O Silvino reformara-se e fora viver para a província. Tinha sido terceiro oficial do Ministério da Fazenda para onde entrara numa época em que eram fáceis as nomeações e os concursos eram substituídos por um bom pedido de pessoa influente, digamos a palavra, por uma boa cunha que proporcionava a entrada nos quadros do funcionalismo.
Não tinha grandes habilitações literárias e fora despachado amanuense da Fazenda. Fraca carreira fez. Vieram as reformas, as exigências de cursos e concursos para efeitos de promoção e o Silvino não passou de terceiro oficial. Na terra tinha sido barbeiro e foi o Dr. Costa, médico de partido e deputado pelo círculo respectivo, que lhe arranjara o lugar.
Veio para a capital e entusiasmado com o emprego casou e encheu-se de filhos. Como naquela época não havia ainda abono de família e os tempos foram sempre maus para quem tem fracos proventos, o Silvino teve de deitar mão do seu antigo ofício e todos os sábados fazia um biscato (um caruncho, como se diz aqui na Madeira) numa barbearia de um seu conterrâneo, para os lados da Mouraria, onde trabalhava sem descanso desde as cinco da tarde até à meia-noite, pois naquele tempo não havia também horário de trabalho. Ainda fazia a barba e cortava o cabelo a alguns colegas e superiores da repartição, desde o chefe de secção até ao director-geral, o que fazia com recato em casa destes fregueses ilustres, fora das horas de serviço, à noite ou aos domingos.
Os colegas sentiam uma certa inveja desta situação privilegiada, de intimidade com os seus superiores, mas o que é certo é que o Silvino, coitado, não tirou partido desta vantagem e nunca passou da cepa torta. Pelo contrário, desconfiou muito seriamente que uma sua pretensão para ser nomeado para outro lugar mais bem remunerado tinha sido seriamente torpedeada pelo seu chefe de repartição, com medo de perder o seu barbeiro ao domicílio por menos cinco tostões do que pagava na loja, sem contar com a gorjeta que também não dava. O Silvino desconfiou muito das dificuldades levantadas, mas não podia fazer nada e acabou por encolher os ombros e continuar na mesma.
A sua cultura era muito reduzida e os colegas durante uns tempos disfrutaram-no. Um dia caiu na ingenuidade de perguntar ao colega do lado, ao Freitas, que tinha ares de intelectual e usava barbicha e lunetas de lentes azuis (uma antecipação de existencialista), por que razão à guerra entre japoneses e chineses chamavam o conflito sino-japonês. O Freitas, gozador, com ares de grande erudição, contou-lhe uma extensa história, muito bem inventada, com foros de lenda, de um assalto de piratas japoneses que haviam roubado a um imperador chinês, muito poderoso, um sino sagrado de prata. E desde então chineses e japoneses nunca mais se haviam entendido e o sino de prata andava de cá para lá e de lá para cá, quer dizer da China para o Japão e vice-versa, em audaciosos roubos, sangrentos assaltos, guerras e guerrilhas. Agora o sino encontrava-se escondido no interior da China e daí a invasão japonesa e o conflito chamar-se sino-japonês. O Silvino escutou atentamente tão erudita explicação e no sábado à noite fez uma linda figura ao expor aos seus sócios da barbearia a verdadeira causa do conflito sino-japonês. O pior foi quando um freguês mais esperto não se conformou com aquela teoria e demonstrou “por a mais b”, como ele enfaticamente dizia, que a palavra sino ali queria dizer simplesmente chinês, como se poderia ver em qualquer bom dicionário, e que a versão que lhe tinham dado era pura brincadeira. E o freguês continuava com ares de grande sábio: E assim também sinologia que quer dizer o estudo de tudo o que diz respeito à China; sinólogo, o perito em sinologia, e até sínico, com “s” é preciso notar bem, que significa tudo o que diz respeito à China.
O Silvino sentia-se esmagado com tanta sabedoria e foi ele depois na Repartição que tirou desforra dos colegas que haviam abusado da sua ignorância.
Noutra ocasião convenceram-no a falar num jantar de homenagem ao seu Chefe que se aposentava. O Silvino escreveu laboriosamente um discurso que deu a rever aos colegas. Todos gabaram muito a composição e fizeram os maiores elogios ao trabalho. No entanto, de propósito, não lhe corrigiram certos deslizes e no banquete, quando foi a sua vez de falar, foi um verdadeiro fiasco quando ele eloquentemente declarou, na sua qualidade de terceiro oficial mais antigo, dirigindo-se ao seu superior: “É com as lágrimas na voz que me despeço de V.Exª, lamentando que por um imperativo da lei tenha de deixar o lugar que durante tantos anos desempenhou com a maior deficiência”.
Foi uma bomba! Os colegas não lhe tinham emendado o erro e o Chefe, rubro de cólera com a gaffe, só não o demitiu porque se tinha aposentado nesse dia. O Silvino não se apercebeu bem do que se passava e terminou o discurso bruscamente entre gargalhadas e aplausos, com o chefe muito irritado a perguntar aos vizinhos quem tinha tido a idéia de pôr aquele ignorante a falar.
Terminado o incidente, o Silvino jurou nunca mais meter-se em cavalarias altas. Isolou-se, passou a fazer uma vida de misantropo, limitando-se a executar o seu serviço, dia a dia, sem mais ambições, profundamente magoado, no seu íntimo, com aqueles maus colegas que o ridicularizaram. Passou, em suma, a deixar correr o tempo para a reforma...
...E a reforma de facto chegou. Com os filhos criados, o Silvino deitou contas à vida e resolveu aposentar-se. Deixou a sua casa de Lisboa à filha mais nova que se casara e foi viver para a sua terra natal, para uma sua casinha rodeada de uma boa courela que passaria a ser o seu entretém. Mas a sua casa carecia de obras para a tornar habitável, fechada como estava há tantos anos. Além disso, o quintal precisava de ser murado, o poço limpo e os canteiros arranjados. Pediu um orçamento – a coisa fazia-se por vinte e cinco contos. Tomou-os de empréstimo ao Silva, ao colega agiota, a juros de amigo, dando como garantia a propriedade. Pagaria a dívida à razão de quinhentos escudos por mês, fora os juros.
Feitas as obras, o Silvino refugiou-se com a mulher na sua casita que parecia nova depois das reparações que levara. Sentia-se enfim feliz, depois dos filhos criados, arrumados uns melhor do que outros, era certo (era a vida!), mas todos independentes. Muito lhe havia custado levar a bom termo toda a sua obra de honrado chefe de família, mas enfim tinha chegado a hora de descansar e considerava-se satisfeito com a sua reforma de quase dois contos por mês que dava bem para o seu sustento e o da mulher, mesmo descontando a amortização do empréstimo. Bem governado, ainda sobraria alguma coisa para ajudar os filhos e dar uns presentes aos netos.
Em novo, pensara fazer fortuna, como todos os aldeãos que abalam da terra. Chegou a pensar em estabelecer-se com um bom estabelecimento de barbearia na Baixa. Mas quê? Onde estava o capital? E deixar o seu emprego público não seria prudente. Nunca foi boa orientação deixar o certo pelo incerto... O tempo foi passando, o Silvino nunca se estabeleceu, nunca passou da cepa torta e chegou ao fim da carreira como tinha começado, honrado mas sem vintém.
Mas a esperança de vir a ter qualquer coisa de seu, de valor mais vultoso, nunca o abandonou. E o Silvino jogava todas as semanas na Lotaria, na ideia de um dia ser contemplado com a Sorte Grande.
Aliás, era o seu único vício. Durante a sua já longa vida muito dinheiro havia gasto naquele jogo, mas nunca lhe saíra nada de jeito.
O mais que lhe saiu foi o mesmo dinheiro. Nunca teve o prazer de ver um número em que jogasse figurar na lista! Já era pouca sorte! Agora, depois de reformado, continuava a jogar todas as semanas, comprando um décimo por catorze escudos. A mulher, embora muito económica e boa dona de casa, aprovava a despesa, pois o Diabo não estaria sempre atrás da porta e havia horas felizes, como apregoava o cauteleiro. De resto, ele não tinha outras extravagâncias. Há muito deixara de fumar e um copito de cerveja de vez em quando, com uns amigos, não haviam de o arruinar.
Comprava o jogo sempre em sítios diferentes para que, se um dia fosse bafejado pela sorte, ninguém soubesse.
Tinha um pressentimento que um dia havia de calhar... E, com efeito, uma bela tarde de sexta-feira, o Silvino chegou a casa transtornado, nervoso, com um grande contentamento a transbordar-lhe da alma. Mas também com uma incerteza, uma dúvida, de que lhe tivesse acontecido na realidade uma grande felicidade.
Correu à gaveta da secretária onde todas as semanas guardava a fracção da lotaria e confrontou, algarismo por algarismo, o número que tinha com a lista que vinha no jornal da tarde.
E desfizeram-se as dúvidas, desvaneceram-se as hesitações: o número era exactamente igual. Chamou numa alegria a mulher, para que ela também conferisse – Lá estava, não havia mais que duvidar! Tinha o número do primeiro prémio, da Sorte Grande, que enfim ao cabo de tantos anos lhe batia à porta! À cautela, no dia seguinte, confirmaria com a lista oficial. Aquele décimo de bilhete, aquele bocadinho de papel, valia cento e vinte contos! Era uma pequena fortuna! Não podia dizer que estava rico, mas no fim da vida aquele dinheiro era uma boa achega.
No seu cérebro começaram a bailar mil projectos. Pagaria em primeiro lugar o resto do empréstimo ao Silva. Só isso, que proveito lhe dava! – Deixava de pagar os juros e a amortização de quinhentos escudos por mês. Eram quatro anos e tal de sacrifícios que resgatava de um momento para o outro. E ainda lhe sobravam cem contos! Que havia de fazer a tanto dinheiro? Se fosse mais novo ainda tentaria abrir uma loja de barbeiro, o seu único sonho frustrado. Mas não, já era tarde. Talvez comprasse uma quintarola, uma boa vinha ali na região. Também fora sempre seu desejo possuir uma lavourazita razoável... A que ele tinha era de brincar... Mas de repente lembrou-se: o genro, o Rogério, tinha-lhe falado há tempos na proposta do patrão de lhe dar sociedade desde que ele entrasse com cem contos. Era o futuro do rapaz. Emprestar-lhe-ia o dinheiro e ele pagar-lhe-ia aos poucos com os lucros. Ao menos, a sua filha ficaria bem instalada na vida...
Quando expôs a sua ideia à mulher, esta reprovou-a in limine. Não, não senhor! Então ia um só beneficiar de tão importante quantia? E os outros? Não era justo proteger só um. Também não concordava com a compra de mais fazendas, terras – a agricultura era a arte de empobrecer alegremente. Receberiam eles o dinheiro, pagavam o que deviam ao Silva agiota, que ainda eram vinte contos, continuavam a fazer a mesma vida do que anteriormente e aplicariam o resto em papéis de rendimento certo. E sobretudo, nada de dar nas vistas. Sim, porque o dinheiro era chocalheiro e se constasse na aldeia que lhes tinha saído a Sorte Grande, seria uma romaria de gente a correr para casa deles, a pedir dinheiro emprestado. E assim eles, sem o encargo do empréstimo e com o rendimento daquele capital, melhoravam muito a sua situação. Auxiliariam igualmente todos os filhos e quando morressem cada um teria a sua parte.
O Silvino ficou desgostoso com o parecer da mulher. Para ele a melhor solução era emprestar os cem contos ao Rogério. O rapaz era sério e trabalhador. Em pouco tempo lhes pagaria tudo e sempre era outra situação para a filha. Mas a mulher não saía da sua opinião e foram deitar-se amuados.
Durante dias o Silvino não falou no assunto e não se decidia a ir a Lisboa rebater o décimo premiado. Até que, passadas algumas semanas, a mulher lhe tirou satisfação de tal atitude. Era preciso ir levantar o dinheiro. Era um perigo terem ali o papel na gaveta da cómoda. Uma distracção, um roubo, um incêndio... O Diabo tecia-as. Tinha de ir levantar o dinheiro, depositá-lo e depois decidiriam o que fazer... Que o melhor era comprar uns papéis de rendimento seguro e nada de generosidades nem de fantasias...
O Silvino não disse palavra, mas alguns dias depois levantou-se mais cedo, vestiu o seu melhor fato e abalou para Lisboa, com o décimo muito bem guardado na algibeira do interior do casaco, preso à fazenda por um alfinete de ama.
Na Santa Casa da Misericórdia ficou banzado com a facilidade com que lhe pagaram... Nem o nome lhe perguntaram, nem de onde era, nem de onde vinha. Só lhe inquiriram se queria um cheque ou notas de banco...
– Em notas, já se vê!, respondeu o Silvino que ia dali direitinho resgatar a dívida ao Silva.
E foi mesmo. Ao Silva contou tudo, pois apesar de agiota era de confiança e compreendia bem as responsabilidades de quem dispõe assim de uma importância avultada com preocupações de escolher o melhor investimento.
Até pediu conselho sobre a aplicação do dinheiro. O Silva achou boa a ideia da mulher. Isto de negócios ia mau e assim eles é que punham e dispunham.
O Silvino demorou-se com a conversa e quando deu por ele já era tarde para ir depositar o dinheiro ao Montepio. Levava os maços de notas numa velha pasta muito apertada debaixo do braço. Resolveu levar o dinheiro para casa e voltar no dia seguinte com a mulher para depositá-lo e encarregar o Montepio da compra dos papéis. Entretanto faria horas para o combóio. Foi quando encontrou um antigo colega da Repartição. Não se viam há tempos e havia farta matéria para a conversa. O Silvino, num rasgo de generosidade, convidou o amigo para tomar uma cerveja. Tinham tempo, ainda faltava mais de uma hora para o combóio. Mas a seguir à primeira cerveja, veio outra e mais outra. Estavam bem tiradas, fresquinhas e saborosas! O Silvino ficou um tanto animado, palavroso, com uma magnífica disposição. Resolveu-se a contar ao colega o que tinha sucedido. Já não o havia contado ao Silva? Este também era de confiança... E com os olhos a brilhar perguntou ao companheiro:
- Não és capaz de adivinhar o que trago aqui na pasta!
E de facto o antigo colega não foi capaz de adivinhar que estavam ali acamadinhos cem contos em dinheiro. E o Silvino, para provar a afirmação, abriu a pasta e, embora com cuidado, mostrou os maços de notas do Banco, novinhas em folha. O amigo, encantado, deu-lhe os parabéns e desejou-lhe muitas felicidades. Como já se ia fazendo tarde, despediu-se e piscando o olho recomendou-lhe cuidado com a pasta.
Apesar da imprudência, a conversa tinha decorrido com cuidado. Mas não tanto que uns vizinhos de mesa não tivessem a oportunidade de ouvir tudo e ver até as notas que estavam na pasta. Quando o Silvino ficou sozinho, pediu outra cerveja (um dia não eram dias e estava cheio de sede). Pagou a conta. Eram horas para o combóio. Foi quando os vizinhos, que não o perdiam de vista, o abordaram. – Então o senhor Silvino não os conhecia? Eram também funcionários de outra Repartição mas conheciam-no muito bem porque iam muitas vezes à dele, em serviço. Eram mesmo amigos de muitos antigos colegas. Sabiam que se tinha aposentado há já uns meses. Agora descansava e achavam-no óptimo, com bom aspecto. Ele é que tinha feito bem... Encaminhavam-se todos para a estação do Rossio, pela rampa. Um deles teve uma gentileza: Oh senhor Silvino, não vá carregado, eu levo-lhe a pasta... O Silvino desconfiou. Lá isso não. Mas o mariola, num sacão, arrancou-lhe a pasta debaixo do braço e ambos desataram a correr, confundindo-se com a multidão que àquela hora inundava o Rossio...
O Silvino, tonto pelas cervejas e surpreendido por aquele assalto inesperado, ficou apático, sem saber que fazer, e só passados largos segundos se apercebeu da situação. Largou a gritar que o tinham roubado e que agarrassem os ladrões. Mas onde eles já iam! Juntou-se muito povo, chegou a polícia. Foi à esquadra prestar declarações. Contou a sua odisseia, mas ele mal sabia dar os sinais dos assaltantes. A polícia tomou conta da ocorrência e iria averiguar... Mas a coisa afigurava-se difícil...
O Silvino regressou a casa no último combóio da noite. Quando chegou a casa a mulher já estava em cuidados. Estranhou o seu ar acabrunhado, a sua palidez, o seu ar desgraçado:
- O que se passou?
Não respondeu e caiu nos braços da mulher. Depois, num choro convulsivo, contou-lhe tudo. Tanta discussão para quê? Estavam agora como dantes, pobres como toda a vida tinham sido! Tantos projectos deitados por água abaixo! E choravam ambos abraçados a sua desdita...
Até que a mulher, sempre mais corajosa e desembaraçada, lhe perguntou numa reacção:
- Mas não chegaste a pagar a dívida ao Silva?...
– Lá isso paguei, respondeu o Silvino.
– Então não se perdeu tudo, observou a mulher, optimista. Estamos sem dívidas e é o que importa. O que temos chega para nós e ainda para ajudar os filhos... Anda deitar-te que precisas de descanso! E piedosamente deu-lhe um beijo na testa.
E o Silvino dormiu regaladamente toda a santa noite! Acordou cedo, refeito das tremendas emoções da véspera. Levantou-se sem a mulher sentir e foi trabalhar para a fazenda.
O dia estava radioso. Tudo vicejava à sua volta. A mulher chamou-o para comer. Que grande apetite ele tinha! Tomou a refeição junto dela, fitando-a nos olhos, admirando-a muito, e apertando-se as mãos de vez em quando como dois namorados. A comida soube-lhes deliciosamente, Sentiam-se naquele dia completamente felizes. Deram graças a Deus por tanta felicidade e nunca mais pensaram na Sorte Grande...
Cícero Galvão
Dezembro de 1960
Não tinha grandes habilitações literárias e fora despachado amanuense da Fazenda. Fraca carreira fez. Vieram as reformas, as exigências de cursos e concursos para efeitos de promoção e o Silvino não passou de terceiro oficial. Na terra tinha sido barbeiro e foi o Dr. Costa, médico de partido e deputado pelo círculo respectivo, que lhe arranjara o lugar.
Veio para a capital e entusiasmado com o emprego casou e encheu-se de filhos. Como naquela época não havia ainda abono de família e os tempos foram sempre maus para quem tem fracos proventos, o Silvino teve de deitar mão do seu antigo ofício e todos os sábados fazia um biscato (um caruncho, como se diz aqui na Madeira) numa barbearia de um seu conterrâneo, para os lados da Mouraria, onde trabalhava sem descanso desde as cinco da tarde até à meia-noite, pois naquele tempo não havia também horário de trabalho. Ainda fazia a barba e cortava o cabelo a alguns colegas e superiores da repartição, desde o chefe de secção até ao director-geral, o que fazia com recato em casa destes fregueses ilustres, fora das horas de serviço, à noite ou aos domingos.
Os colegas sentiam uma certa inveja desta situação privilegiada, de intimidade com os seus superiores, mas o que é certo é que o Silvino, coitado, não tirou partido desta vantagem e nunca passou da cepa torta. Pelo contrário, desconfiou muito seriamente que uma sua pretensão para ser nomeado para outro lugar mais bem remunerado tinha sido seriamente torpedeada pelo seu chefe de repartição, com medo de perder o seu barbeiro ao domicílio por menos cinco tostões do que pagava na loja, sem contar com a gorjeta que também não dava. O Silvino desconfiou muito das dificuldades levantadas, mas não podia fazer nada e acabou por encolher os ombros e continuar na mesma.
A sua cultura era muito reduzida e os colegas durante uns tempos disfrutaram-no. Um dia caiu na ingenuidade de perguntar ao colega do lado, ao Freitas, que tinha ares de intelectual e usava barbicha e lunetas de lentes azuis (uma antecipação de existencialista), por que razão à guerra entre japoneses e chineses chamavam o conflito sino-japonês. O Freitas, gozador, com ares de grande erudição, contou-lhe uma extensa história, muito bem inventada, com foros de lenda, de um assalto de piratas japoneses que haviam roubado a um imperador chinês, muito poderoso, um sino sagrado de prata. E desde então chineses e japoneses nunca mais se haviam entendido e o sino de prata andava de cá para lá e de lá para cá, quer dizer da China para o Japão e vice-versa, em audaciosos roubos, sangrentos assaltos, guerras e guerrilhas. Agora o sino encontrava-se escondido no interior da China e daí a invasão japonesa e o conflito chamar-se sino-japonês. O Silvino escutou atentamente tão erudita explicação e no sábado à noite fez uma linda figura ao expor aos seus sócios da barbearia a verdadeira causa do conflito sino-japonês. O pior foi quando um freguês mais esperto não se conformou com aquela teoria e demonstrou “por a mais b”, como ele enfaticamente dizia, que a palavra sino ali queria dizer simplesmente chinês, como se poderia ver em qualquer bom dicionário, e que a versão que lhe tinham dado era pura brincadeira. E o freguês continuava com ares de grande sábio: E assim também sinologia que quer dizer o estudo de tudo o que diz respeito à China; sinólogo, o perito em sinologia, e até sínico, com “s” é preciso notar bem, que significa tudo o que diz respeito à China.
O Silvino sentia-se esmagado com tanta sabedoria e foi ele depois na Repartição que tirou desforra dos colegas que haviam abusado da sua ignorância.
Noutra ocasião convenceram-no a falar num jantar de homenagem ao seu Chefe que se aposentava. O Silvino escreveu laboriosamente um discurso que deu a rever aos colegas. Todos gabaram muito a composição e fizeram os maiores elogios ao trabalho. No entanto, de propósito, não lhe corrigiram certos deslizes e no banquete, quando foi a sua vez de falar, foi um verdadeiro fiasco quando ele eloquentemente declarou, na sua qualidade de terceiro oficial mais antigo, dirigindo-se ao seu superior: “É com as lágrimas na voz que me despeço de V.Exª, lamentando que por um imperativo da lei tenha de deixar o lugar que durante tantos anos desempenhou com a maior deficiência”.
Foi uma bomba! Os colegas não lhe tinham emendado o erro e o Chefe, rubro de cólera com a gaffe, só não o demitiu porque se tinha aposentado nesse dia. O Silvino não se apercebeu bem do que se passava e terminou o discurso bruscamente entre gargalhadas e aplausos, com o chefe muito irritado a perguntar aos vizinhos quem tinha tido a idéia de pôr aquele ignorante a falar.
Terminado o incidente, o Silvino jurou nunca mais meter-se em cavalarias altas. Isolou-se, passou a fazer uma vida de misantropo, limitando-se a executar o seu serviço, dia a dia, sem mais ambições, profundamente magoado, no seu íntimo, com aqueles maus colegas que o ridicularizaram. Passou, em suma, a deixar correr o tempo para a reforma...
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...E a reforma de facto chegou. Com os filhos criados, o Silvino deitou contas à vida e resolveu aposentar-se. Deixou a sua casa de Lisboa à filha mais nova que se casara e foi viver para a sua terra natal, para uma sua casinha rodeada de uma boa courela que passaria a ser o seu entretém. Mas a sua casa carecia de obras para a tornar habitável, fechada como estava há tantos anos. Além disso, o quintal precisava de ser murado, o poço limpo e os canteiros arranjados. Pediu um orçamento – a coisa fazia-se por vinte e cinco contos. Tomou-os de empréstimo ao Silva, ao colega agiota, a juros de amigo, dando como garantia a propriedade. Pagaria a dívida à razão de quinhentos escudos por mês, fora os juros.
Feitas as obras, o Silvino refugiou-se com a mulher na sua casita que parecia nova depois das reparações que levara. Sentia-se enfim feliz, depois dos filhos criados, arrumados uns melhor do que outros, era certo (era a vida!), mas todos independentes. Muito lhe havia custado levar a bom termo toda a sua obra de honrado chefe de família, mas enfim tinha chegado a hora de descansar e considerava-se satisfeito com a sua reforma de quase dois contos por mês que dava bem para o seu sustento e o da mulher, mesmo descontando a amortização do empréstimo. Bem governado, ainda sobraria alguma coisa para ajudar os filhos e dar uns presentes aos netos.
Em novo, pensara fazer fortuna, como todos os aldeãos que abalam da terra. Chegou a pensar em estabelecer-se com um bom estabelecimento de barbearia na Baixa. Mas quê? Onde estava o capital? E deixar o seu emprego público não seria prudente. Nunca foi boa orientação deixar o certo pelo incerto... O tempo foi passando, o Silvino nunca se estabeleceu, nunca passou da cepa torta e chegou ao fim da carreira como tinha começado, honrado mas sem vintém.
Mas a esperança de vir a ter qualquer coisa de seu, de valor mais vultoso, nunca o abandonou. E o Silvino jogava todas as semanas na Lotaria, na ideia de um dia ser contemplado com a Sorte Grande.
Aliás, era o seu único vício. Durante a sua já longa vida muito dinheiro havia gasto naquele jogo, mas nunca lhe saíra nada de jeito.
O mais que lhe saiu foi o mesmo dinheiro. Nunca teve o prazer de ver um número em que jogasse figurar na lista! Já era pouca sorte! Agora, depois de reformado, continuava a jogar todas as semanas, comprando um décimo por catorze escudos. A mulher, embora muito económica e boa dona de casa, aprovava a despesa, pois o Diabo não estaria sempre atrás da porta e havia horas felizes, como apregoava o cauteleiro. De resto, ele não tinha outras extravagâncias. Há muito deixara de fumar e um copito de cerveja de vez em quando, com uns amigos, não haviam de o arruinar.
Comprava o jogo sempre em sítios diferentes para que, se um dia fosse bafejado pela sorte, ninguém soubesse.
Tinha um pressentimento que um dia havia de calhar... E, com efeito, uma bela tarde de sexta-feira, o Silvino chegou a casa transtornado, nervoso, com um grande contentamento a transbordar-lhe da alma. Mas também com uma incerteza, uma dúvida, de que lhe tivesse acontecido na realidade uma grande felicidade.
Correu à gaveta da secretária onde todas as semanas guardava a fracção da lotaria e confrontou, algarismo por algarismo, o número que tinha com a lista que vinha no jornal da tarde.
E desfizeram-se as dúvidas, desvaneceram-se as hesitações: o número era exactamente igual. Chamou numa alegria a mulher, para que ela também conferisse – Lá estava, não havia mais que duvidar! Tinha o número do primeiro prémio, da Sorte Grande, que enfim ao cabo de tantos anos lhe batia à porta! À cautela, no dia seguinte, confirmaria com a lista oficial. Aquele décimo de bilhete, aquele bocadinho de papel, valia cento e vinte contos! Era uma pequena fortuna! Não podia dizer que estava rico, mas no fim da vida aquele dinheiro era uma boa achega.
No seu cérebro começaram a bailar mil projectos. Pagaria em primeiro lugar o resto do empréstimo ao Silva. Só isso, que proveito lhe dava! – Deixava de pagar os juros e a amortização de quinhentos escudos por mês. Eram quatro anos e tal de sacrifícios que resgatava de um momento para o outro. E ainda lhe sobravam cem contos! Que havia de fazer a tanto dinheiro? Se fosse mais novo ainda tentaria abrir uma loja de barbeiro, o seu único sonho frustrado. Mas não, já era tarde. Talvez comprasse uma quintarola, uma boa vinha ali na região. Também fora sempre seu desejo possuir uma lavourazita razoável... A que ele tinha era de brincar... Mas de repente lembrou-se: o genro, o Rogério, tinha-lhe falado há tempos na proposta do patrão de lhe dar sociedade desde que ele entrasse com cem contos. Era o futuro do rapaz. Emprestar-lhe-ia o dinheiro e ele pagar-lhe-ia aos poucos com os lucros. Ao menos, a sua filha ficaria bem instalada na vida...
Quando expôs a sua ideia à mulher, esta reprovou-a in limine. Não, não senhor! Então ia um só beneficiar de tão importante quantia? E os outros? Não era justo proteger só um. Também não concordava com a compra de mais fazendas, terras – a agricultura era a arte de empobrecer alegremente. Receberiam eles o dinheiro, pagavam o que deviam ao Silva agiota, que ainda eram vinte contos, continuavam a fazer a mesma vida do que anteriormente e aplicariam o resto em papéis de rendimento certo. E sobretudo, nada de dar nas vistas. Sim, porque o dinheiro era chocalheiro e se constasse na aldeia que lhes tinha saído a Sorte Grande, seria uma romaria de gente a correr para casa deles, a pedir dinheiro emprestado. E assim eles, sem o encargo do empréstimo e com o rendimento daquele capital, melhoravam muito a sua situação. Auxiliariam igualmente todos os filhos e quando morressem cada um teria a sua parte.
O Silvino ficou desgostoso com o parecer da mulher. Para ele a melhor solução era emprestar os cem contos ao Rogério. O rapaz era sério e trabalhador. Em pouco tempo lhes pagaria tudo e sempre era outra situação para a filha. Mas a mulher não saía da sua opinião e foram deitar-se amuados.
Durante dias o Silvino não falou no assunto e não se decidia a ir a Lisboa rebater o décimo premiado. Até que, passadas algumas semanas, a mulher lhe tirou satisfação de tal atitude. Era preciso ir levantar o dinheiro. Era um perigo terem ali o papel na gaveta da cómoda. Uma distracção, um roubo, um incêndio... O Diabo tecia-as. Tinha de ir levantar o dinheiro, depositá-lo e depois decidiriam o que fazer... Que o melhor era comprar uns papéis de rendimento seguro e nada de generosidades nem de fantasias...
O Silvino não disse palavra, mas alguns dias depois levantou-se mais cedo, vestiu o seu melhor fato e abalou para Lisboa, com o décimo muito bem guardado na algibeira do interior do casaco, preso à fazenda por um alfinete de ama.
Na Santa Casa da Misericórdia ficou banzado com a facilidade com que lhe pagaram... Nem o nome lhe perguntaram, nem de onde era, nem de onde vinha. Só lhe inquiriram se queria um cheque ou notas de banco...
– Em notas, já se vê!, respondeu o Silvino que ia dali direitinho resgatar a dívida ao Silva.
E foi mesmo. Ao Silva contou tudo, pois apesar de agiota era de confiança e compreendia bem as responsabilidades de quem dispõe assim de uma importância avultada com preocupações de escolher o melhor investimento.
Até pediu conselho sobre a aplicação do dinheiro. O Silva achou boa a ideia da mulher. Isto de negócios ia mau e assim eles é que punham e dispunham.
O Silvino demorou-se com a conversa e quando deu por ele já era tarde para ir depositar o dinheiro ao Montepio. Levava os maços de notas numa velha pasta muito apertada debaixo do braço. Resolveu levar o dinheiro para casa e voltar no dia seguinte com a mulher para depositá-lo e encarregar o Montepio da compra dos papéis. Entretanto faria horas para o combóio. Foi quando encontrou um antigo colega da Repartição. Não se viam há tempos e havia farta matéria para a conversa. O Silvino, num rasgo de generosidade, convidou o amigo para tomar uma cerveja. Tinham tempo, ainda faltava mais de uma hora para o combóio. Mas a seguir à primeira cerveja, veio outra e mais outra. Estavam bem tiradas, fresquinhas e saborosas! O Silvino ficou um tanto animado, palavroso, com uma magnífica disposição. Resolveu-se a contar ao colega o que tinha sucedido. Já não o havia contado ao Silva? Este também era de confiança... E com os olhos a brilhar perguntou ao companheiro:
- Não és capaz de adivinhar o que trago aqui na pasta!
E de facto o antigo colega não foi capaz de adivinhar que estavam ali acamadinhos cem contos em dinheiro. E o Silvino, para provar a afirmação, abriu a pasta e, embora com cuidado, mostrou os maços de notas do Banco, novinhas em folha. O amigo, encantado, deu-lhe os parabéns e desejou-lhe muitas felicidades. Como já se ia fazendo tarde, despediu-se e piscando o olho recomendou-lhe cuidado com a pasta.
Apesar da imprudência, a conversa tinha decorrido com cuidado. Mas não tanto que uns vizinhos de mesa não tivessem a oportunidade de ouvir tudo e ver até as notas que estavam na pasta. Quando o Silvino ficou sozinho, pediu outra cerveja (um dia não eram dias e estava cheio de sede). Pagou a conta. Eram horas para o combóio. Foi quando os vizinhos, que não o perdiam de vista, o abordaram. – Então o senhor Silvino não os conhecia? Eram também funcionários de outra Repartição mas conheciam-no muito bem porque iam muitas vezes à dele, em serviço. Eram mesmo amigos de muitos antigos colegas. Sabiam que se tinha aposentado há já uns meses. Agora descansava e achavam-no óptimo, com bom aspecto. Ele é que tinha feito bem... Encaminhavam-se todos para a estação do Rossio, pela rampa. Um deles teve uma gentileza: Oh senhor Silvino, não vá carregado, eu levo-lhe a pasta... O Silvino desconfiou. Lá isso não. Mas o mariola, num sacão, arrancou-lhe a pasta debaixo do braço e ambos desataram a correr, confundindo-se com a multidão que àquela hora inundava o Rossio...
O Silvino, tonto pelas cervejas e surpreendido por aquele assalto inesperado, ficou apático, sem saber que fazer, e só passados largos segundos se apercebeu da situação. Largou a gritar que o tinham roubado e que agarrassem os ladrões. Mas onde eles já iam! Juntou-se muito povo, chegou a polícia. Foi à esquadra prestar declarações. Contou a sua odisseia, mas ele mal sabia dar os sinais dos assaltantes. A polícia tomou conta da ocorrência e iria averiguar... Mas a coisa afigurava-se difícil...
O Silvino regressou a casa no último combóio da noite. Quando chegou a casa a mulher já estava em cuidados. Estranhou o seu ar acabrunhado, a sua palidez, o seu ar desgraçado:
- O que se passou?
Não respondeu e caiu nos braços da mulher. Depois, num choro convulsivo, contou-lhe tudo. Tanta discussão para quê? Estavam agora como dantes, pobres como toda a vida tinham sido! Tantos projectos deitados por água abaixo! E choravam ambos abraçados a sua desdita...
Até que a mulher, sempre mais corajosa e desembaraçada, lhe perguntou numa reacção:
- Mas não chegaste a pagar a dívida ao Silva?...
– Lá isso paguei, respondeu o Silvino.
– Então não se perdeu tudo, observou a mulher, optimista. Estamos sem dívidas e é o que importa. O que temos chega para nós e ainda para ajudar os filhos... Anda deitar-te que precisas de descanso! E piedosamente deu-lhe um beijo na testa.
* * *
E o Silvino dormiu regaladamente toda a santa noite! Acordou cedo, refeito das tremendas emoções da véspera. Levantou-se sem a mulher sentir e foi trabalhar para a fazenda.
O dia estava radioso. Tudo vicejava à sua volta. A mulher chamou-o para comer. Que grande apetite ele tinha! Tomou a refeição junto dela, fitando-a nos olhos, admirando-a muito, e apertando-se as mãos de vez em quando como dois namorados. A comida soube-lhes deliciosamente, Sentiam-se naquele dia completamente felizes. Deram graças a Deus por tanta felicidade e nunca mais pensaram na Sorte Grande...
Cícero Galvão
Dezembro de 1960
1 comentário:
bom comeco
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