrompeu aquela declaração que já ia longa:

- Bem, veja lá o que tem o animal e não falemos mais nisso.

A égua teve de ficar em observação, a Zefa retirou-se e o Pardelhas ficou de lhe levar o animal no dia seguinte.

Ansioso, o Pardelhas foi devolver-lhe a égua já com a mão cuidadosamente tratada e ferrada de novo e com o pelo bem escovado e luzidio que era uma beleza. A Zefa ficou encantada ao ver o animal tão bem tratado.

O Pardelhas pegou-se à conversa e o que é certo é que a Zefa prestou-lhe atenção e começou a interessar-se por ele.

Os encontros repetiram-se nos dias seguintes e o namoro acabou por pegar. O povo estava admirado com aquela reviravolta e atribuíam-na ainda às artes do Zé Cego, coitado, que ignorante do que se passava continuava ainda exilado da sua aldeia que tanto amava.

Então o Pardelhas, já passada a ira, até pelo contrário, satisfeito com o rumo que as coisas tinham tomado e que muito no íntimo também convencido que foram as mágicas do Zé Cego que tinham provocado a mudança de atitude da bela Zefa, resolveu-se a ir procurá-lo, a pedir-lhe desculpa, agradecer-lhe, enfim a trazê-lo de novo para a aldeia onde todos, ao fim e ao cabo, já estavam a sentir a sua falta.

Quando chegou ao lugar onde o Zé Cego se desterrara, este não sabendo o motivo da visita, fugiu de novo receando quaisquer represálias. O Pardelhas teve de mandar emissários para lhe dizer que vinha em missão de paz e de reconciliação.

O Zé Cego regressou a medo mas uma vez junto do Pardelhas e quando este lhe contou do seu contentamento pelos seus amores correspondidos, caíram nos braços um do outro e voltaram felizes para a aldeia.

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Como nos contos de fadas o Pardelhas casou com a Zefa, foram muito felizes e tiveram muitos meninos. O Zé Cego viu o seu prestígio novamente levantado e toda a gente passou a acreditar ainda mais no seu desembaraço e nos seus mágicos poderes. A sua fama ultrapassou as acanhadas fronteiras da freguesia.

Um dia um rapazelho, também infeliz aos amores, sabendo da fama do Zé Cego, procurou-o e pediu-lhe que lhe arranjasse uma cabeça de víbora.

- De víbora? perguntou-lhe o Zé Cego - isso custa muito a arranjar! Porque não levas antes uma de lagarto que se apanha mais facilmente e custa mais barato!

- Mas isso dá resultado? - volveu o rapaz.

- Se dá! - sentenciou o Zé Cego confiante. - É mesmo infalível! O que pode é dar um pouco mais de trabalho e levar mais tempo a fazer efeito...

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O prestígio do Zé Cego consagrou-se em toda a região. Passou a gozar de fama de influente, de bom conselheiro. Era a figura central da aldeia. Os amigos afirmavam gravemente ser ele um homem de vistas largas, de grande visão...


Na realidade chamavam-lhe Zé Cego, mas não era completamente cego.

Cícero Galvão
Dezembro de 1963

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