Querido Re-nhau-nhau, prezado Bichano, ilustre Gato de Letras e não menos digno órgão da Imprensa:
Cheguei a este mês de Dezembro cheio de tristeza porque não recebi, como habitualmente de há vinte e três anos a esta parte, a amiga e delicada carta do teu patrono, o grande jornalista que foi Gonsalves Preto. Com que alegria eu recebia, nos princípios de Novembro de cada ano, a missiva do teu Director na qual no seu estilo epistolar inesquecível solicitava a minha modestíssima colaboração no número comemorativo do teu aniversário e do Natal porque tu vieste ao Mundo nesta linda e festiva quadra.
Nunca tive a coragem de não corresponder a tão amável convite e, afobado como ando sempre, lá preparava à pressa um contozito (às vezes a chegar ao Funchal à última hora) que o teu Director diligentemente publicava e depois agradecia numa carta com umas generosas palavras de apreciação que me desvaneciam.
Mas a minha maior satisfação consistia, apesar da minha falta de tempo, em nunca ter faltado à chamada e brinca, brincando publiquei já nas tuas colunas vinte e cinco contos ou escritos que os valham, o que, hás-de concordar, é ainda hoje em dia uma quantia muito razoável.
Mas vale a pena recordar como começou a coisa naquele Natal que já vai ficando longínquo do ano de 1946.
Trabalhava com o Gonsalves Preto na organização da Previdência Social na Madeira, da qual ele foi um dos pioneiros. Anteriormente, como funcionário superior da Delegação do Trabalho no Funchal, ele tinha a seu cuidado não só o esclarecimento dos interessados naquela organização, como também tinha de zelar pela conservação de todos os documentos enquanto se não constituia o organismo competente.
Quando começaram os trabalhos da organização; com que entusiasmo ele acompanhou a montagem dos serviços, a ponto de trocar o seu lugar na Delegação por outro de chefia na Caixa de Previdência quando ela se constituiu. Então trabalhámos juntos e desde o arrendamento da sede, à Rua da Carreira, uma característica casa setecentista que ele descobriu, ao aluguer das mobílias ao velho Paulino Mendes (que era capaz de rechear ricamente uma casa inteira em três tempos, como ele dizia), até ao rápido desembaraço aduaneiro do material que vinha do continente, o Gonsalves Preto a tudo acudia, sem se poupar a esforços, sem olhar a horas de trabalho, sem pensar em sacrifícios que a sua saúde já nesse tempo, em rigor, não lhe devia consentir.
Num ritmo de trabalho invulgar, o horário da tarde prolongava-se pela noite adiante, num horário de trabalho que infringia todas as leis, das nove da manhã até depois da meia noite, com uma hora para almoçar e outra para jantar. Corno ao sábado terminávamos o serviço às sete da tarde, então dizíamos que tínhamos semana inglesa...
Tínhamos que arrancar com a organização e ninguém se poupava a esforços. Os funcionários da Caixa constituíam uma plêiade de madeirenses empenhados em melhorara as condições de vida de todos os madeirenses.
E com que alegria o Gonsalves Preto viu surgir os primeiros frutos da organização – com uns serviços médico-sociais montados e dirigidos superiormente pelo grande médico madeirense Dr. Avelino Gonçalves, uns serviços administrativos eficientes chefiados pelo Dr. Teodósio Franco, que repartiam mensalmente milhares e milhares de contos em abonos de família, subsídios e pensões de reforma para segurança de milhares e milhares de famílias.
Mas naquela azáfama toda, algumas vezes por mês, o Gonsalves Preto não acompanhava os colegas no serão. Era nos dias de véspera da tua saída, caro Re-nhau-nhau. Então visivelmente penalizado muito circunspectamente dizia-me: Hoje não me é possível ficar para o serão. Tenho de ir fazer o Re-nhau-nhau que sai amanhã.
Fazia ele então na tua casa, prezado Bichano, uma boa seroada a preparar crónicas, a escrever críticas e a compôr o “Jazz-Band”, essa secção que era lida avidamente, logo que saías, pelos teus leitores. Quando o Gonsalves Preto se despedia para ir tratar de ti (meu maroto, quantos milhares de horas lhe ficaste a dever de ternos carinhos) uma vez por outra dizia-lhe : “Oh Gonsalves Preto, ponha lá esta no Re-nhau-nhau!” E de seguida contava-lhe uma breve anedota, daquelas que eu tinha trazido na bagagem de recém-chegado do Continente e que não eram ainda muito conhecidas na Madeira. Então o Gonçalves Preto, no virtuosismo do seu estilo, com a graça que eu lhe contava compunha uma deliciosa história, cheia de espírito numa prosa característica e inconfundível.
Até que chegou o Natal e o Gonsalves Preto convidou-me para directamente colaborar no número especial do teu aniversário tentando-me convencer com o argumento de que, tendo já sido colaborador indirecto tão assíduo, devia colaborar directamente pelo menos naquele número especial. Na verdade não fazia idéia nenhuma do que poderia escrever e em princípio declinei o convite. Não me ocorria nada de original, sentia-me sem inspiração, absorvido como estava no meu trabalho. Mas num fim de semana dos princípios de Dezembro, acudiu-me uma idéia. E agora vou revelar-te um segredo que só havia revelado ao teu patrono. Aos dezoito anos, como todos os jovens, escrevi poemas, sonetos, contos e novelas...
Toda aquela produção literária repousava há muitos anos nas gavetas da minha secretária de estudante, praticamente inédita, porque se alguma daquelas produções alguma vez tinha visto a luz da publicidade tinha sido em jornais académicos, de circulação limitadíssima, tirados ao “copiógrafo” que era o aparelho mais avançado daquela época de fazer reproduções. Num esforço de memória comecei a lembrar-me do teor de alguns daqueles escritos e num belo domingo de manhã, com o tema de um deles, fiz uma pequena composição que entreguei ao Gonsalves Preto logo na manhã seguinte. Com que alegria ele leu num ápice a minha prosa simples e que satisfação lhe deu ter arranjado mais uma página de original para o seu Re-nhau-nhau! E com que bondade e tolerância apreciou a pequena historieta.“Está reunida a assembleia geral da Sociedade Filarmónica Os Amigos da Semi-Colcheia” e veio publicada no teu número de Natal de 1946, saído no dia 21 de Dezembro daquele ano, faz agora vinte e cinco anos – um quarto de século.
Cheguei a este mês de Dezembro cheio de tristeza porque não recebi, como habitualmente de há vinte e três anos a esta parte, a amiga e delicada carta do teu patrono, o grande jornalista que foi Gonsalves Preto. Com que alegria eu recebia, nos princípios de Novembro de cada ano, a missiva do teu Director na qual no seu estilo epistolar inesquecível solicitava a minha modestíssima colaboração no número comemorativo do teu aniversário e do Natal porque tu vieste ao Mundo nesta linda e festiva quadra.
Nunca tive a coragem de não corresponder a tão amável convite e, afobado como ando sempre, lá preparava à pressa um contozito (às vezes a chegar ao Funchal à última hora) que o teu Director diligentemente publicava e depois agradecia numa carta com umas generosas palavras de apreciação que me desvaneciam.
Mas a minha maior satisfação consistia, apesar da minha falta de tempo, em nunca ter faltado à chamada e brinca, brincando publiquei já nas tuas colunas vinte e cinco contos ou escritos que os valham, o que, hás-de concordar, é ainda hoje em dia uma quantia muito razoável.
Mas vale a pena recordar como começou a coisa naquele Natal que já vai ficando longínquo do ano de 1946.
Trabalhava com o Gonsalves Preto na organização da Previdência Social na Madeira, da qual ele foi um dos pioneiros. Anteriormente, como funcionário superior da Delegação do Trabalho no Funchal, ele tinha a seu cuidado não só o esclarecimento dos interessados naquela organização, como também tinha de zelar pela conservação de todos os documentos enquanto se não constituia o organismo competente.
Quando começaram os trabalhos da organização; com que entusiasmo ele acompanhou a montagem dos serviços, a ponto de trocar o seu lugar na Delegação por outro de chefia na Caixa de Previdência quando ela se constituiu. Então trabalhámos juntos e desde o arrendamento da sede, à Rua da Carreira, uma característica casa setecentista que ele descobriu, ao aluguer das mobílias ao velho Paulino Mendes (que era capaz de rechear ricamente uma casa inteira em três tempos, como ele dizia), até ao rápido desembaraço aduaneiro do material que vinha do continente, o Gonsalves Preto a tudo acudia, sem se poupar a esforços, sem olhar a horas de trabalho, sem pensar em sacrifícios que a sua saúde já nesse tempo, em rigor, não lhe devia consentir.
Num ritmo de trabalho invulgar, o horário da tarde prolongava-se pela noite adiante, num horário de trabalho que infringia todas as leis, das nove da manhã até depois da meia noite, com uma hora para almoçar e outra para jantar. Corno ao sábado terminávamos o serviço às sete da tarde, então dizíamos que tínhamos semana inglesa...
Tínhamos que arrancar com a organização e ninguém se poupava a esforços. Os funcionários da Caixa constituíam uma plêiade de madeirenses empenhados em melhorara as condições de vida de todos os madeirenses.
E com que alegria o Gonsalves Preto viu surgir os primeiros frutos da organização – com uns serviços médico-sociais montados e dirigidos superiormente pelo grande médico madeirense Dr. Avelino Gonçalves, uns serviços administrativos eficientes chefiados pelo Dr. Teodósio Franco, que repartiam mensalmente milhares e milhares de contos em abonos de família, subsídios e pensões de reforma para segurança de milhares e milhares de famílias.
Mas naquela azáfama toda, algumas vezes por mês, o Gonsalves Preto não acompanhava os colegas no serão. Era nos dias de véspera da tua saída, caro Re-nhau-nhau. Então visivelmente penalizado muito circunspectamente dizia-me: Hoje não me é possível ficar para o serão. Tenho de ir fazer o Re-nhau-nhau que sai amanhã.
Fazia ele então na tua casa, prezado Bichano, uma boa seroada a preparar crónicas, a escrever críticas e a compôr o “Jazz-Band”, essa secção que era lida avidamente, logo que saías, pelos teus leitores. Quando o Gonsalves Preto se despedia para ir tratar de ti (meu maroto, quantos milhares de horas lhe ficaste a dever de ternos carinhos) uma vez por outra dizia-lhe : “Oh Gonsalves Preto, ponha lá esta no Re-nhau-nhau!” E de seguida contava-lhe uma breve anedota, daquelas que eu tinha trazido na bagagem de recém-chegado do Continente e que não eram ainda muito conhecidas na Madeira. Então o Gonçalves Preto, no virtuosismo do seu estilo, com a graça que eu lhe contava compunha uma deliciosa história, cheia de espírito numa prosa característica e inconfundível.
Até que chegou o Natal e o Gonsalves Preto convidou-me para directamente colaborar no número especial do teu aniversário tentando-me convencer com o argumento de que, tendo já sido colaborador indirecto tão assíduo, devia colaborar directamente pelo menos naquele número especial. Na verdade não fazia idéia nenhuma do que poderia escrever e em princípio declinei o convite. Não me ocorria nada de original, sentia-me sem inspiração, absorvido como estava no meu trabalho. Mas num fim de semana dos princípios de Dezembro, acudiu-me uma idéia. E agora vou revelar-te um segredo que só havia revelado ao teu patrono. Aos dezoito anos, como todos os jovens, escrevi poemas, sonetos, contos e novelas...
Toda aquela produção literária repousava há muitos anos nas gavetas da minha secretária de estudante, praticamente inédita, porque se alguma daquelas produções alguma vez tinha visto a luz da publicidade tinha sido em jornais académicos, de circulação limitadíssima, tirados ao “copiógrafo” que era o aparelho mais avançado daquela época de fazer reproduções. Num esforço de memória comecei a lembrar-me do teor de alguns daqueles escritos e num belo domingo de manhã, com o tema de um deles, fiz uma pequena composição que entreguei ao Gonsalves Preto logo na manhã seguinte. Com que alegria ele leu num ápice a minha prosa simples e que satisfação lhe deu ter arranjado mais uma página de original para o seu Re-nhau-nhau! E com que bondade e tolerância apreciou a pequena historieta.“Está reunida a assembleia geral da Sociedade Filarmónica Os Amigos da Semi-Colcheia” e veio publicada no teu número de Natal de 1946, saído no dia 21 de Dezembro daquele ano, faz agora vinte e cinco anos – um quarto de século.
Daí por diante todos os anos dei um ar da minha pouca graça nos teus números de aniversário graças à insistência do Gonsalves Preto e à reserva de pequenas historietas que eu tinha na gaveta e que eu recompunha, burilava e actualizava e que está praticamente esgotada.
Por vezes as preocupações eram muitas e quando esperava desenvolver um tema, sob um aspecto alegre, saía-me uma prosa triste. No entanto sempre te mandava alguma coisa para publicares.
Quando em Abril deste ano estive de novo no Funchal e o Gonsalves Preto e a sua dedicadíssima esposa me receberam com a sua habitual requintada hospitalidade madeirense, logo insistiu que não me esquecesse da colaboração deste ano. Foi uma antecipação de sete meses da época habitual do convite mas logo fiquei comprometido em escrever mais uma vez para as tuas colunas. Não esperava que o Gonsalves Preto já não pudesse confirmar o convite em Novembro seguinte, coma fazia todos os anos.
Efectivamente poucos dias depois da minha estadia no Funchal fui surpreendido pela notícia do falecimento do teu querido Director. Não lhe tinha sequer agradecido a magnífica hospitalidade que me dera!
Depois foi a suspensão da tua publicação. Era um desgosto sobre outro desgosto.
Confessoque pensava muitas vezes nas possibilidades da tua reaparição. Mas que poderia eu fazer, daqui do Continente para te ajudar? Sempre alimentei uma grande esperança que os teus amigos madeirenses não te deixariam sucumbir ao desgosto do desaparecimento daquele que fez de ti um verdadeiro Gato!
Interpretei a tua suspensão temporária como um período de nojo. Também já passei por isso e então compreendi a tão humana intenção do preceito que permite àquele a quem desaparece um ente querido de ficar em recolhimento absoluto, em meditação, durante alguns dias dispensando-o de qualquer trabalho. É que nessas alturas sente-se um vazio tão grande, uma tristeza tão profunda que só o isolamento nos pode sarar as feridas do coração. Depois, pouco a pouco, o traumatismo do desgosto vai-se desvanecendo, vem uma espécie de esquecimento e voltamos à normalidade. A vida não pode parar. Não foi sem razão que um grande pensador disse: “É uma graça a faculdade que o homem tem de esquecer”.
E quando de novo te vi, tive uma grande alegria. Vinhas com ar repousado, vinhas talvez mais cheio, talvez com o pelo mais brilhante. Os novos responsáveis pela tua existência trataram-te bem. Foi um enorme prazer ver-te de novo, folhear-te e ler as tuas habituais secções. Que mágoa eu tinha se não voltasses a aparecer! É que não temos uma imprensa tão rica que se possa dar ao luxo de deixar perder um jornal que vai a caminho de meio século de existência. Deve lembrar-se que fazes este Natal quarenta e dois anos de idade. Penso na enorme soma de sacrifícios que representa a tua publicação durante quarenta e dois anos e a perseverança com que o Gonsalves Preto te fazia sair do teu borralho de dez em dez dias. Todo esse esforço tinha de ser respeitado.
Quando te conheci eras um jovem gatinho adolescente, de dezasseis anos apenas. Como o tempo passa ! Mas a tua longevidade é indeterminada. Lembra-te que tens colegas na Imprensa que são centenários e tu lá chegarás com a graça de Deus e a graça dos teus dirigentes.
Já vai adiantada esta carta. Apenas mais uma coisa te quero sugerir:
Aquela mão enluvada que te afaga no cabeçalho do jornal, deve ser a mão direita do Gonsalves Preto. Talvez seja. Deve ser mesmo. Mas ninguém o deve saber. Foi com mágoa que deixei de ver o nome do teu director no teu cabeçalho onde figurou durante quase quarenta e dois anos. Assim sugiro que com os nomes dos teus novos orientadores volte a figurar o do teu antigo Director e do teu antigo proprietário e também Director João Miguel que grande amigo foi do Gonsalves Preto. Sugiro, pois, que em qualquer parte do cabeçalho se inscreva em letra bem visível: “Fundadores: Gonsalves Preto e João Miguel”.
Querido Re-nhau-nhau: E agora despeço-me. Esta carta já vai longa, já curti as minhas tristezas, já recordei bons velhos tempos, já calei as minhas mágoas. No dia do teu aniversário vai pôr por mim uma flôr, talvez uma orquídea, na campa do Gonsalves Preto.
Eu quando voltar ao Funchal pagar-te-ei este favor com um pequeno “bouquet” de flores.
E permite-me que te dê ainda alguns conselhos, pois apesar de tudo conheço-te há muitos anos e sou mais velho do que tu: Com os votos de que os teus novos orientadores sejam muito felizes no convívio contigo; não tenhas birras de menino pequeno para com eles. Nunca os maltrates nem nunca os arranhes. Eles virão a amar-te tão intensamente - se não te amam já - tanto como o Gonsaves Preto te amou. Depois da sua extremosa esposa e do filho devias ser tu o Ai-Jesus do seu coração.
Recebe um madeirense forte abraço do amigo de sempre no tempo e no espaço,
Cícero Galvão
Lisboa, Dezembro de 1971
Nota da redacção: Ao Dr. Cícero Galvão, que contamos dispense a amizade de sempre a este jornal, agradecemos a sua valiosa colaboração e, mais ainda, a sua sugestão que aproveitámos imediatamente – a partir de hoje figurará no cabeçalho do “Re-nhau-nhau” o nome dos seus saudosos fundadores.
Interpretei a tua suspensão temporária como um período de nojo. Também já passei por isso e então compreendi a tão humana intenção do preceito que permite àquele a quem desaparece um ente querido de ficar em recolhimento absoluto, em meditação, durante alguns dias dispensando-o de qualquer trabalho. É que nessas alturas sente-se um vazio tão grande, uma tristeza tão profunda que só o isolamento nos pode sarar as feridas do coração. Depois, pouco a pouco, o traumatismo do desgosto vai-se desvanecendo, vem uma espécie de esquecimento e voltamos à normalidade. A vida não pode parar. Não foi sem razão que um grande pensador disse: “É uma graça a faculdade que o homem tem de esquecer”.
E quando de novo te vi, tive uma grande alegria. Vinhas com ar repousado, vinhas talvez mais cheio, talvez com o pelo mais brilhante. Os novos responsáveis pela tua existência trataram-te bem. Foi um enorme prazer ver-te de novo, folhear-te e ler as tuas habituais secções. Que mágoa eu tinha se não voltasses a aparecer! É que não temos uma imprensa tão rica que se possa dar ao luxo de deixar perder um jornal que vai a caminho de meio século de existência. Deve lembrar-se que fazes este Natal quarenta e dois anos de idade. Penso na enorme soma de sacrifícios que representa a tua publicação durante quarenta e dois anos e a perseverança com que o Gonsalves Preto te fazia sair do teu borralho de dez em dez dias. Todo esse esforço tinha de ser respeitado.
Quando te conheci eras um jovem gatinho adolescente, de dezasseis anos apenas. Como o tempo passa ! Mas a tua longevidade é indeterminada. Lembra-te que tens colegas na Imprensa que são centenários e tu lá chegarás com a graça de Deus e a graça dos teus dirigentes.
Já vai adiantada esta carta. Apenas mais uma coisa te quero sugerir:
Aquela mão enluvada que te afaga no cabeçalho do jornal, deve ser a mão direita do Gonsalves Preto. Talvez seja. Deve ser mesmo. Mas ninguém o deve saber. Foi com mágoa que deixei de ver o nome do teu director no teu cabeçalho onde figurou durante quase quarenta e dois anos. Assim sugiro que com os nomes dos teus novos orientadores volte a figurar o do teu antigo Director e do teu antigo proprietário e também Director João Miguel que grande amigo foi do Gonsalves Preto. Sugiro, pois, que em qualquer parte do cabeçalho se inscreva em letra bem visível: “Fundadores: Gonsalves Preto e João Miguel”.
Querido Re-nhau-nhau: E agora despeço-me. Esta carta já vai longa, já curti as minhas tristezas, já recordei bons velhos tempos, já calei as minhas mágoas. No dia do teu aniversário vai pôr por mim uma flôr, talvez uma orquídea, na campa do Gonsalves Preto.
Eu quando voltar ao Funchal pagar-te-ei este favor com um pequeno “bouquet” de flores.
E permite-me que te dê ainda alguns conselhos, pois apesar de tudo conheço-te há muitos anos e sou mais velho do que tu: Com os votos de que os teus novos orientadores sejam muito felizes no convívio contigo; não tenhas birras de menino pequeno para com eles. Nunca os maltrates nem nunca os arranhes. Eles virão a amar-te tão intensamente - se não te amam já - tanto como o Gonsaves Preto te amou. Depois da sua extremosa esposa e do filho devias ser tu o Ai-Jesus do seu coração.
Recebe um madeirense forte abraço do amigo de sempre no tempo e no espaço,
Cícero Galvão
Lisboa, Dezembro de 1971
Nota da redacção: Ao Dr. Cícero Galvão, que contamos dispense a amizade de sempre a este jornal, agradecemos a sua valiosa colaboração e, mais ainda, a sua sugestão que aproveitámos imediatamente – a partir de hoje figurará no cabeçalho do “Re-nhau-nhau” o nome dos seus saudosos fundadores.
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