Querido Re-nhau-nhau: Prezado Bichano, Ilustre felino, não menos digno Gato de Letras e eminente órgão de Imprensa: Desta vez não te chamo egrégio, como referi no ano passado, mas nem por isso todos os outros qualificativos deixam de ter plena justificação, pois cada vez te assentam melhor do que uma luva. Também te poderia chamar o Príncipe ou o Decano dos jornais humorísticos portugueses, mas estas expressões penso usá-las quando proferir o discurso solene comemorativo do teu cinquentenário que se aproxima, discurso que já ando a preparar mentalmente. Nessa ocasião tenho de ter muito cuidado ao aplicar o termo Decano, não me vá sair «Gato decano», porque se poderá confundir com «rato de cano» e não convém misturar as coisas, pois os ratos nunca quiseram nada com os ratos e vice-versa.
Seja como for, e assim como não se quer a coisa, passou mais um ano e cá estou de novo a cumprimentar-te pela passagem de mais um teu aniversário e de um Natal.
O ano passado avancei com a ideia de se comemorar condignamente o teu cinquentenário, porque te fiz mais velho e julgava sinceramente que o mesmo estivesse mais próximo. Mas enganei-me nos cálculos e como acontece às pessoas célebres, tive que proceder a cuidadosas averiguações para determinar com exactidão a época do teu nascimento. Assim consultei a minha colecção de «Re-nhau-nhaus», embora incompleta, e concluí que vieste a este mundo, depois de uma gestação atribulada, por alturas do Natal do ano da graça de 1929, segundo rezam as crónicas, ou melhor, segundo reza uma crónica publicada na segunda página do teu número de Natal de 1966. Portanto, desvendo o mistério, só daqui a três anos te tornas cinquentão. Temos, pois, tempo para organizar a Festa, embora eu todos os anos vá lembrando o evento, não vá arrefecer a coisa... Água mole em pedra dura...
Desta feita corri sérios riscos de não ter tempo de escrever a minha habitual colaboração de Natal, ou seja o pagamento do meu foro de «um conto por ano»...
Calcula que em fins de Novembro, quando me preparava para redigir a minha costumada colaboração, fui surpreendido, agradavelmente surpreendido, aliás, com a necessidade de uma deslocação ao estrangeiro. Motivos profissionais levaram-me, por pouco mais de uma semana a Itália, esse maravilhoso país pelo qual me encontro enamorado há muitos anos. Regressaria nos primeiros dias de Dezembro e ficava sem tempo para te escrever. Só tive uma solução - fui escrevendo às noites o meu modesto contributo para o teu número de Natal e quando cheguei a Lisboa foi só o trabalho de o passar à máquina.
Eu que pensava escrever-te num moderno estilo empolado que está agora muito em moda, com termos do género de a programática, a óptica (e a acústica), na estratégia global, à partida, na conjuntura e na tutela integrada, passando pela laboração participada, etc., etc., etc., estilo que faz embasbacar as gentes e que estou a estudar para o poder aplicar em consciência e não ficar para trás, tive de abandonar a ideia por falta de tempo. Com efeito, é um estilo pomposo, muito brilhante, e que grangeia fama e prestígio para quem o usa, embora ninguém o entenda. Mas não faz mal, porque, à partida, ninguém tem coragem para o dizer... Ficará para o ano e vamos à crónica que se faz tarde.
Deveres profissionais levaram-me a Roma na segunde quinzena do mês de Novembro. E como todos os caminhos vão dar a Roma e quem tem boca vai a Roma, comecei a viagem em direcção a Milão. Cá tinha a minha fisgada - já que tinha de ir a Itália, fazia uma passeggiata, passando por algumas maravilhosas cidades antes de chegar a Roma. Queria rever ou ver de novo, paisagens, monumentos e pessoas.
Uma hora depois de chegar a Milão passeava pela praça da Duomo com a estátua equestre de Vitor Manuel II ao centro, mas dominada pela maravilhosa e célebre catedral a que eu chamo o verdadeiro «Milagre de Milão». Jantei nas «Galerias Vitor Manuel» que constituem um original centro de comércio, com magníficos estabelecimentos de livraria, joalharia, casas de modas, restaurantes, etc. e que têm a particularidade de magníficas ruas, sem trânsito automóvel e totalmente cobertas ao nível dos telhados dos prédios. Passam-se com facilidade, horas e horas nestas ruas, melhor, nestas galerias, onde nunca chove nem faz sol. No dia seguinte fui à «Chiesa de Santa Maria Delle Grazie» ver mais uma vez essa maravilhosa obra de arte que é «A última ceia» do imortal Leonardo da Vinci, uma pintura mural de grandes dimensões, estampada numa das paredes do refeitório e que infelizmente se encontra bastante deteriorada.
Quando se viaja há surpresas, em regra surpresas agradáveis. Pensava seguir para Veneza no dia seguinte, logo de manhã, mas vi anunciado num cartaz à porta do Teatro della Scala (o famoso Scala de Milão) um concerto de piano, às nove horas da noite, pelo pianista russo Nikita Magaloff. Nunca tinha entrado no Scala nem nunca tinha ouvido aquele artista russo que já esteve em Lisboa, e resolvi-me ficar mais um dia para o concerto, pois o programa era atraente - todo constituído por peças de Chopin. Efectivamente Magaloff é um intérprete extraordinário de Chopin e entusiasmou até ao delírio a erudita assistência que enchia por completo o teatro. Os aplausos finais foram tão calorosos que o artista generosamente cedeu a tocar mais seis números extra programa.
Como prémio extra aos frequentadores do teatro, o Museu da ópera de Milão, que confina com o teatro, está aberto durante os intervalos dos espectáculos. Meia hora é insuficiente para visitar o Museu, no entanto tivemos oportunidade de ver muitas coisas ligadas à história da música em Itália- retratos de artistas célebres, objectos do seu uso pessoal, instrumentos. musicais que pertenceram aos mais famosos virtuosos, originais de composições, máscaras e mãos reproduzidas em gesso e colecções de batutas de dirigentes de orquestras, como as de Toscanini, que regeram concertos em noites de glória.
No dia seguinte, a caminho de Veneza, passei por Verona e Pádua. Verona com o seu célebre anfiteatro, a Arena Romana, construída no ano 290 Antes de Cristo e que ainda hoje, com capacidade para mais de 25.000 pessoas, está funcional para grandes espectáculos de ópera ao ar livre e outras manifestações. O tempo urgia e fui dar uma vista de olhos à casa de Julieta e ao seu balcão, onde a jovem apaixonada conversava com Romeu que - trepava por uma escada !!!.. Se o leitor está interessado, posso deixar-lhe a morada da infeliz apaixonada - Via Capello, nº 23. Capello, o nome de família da romântica rapariga que era ainda uma adolescente quando foi intérprete daquela tão grande tragédia. Entra-se para a casa dos Capulletos por um pátiozinho acolhedor e é à direita. Num primeiro andar alto, que se encontra a varanda tão reproduzida nos postais que se vendem aos milhares aos turistas de todo o mundo que vão ali prestar homenagem a tão grandes apaixonados. O tempo urgia e segui para Pádua onde na Basilica del Santo visitei o nosso compatriota Santo António e um frade nosso velho amigo também português.
À pressa, seguimos enfim para Veneza, onde numa «mutação à vista», conforme a técnica cinematográfica (ou vassourada) admiramos a Praça S. Marcos, à qual Napoleão chamou «o mais belo salão da Europa», num dos topos, se encontra a Basilica de S. Marcos, fundada em 828, há mais de mil e cem anos! À direita da Basílica, surge-nos o palácio Ducal, dos Doges, onde frequentemente se realizam mostras de pintura e concertos. Antes de embarcarmos no cais de S. Marcos, passamos pela ponte dos suspiros. Metidos no «vaporeto» que é uma espécie de autocarro aquático, dirigimo-nos para a estação Ferroviária, de onde seguimos subito para Florença.
Esta nova ida a Florença fez-nos lembrar um episódio, que é das tais surpresas que formam o encanto das viagens, passado já há alguns anos. Dessa vez havíamos chegado a Florença já noite fechada, arranjámos hotel e fomos jantar. Arrastámos o jantar, nitidamente a fazer horas para nos deitarmos. No entanto um casal do grupo que não conhecia a cidade, sugeriu que déssemos uma volta e fôssemos ver por fora o famoso Palácio Pitti, no outro lado do Arno, passado o «Ponte Vecchio», em cujas margens muito suspirou Dante.
Com surpresa nossa àquela hora da noite, perto das onze, o palácio encontrava-se iluminado e aberta a grande porta principal da frente. O palácio estava efectivamente aberto mas não era para ver a sua colecção de pintura. Realizava-se naquela noite um concerto de piano organizado pela Associação Italiana de Difusão Musical, de Florença. Dava-se início a uma série de «Concerti di Primavera a Palazzo Pitti». Estávamos em fins de Maio, em plena Primavera. O pianista era um artista napolitano, chamado Michel Campanella, muito jovem. Perguntámos aos porteiros se podíamos entrar. Disseram-nos que sim, mas que não valeria a pena, pois o concerto começara cedo e devia estar a terminar. Mesmo assim, subimos ao segundo andar, à «sala bianca», onde outro porteiro nos deixou entrar, embora nos observasse também que o concerto estava prestes a acabar... Entrámos então numa sala maravilhosa com as paredes forradas de seda branca, com quatro enormes e belos lustres de cristal, e uma vasta plateia, formada de cadeiras de desarmar. Havia ainda algumas cadeiras vagas nas últimas filas, sentámo-nos silenciosamente e pegámos num programa que estava no assento da cadeira e que, guardo religiosamente. De facto, o artista tocava o último número do programa, uma tocatta de Prokofieff. Mesmo assim, ainda nos encantámos durante alguns minutos com essa música deliciosa. O concerto findou mas os aplausos foram tantos que o artista cedeu a tocar um numero extra, mas como o público continuava a aplaudir, houve outro número extra, e outro, e outro, nem os contámos, de forma que o concerto durou mais uma hora. Eis como inesperadamente assisti a um magnífico concerto num ambiente de sonho na «Sala Bianca» do maravilhoso Palácio Pitti.
Desta vez voltei a Florença só com a intenção de matar saudades de velhos amigos Antes de entrar na Duomo (a catedral de Santa Maria das Flores) admirei a porta de bronze do Baptistério, que está voltada para a catedral, a «Porta do Paraíso», como lhe chamou Miguel Ângelo. Depois entrei na Duomo, onde admirei uma das quatro Pietás esculpidas por aquele artista, aquela que o grande Mestre havia destinado ao seu túmulo e que se encontra inacabada. A seguir dei um salto à Galleria degli Uffizzi, para fazer uma vénia rápida à «Primavera» e ao «Nascimento de Vénus» de Boticelli, à «Virgem» de Rafael, a uma Santa Família de Miguel Angelo e dar uma vista de olhos, muito rápida, a dezenas e dezenas de quadros célebres de outros pintores, como Caravaggio (que também se chamava Miguel Ângelo), Dürer, Filippo Lippi, Canaletto (o pintor de Veneza) Piero de la Francesca que pintou o célebre retrato do pencudo Federico de Montefeltro, Duque de Urbino, e tantos e tantos outros quadros, que sei eu ignorante das Artes?...
Cheguei a Roma e no dia seguinte comecei o trabalho que me levara a Itália.
Em pequenas corridas, nos intervalos do serviço, ou depois deste, ainda tive tempo de ir admirar a Pietá de Miguel Ângelo (mais uma vez Miguel Ângelo), os frescos do mesmo Mestre da Capela Sixtina, de dar um salto à monumental Fontana di Trevi e deitar uma moeda no lago, de dar uma volta á Piazza Navona com as esculturas de Bernini e onde já se estavam a armar as vendas de Natal, espreitar a Piazza de Spagna e a Trinitá, e passar pelas ruas próximas, de comércio do mais requintado gosto, que já se encontram delicadamente decoradas para o Natal, sem falar nos monumentos milenários que se integram no conjunto urbanístico, com o Coliseu, o Fórum, os arcos de Tito e de Constantino.
Regressando ao trabalho ainda fui ver a estátua equestre de Sábio Marco Aurélio no Campidoglio, numa praça atrás do grandioso monumento, este já dos nossos dias, a Vitor Manuel II.
Não visitava a Itália há mais de três anos e falei muito com amigos italianos sobre a sua vida de hoje. Nota-se neste país uma certa crise que ninguém sabe explicar. Em primeiro lugar uma inflação desenfreada que ninguém domina. O custo dos alimentos, diárias de hotéis, vestuário e calçado, aumentou em três anos mais de duas vezes e meia. No entanto, o turismo não teve grande decréscimo, as suas indústrias continuam a produzir os melhores e os mais bem acabados produtos, desde a ligeiríssima indústria de bijouterias até à de preciosos cristais de Veneza e Murano, sem esquecer os produtos alimentares, o vestuário e calçado (de custo três vezes superior ao de Portugal) e a indústria pesada de máquinas - ferramentas, locomotivas, tractores, etc., etc., etc....
Não, ninguém foi capaz de explicar as causas da crise. Apenas os transportes continuam baratos. Extraordinariamente baratos. Andei cerca de mil e quinhentos quilómetros, em excelentes e velozes comboios, cómodos e pontuais, à razão de $38 o quilómetro. Comparem com os preços de cá... Um funcionário superior das Ferrovias do Estado esclareceu-me que o transporte de pessoas em caminho de ferro do Estado são propositadamente baratos.
- Já vê, dizia-me ele, a Itália é um extenso país. Tem mais de cinquenta milhões de habitantes distribuídos por 320.000 quilómetros quadrados. A sua unificação fez-se há pouco mais de cem anos. Assim há necessidade que os italianos contactem o mais possível uns com os outros, viajando de Norte a Sul e de Este a Oeste. Daí a tradicional política de o transporte de pessoas ser muito barato e ainda com apreciáveis reduções quando se viaja em grupo ou se deslocam famílias.
Os transportes urbanos são também muito baratos. Um bilhete para qualquer distância em autocarro ou na «Metropolitana» custa apenas cinquenta liras, pouco mais de dois escudos. Atravessa-se por exemplo, Roma de lés a lés por esta importância. Tudo o resto, como já referi, está extremamente caro. Ao deixar Roma estive para te mandar um postal com a seguinte quadra:
"Em Roma sê romano!",
Isso era bom de dizer...
Aos preços que estou a ver,
"Em Roma só americano!"
Arrivederci Roma! Até outra vez, país de artistas maravilhosos, cujas obras deram para dar e vender, encher os museus de todo o Mundo de pinturas e esculturas imortais, e deixar ainda as cidades, as vilas, as aldeias dessa maravilhosa Itália, de forma que, seja para onde for que uma pessoa se volte, tem de se descobrir para prestar homenagem à Arte e à Beleza!
Dezembro de 1976
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