É verdade, querido leitor. O tipo de sedutor, émulo de D. Juan ou de Casanova, não desapareceu ainda. É certo que vão rareando essas figuras romanescas, inspiradas naquelas personalidades mais ou menos lendárias, cujos atrevimentos fizeram a vida negra a donzelas e mulheres casadas e respectivos maridos ciumentos.
Mas aparecem ainda alguns exemplares de aventureiros que com a sua “verve” ou a sua galantaria natural ou sofisticada levam uma vida cheia de imprevistos, de falsas promessas e de faltas de palavra, passando por tremendos sustos e pregando sustos tremendos a incautos papás ou desventurados maridos.
O meu amigo Alípio (o Alípio da Silva, de Mogofores) era um desses exemplares, felizmente já raros. Desde os seus tempos de Coimbra, onde arrastadamente se formara em Direito, que era um conquistador emérito, não lhe escapando nada, desde as populares tricanas até às meninas famílias da melhor sociedade coimbrã.
Contava-se até que para obter a licenciatura tivera de fazer namoro à filha de um lente, em cuja cadeira estava seriamente atrapalhado. A pequena estava passadona, já na casa dos trinta, não devia nada à formosura e suspirava constantemente por um casamento. Foi no baile de gala das festas da queima das fitas que o Alípio se atirou descaradamente à filha do professor, a ponto de lhe pôr a cabeça à roda. Devia acabar o curso nesse ano, mas na cadeira do pai da rapariga, o mais certo era apanhar uma valente reprovação se não se decidisse a estudar a valer. Mas como já não havia muito tempo nem muita vontade de estudar, o Alípio pretendia resolver a situação, fazendo uma corte cerrada à filha do Mestre.
Depois do baile de gala em que durante toda a noite só dançou com a Rosinha, a filha do professor, não mais deixou de a procurar e de entrar em contacto com ela por todos os meios ao seu alcance - eram telefonemas constantes para casa, encontros provocados na Baixa, uma ou outra matiné no Avenida, à socapa, com a condescendência da mãmã que, em virtude dos longos suspiros da filha, ansiava por a ver casada.
Ao terceiro encontro o Alípio falou-lhe muito a sério no casamento. Devia formar-se nesse ano. Daria com isso um enorme contentamento ao pai cuja maior ambição era vê-lo formado. O pai que felizmente possuía abastada fortuna não lhe faltaria com os meios necessários para se instalar na vida. Não sabia ainda se abriria banca de advogado ou se concorreria à magistratura ou ao notariado. Depois casaria. Tinha levado tempo de mais para acabar o curso e não queria sobrecarregar o pai com mais anos perdidos. Reconhecia que tinha feito muitas asneiras em Coimbra, perdera estupidamente muitos anos, mas agora estava disposto a recuperar. Se perdesse mais um ano, o pai teria um grande desgosto e era capaz de lhe cortar a mesada. Seria uma fatalidade e o pior é que ele não se sentia bem preparado, especialmente na cadeira regida pelo pai da Rosinha. E ela bem sabia que o pai era exigente! Que desculpasse, mas a malta chamava-lhe “a fera”, como ela devia bem saber...
A Rosinha sorria e dizia que não era tanto assim. O pai era muito compreensivo, mesmo bondoso. Se era exigente, era por dever do cargo. Ele devia compreender...
Alípio arriscou:
- Se tu pedisses ao papá por mim...
Mas logo num fingido arrependimento:
- Não, não faças isso. Ele poderia interpretar mal. Sempre tenho cada idéia... Sim, se me lembrei disso não era por egoísmo, era a pensar no futuro, pois quanto mais depressa se formasse, mais cedo se casariam, o que era agora a sua maior ambição...
A Rosinha, comovida, com os olhos marejados de lágrimas, olhava-o ternamente e não respondeu. Mas no seu íntimo decidiu-se a pedir ao pai por ele, pois revelando sentimentos tão puros bem o merecia.
À noite contou tudo à mamã, incluindo a conveniência de o Alípio acabar o curso e os apuros em que estava na cadeira do papá. Ambas se decidiram a fazer o pedido ao austero professor na melhor oportunidade. Era também preciso que o rapaz falasse ao pai no namoro e se regularizasse a situação. A altura não era má, pois a Rosinha fazia anos daí a dias e convidá-lo-iam para um chá. A mamã previamente poria o marido ao corrente do que se passava com a filha. Quanto ao resto, seria também com ela...
Tudo correu conforme a mãe planeara. A Rosinha passou um dia delicioso e o velho catedrático que conhecia mal o Alípio simpatizou com o rapaz, não sem previamente se ter informado que era de boas famílias e que o pai tinha de renda mais de vinte contos por mês.
Chegada a época dos exames, o Alípio fez actos, ficou aprovado e obteve o almejado canudo. Depois partiu para a terra, a gozar as férias, e como era de esperar não deu mais notícias. Só a ingénua Rosinha não esperava uma daquelas. Debalde lhe escrevia longas cartas cheias de ternura e desespero. Mas o Alípio continuava mudo e quedo, como o Penedo da Saudade onde ambos tinham passado horas deliciosas mirando a admirável paisagem de Coimbra. A Rosinha, desiludida, começou a entristecer, a definhar e aconteceu o inevitável - um dia tentou pôr termo à existência com veneno dos ratos. Valeu-lhe uma lavagem de estômago, feita de urgência, no Hospital da Universidade. Depois deste lamentável acidente, a Rosinha fez por esquecer tudo e nunca mais saiu de casa, a murchar de saudades...
Mas não julgue o leitor que esta foi a última aventura deste D. Juan. Mas também não vou aqui contar-lhe a biografia. Esse trabalho deixo-o a qualquer escritor especializado nesse ramo literário e que queira pegar na sua personalidade. No entanto, sempre relatarei mais um episódio da sua brilhante carreira amorosa que esse, sim, deve ter sido o último da acidentada vida deste conquistador inveterado.
Depois de formado, o Alípio abriu escritório de advogado na cidade do Porto e continuou a coleccionar aventuras.
Na sua roda de amigos, à tarde, na Praça, no Café Império, o Alípio blasonava, pontificava, sobre as suas qualidades de sedutor. Para ele, à semelhança do Cardeal Rufo da “Ceia dos Cardeais”, a conquista era tudo, o resto quase nada.
Uma ocasião, ao fim da tarde, ao sair do escritório, depois de um dia de trabalho intenso, o Alípio sentia-se disposto à conquista.
Ao descer a Rua dos Clérigos parou na montra de uma loja de modas. “A Noiva”, se chamava a casa. E o Alípio admirava o triste manequim vestido de noiva com um ar melancólico que há anos naquela montra esperava que alguém a levasse à Igreja. O Alípio pensava para si que nunca levaria noiva ao altar... celibatário impenitente como se considerava. Mas nisto, ao lado dele, parou também a ver a montra uma elegante senhora. O Alípio reparou nela. Oh! Céus, que maravilha! que perfeição de criatura! Que porte, que distinção, que serenidade, que silhueta... O Alípio esqueceu-se de tudo. A sua vocação de conquistador veio ao de cima. Todo ele se per- turbou. Instintivamente pigarreou para chamar a atenção da beldade. Endireitou o nó da gravata, ajustou o casaco. A elegante senhora continuou a descer a rua, em direcção à Praça, e o Alípio lançou-se na perseguição só com um pensamento a dominar-lhe o cérebro: - À conquista, à conquista...
A formosa dama foi tomar chá à Ateneia. As casas elegantes de chá eram o campo ideal de manobra do nosso conquistador.
O Alípio sentou-se a uma mesa de onde dominava bem a sua conquista. Castigava-a com o olhar, aquele irresistível olhar profundo, muito estudado, que já lhe tinha dado tantos sucessos. Mas ela, discreta, fingia que não reparava na corte. Depois do lanche, saiu da pastelaria e o Alípio foi-lhe na esteira. Atravessou a Praça e dirigiu-se à Estação de S. Bento. - Iria meter-se no comboio, pensou intrigado. E é que ia mesmo para o comboio. Assim que entrou na estação dirigiu-se para as bilheteiras e comprou um bilhete de primeira classe para Miramar, uma aprazível praia a quinze quilómetros do Porto. O Alípio que a seguia de perto viu para onde ela ia, rebuscou umas moedas na algibeira do casaco e comprou também um bilhete de primeira para Miramar.
A viagem foi rápida e na carruagem continuou a corte, embora prejudicada pela presença de outros passageiros. No entanto, ainda teve oportunidade para fazer a gentileza de fechar a janela, tentando meter conversa a propósito do tempo que se apresentava ventoso. Mas ela correspondeu com um breve e frio sorriso de agradecimento e não deu saída.
Chegados a Miramar, ela saltou lépida do comboio e o Alípio seguiu-a no encalço. Foi então que ela teve a certeza da descarada perseguição que lhe era movida. Estugou o passo e dirigiu-se rapidamente para casa. Morava numa vivenda relativamente perto da estação, rodeada de um fresco jardim. Logo que chegou ao portãozito, sumiu-se para mais não ser vista. Em vão o Alípio andou uma boa meia hora a rondar a casa, rua abaixo, rua acima, mas nem uma janela buliu nem uma cortina se mexeu. O Alípio sentia-se nervoso com este primeiro desaire, mas não desarmava. Quanto mais difícil se lhe deparava uma conquista, mais interesse punha nela, mais apurava a sua técnica de sedutor. Neste caso, já possuía preciosos elementos - sabia onde morava, devia ir ao Porto de vez em quando e frequentava uma casa de chá. Era só questão de persistir. Quantas conquistas se lhe tinham deparado mais difíceis e tinham acabado em glória!
Anoitecia. Por hoje a coisa não dava mais nada. No domingo viria passar o dia àquela praia e devia voltar a vê-la. Fazia-se tarde e tinha de regressar ao Porto. Quando chegou à estação e ia comprar o bilhete verificou com espanto que não tinha a carteira. Buscou em todas as algibeiras mas não a encontrava. (Nesta altura o leitor está a pensar que teriam roubado a carteira ao nosso herói e que a ladra seria, nada mais, nada menos, do que a beldade perseguida. Num impulso precipitado o Alípio também pensou isso. Mas não, o desfecho da nossa história é outro mais original como vão ver de seguida).
Então o Alípio lembrou-se perfeitamente que guardara a carteira na gaveta da secretária e quando saiu do escritório esquecera-se de a trazer. Se, por um lado, ficou descansado, por outro sobreveio-lhe nova preocupação. Tinha comprado um bilhete no Porto com uns trocos que lhe restavam no bolso, mas agora estava sem dinheiro para o regresso. Não conhecia ali ninguém... De súbito, recordou-se de um velho companheiro de Coimbra, médico, que se fixara em Miramar, o Freitas! Pensava que ainda havia de lá viver e seria a sua salvação naquela ligeira dificuldade. Dirigiu-se a um pequeno Café, perto da estação, e perguntou onde morava o Dr. Freitas. Solicitamente um empregado deu-lhe a preciosa informação: Na Vivenda Amélia, na Rua das Acácias - duas ruas logo adiante. O Alípio meteu-se a caminho e cedo deu com a rua e com a moradia. Mas, oh Céus! Podia lá ser! Era a moradia da perseguida! Lá estava numa artística placa de azulejos – “Vivenda Amélia”, e ele que momentos antes nem tinha reparado no nome: Então a sua conquista era a mulher do Freitas! E chamava-se Amélia! Gostava do nome - fazia-lhe lembrar mel e camélia, doçura e flor, ao mesmo tempo. Que desgraçada coincidência. Ia a retirar-se, sem saber que fazer, mas nisto abriu-se o portão da vivenda e surgiu o Freitas que saía de casa. O Alípio não pôde evitá-lo.
- Tu, por aqui!? perguntou o Freitas espantado.
E as perguntas sucederam-se: Que fazia por ali? Há quanto tempo se não viam? O Alípio balbuciava umas explicações: tinha vindo à tarde com um cliente e dera uma volta pela vila, a observar as vivendas. Havia lindas casas, na verdade, e a dele era de muito bom gosto. E para obter uma confirmação:
- Casaste, não é verdade?...
O Freitas respondeu afirmativamente... Agora já não restava qualquer dúvida.
O antigo colega de Coimbra mostrava-se satisfeito com o encontro e queria acamaradar:
- Olha, vou num instante ao correio expedir umas coisas, vem também e depois jantas comigo! Quero apresentar-te a minha mulher e mostrar-te a casa! O Alípio por mais que se esforçasse para escapar, não conseguiu furtar-se ao convite. E foi um mau bocado aquele em que o Freitas lhe apresentou a mulher. O Alípio beijou tímida e respeitosamente as pontas dos dedos da senhora e tinha dado toda a sua fortuna naquele momento para se poder sumir pelo chão abaixo!
Que figura ridícula estava a fazer! Mas a mulher do Freitas era uma autêntica senhora, como tinha demonstrado durante o terrível assédio que o Alípio lhe fizera, e não deixou transparecer a mínima admiração pelo que acontecia. Teria sido uma noite adorável se não fossem os antecedentes. O Freitas continuava a desfazer-se em amabilidades e o Alípio ansiava por se raspar. Perto da meia noite perguntou pelo horário dos comboios. Eram horas de se retirar. Não tinha trazido o carro. E justificava-se: Tinha vindo com um cliente de Espinho ver uma propriedade perto da praia (e improvisava uma mentira à custa de um letreiro que dizia “Vende-se” em que tinha reparado ao chegar a Miramar). Depois o cliente seguira para Espinho e ele ficara um bocado a ver a terra. O Freitas oferecia-se para o levar ao Porto, mas ele não podia aceitar. Era tarde e a viagem de ida e volta era demorada, não valia a pena. O Freitas insistia: Ao menos, levo-te num instante à estação. Foi um martírio para o dissuadir da idéia, se bem que o Alípio, sem dinheiro e sem coragem para explicar ao amigo a sua situação, não sabia como havia de chegar naquela noite ao Porto.
Por fim, lá conseguiu partir sozinho, com nova despedida cerimoniosa da senhora. O Freitas garantia-lhe que o comboio que estava a chegar era rápido e que daí a vinte minutos estava no Porto. O Alípio dirigiu-se para a estação, por se dirigir, pois sem dinheiro para o bilhete não podia ir no comboio. Viu-o de facto chegar e partir sem demora, à tabela, para maior raiva, assobiando estridentemente na negrura da noite.
Tinha passado um resto de dia arrasante. Todo ele era nervos. Que grande peça o acaso lhe pregara... Sentia-se sem sono, a apetecer-lhe tomar ar fresco. A noite estava boa, precisava de cansar-se, moer-se, castigar o corpo, penitenciar-se da figura ridícula que tinha feito naquele dia e tirar a melhor moral possível daquela história... Numa resolução tomou a estrada e heroicamente encaminhou-se para o Porto, a pé!
Pelas cinco horas da manhã chegou a casa exausto, depois de palmilhar durante mais de quatro horas quase quinze quilómetros. Com o fato em desalinho, os sapatos cambados, os pés a doerem-lhe horrivelmente, sentia-se bem castigado pela sua insensatez e deixou-se cair pesadamente sobre o leito, adormecendo profundamente, disposto a não meter-se mais em aventuras daquele género...
Na sua elegante moradia à Foz do Douro, o Alípio recebia agora com todas as honras o seu amigo Freitas e a encantadora esposa.
Tinha casado e retribuía ao simpático casal o jantar que lhe haviam oferecido algum tempo antes. Estava radiante com a sua nova situação e verdadeiramente apaixonado pela mulher, não menos encantadora que a do amigo. Quando as visitas se despediram, o Alípio abraçando o casal amigo agradecia-lhes efusivamente, do fundo do coração, a grande lição que lhe tinham dado - a lição da verdadeira felicidade conjugal, da harmonia de um lar, da realização dos mais puros sentimentos de amor... acrescentava verdadeiramente comovido.
Ao sair de casa, o Freitas, sensibilizado pelas palavras do amigo, segredava à esposa, encolhendo os ombros:
- Sempre exagerado este rapaz! Sempre romântico e sonhador... Que lição é que nós lhe poderíamos ter dado!?...
Mas a mulher, a encantadora D. Amélia, na sua dignidade de grande Senhora, não respondeu, embora soubesse qual a verdadeira lição que o Alípio tinha levado...
Cícero Galvão
Dezembro de 1961
Mas aparecem ainda alguns exemplares de aventureiros que com a sua “verve” ou a sua galantaria natural ou sofisticada levam uma vida cheia de imprevistos, de falsas promessas e de faltas de palavra, passando por tremendos sustos e pregando sustos tremendos a incautos papás ou desventurados maridos.
O meu amigo Alípio (o Alípio da Silva, de Mogofores) era um desses exemplares, felizmente já raros. Desde os seus tempos de Coimbra, onde arrastadamente se formara em Direito, que era um conquistador emérito, não lhe escapando nada, desde as populares tricanas até às meninas famílias da melhor sociedade coimbrã.
Contava-se até que para obter a licenciatura tivera de fazer namoro à filha de um lente, em cuja cadeira estava seriamente atrapalhado. A pequena estava passadona, já na casa dos trinta, não devia nada à formosura e suspirava constantemente por um casamento. Foi no baile de gala das festas da queima das fitas que o Alípio se atirou descaradamente à filha do professor, a ponto de lhe pôr a cabeça à roda. Devia acabar o curso nesse ano, mas na cadeira do pai da rapariga, o mais certo era apanhar uma valente reprovação se não se decidisse a estudar a valer. Mas como já não havia muito tempo nem muita vontade de estudar, o Alípio pretendia resolver a situação, fazendo uma corte cerrada à filha do Mestre.
Depois do baile de gala em que durante toda a noite só dançou com a Rosinha, a filha do professor, não mais deixou de a procurar e de entrar em contacto com ela por todos os meios ao seu alcance - eram telefonemas constantes para casa, encontros provocados na Baixa, uma ou outra matiné no Avenida, à socapa, com a condescendência da mãmã que, em virtude dos longos suspiros da filha, ansiava por a ver casada.
Ao terceiro encontro o Alípio falou-lhe muito a sério no casamento. Devia formar-se nesse ano. Daria com isso um enorme contentamento ao pai cuja maior ambição era vê-lo formado. O pai que felizmente possuía abastada fortuna não lhe faltaria com os meios necessários para se instalar na vida. Não sabia ainda se abriria banca de advogado ou se concorreria à magistratura ou ao notariado. Depois casaria. Tinha levado tempo de mais para acabar o curso e não queria sobrecarregar o pai com mais anos perdidos. Reconhecia que tinha feito muitas asneiras em Coimbra, perdera estupidamente muitos anos, mas agora estava disposto a recuperar. Se perdesse mais um ano, o pai teria um grande desgosto e era capaz de lhe cortar a mesada. Seria uma fatalidade e o pior é que ele não se sentia bem preparado, especialmente na cadeira regida pelo pai da Rosinha. E ela bem sabia que o pai era exigente! Que desculpasse, mas a malta chamava-lhe “a fera”, como ela devia bem saber...
A Rosinha sorria e dizia que não era tanto assim. O pai era muito compreensivo, mesmo bondoso. Se era exigente, era por dever do cargo. Ele devia compreender...
Alípio arriscou:
- Se tu pedisses ao papá por mim...
Mas logo num fingido arrependimento:
- Não, não faças isso. Ele poderia interpretar mal. Sempre tenho cada idéia... Sim, se me lembrei disso não era por egoísmo, era a pensar no futuro, pois quanto mais depressa se formasse, mais cedo se casariam, o que era agora a sua maior ambição...
A Rosinha, comovida, com os olhos marejados de lágrimas, olhava-o ternamente e não respondeu. Mas no seu íntimo decidiu-se a pedir ao pai por ele, pois revelando sentimentos tão puros bem o merecia.
À noite contou tudo à mamã, incluindo a conveniência de o Alípio acabar o curso e os apuros em que estava na cadeira do papá. Ambas se decidiram a fazer o pedido ao austero professor na melhor oportunidade. Era também preciso que o rapaz falasse ao pai no namoro e se regularizasse a situação. A altura não era má, pois a Rosinha fazia anos daí a dias e convidá-lo-iam para um chá. A mamã previamente poria o marido ao corrente do que se passava com a filha. Quanto ao resto, seria também com ela...
Tudo correu conforme a mãe planeara. A Rosinha passou um dia delicioso e o velho catedrático que conhecia mal o Alípio simpatizou com o rapaz, não sem previamente se ter informado que era de boas famílias e que o pai tinha de renda mais de vinte contos por mês.
Chegada a época dos exames, o Alípio fez actos, ficou aprovado e obteve o almejado canudo. Depois partiu para a terra, a gozar as férias, e como era de esperar não deu mais notícias. Só a ingénua Rosinha não esperava uma daquelas. Debalde lhe escrevia longas cartas cheias de ternura e desespero. Mas o Alípio continuava mudo e quedo, como o Penedo da Saudade onde ambos tinham passado horas deliciosas mirando a admirável paisagem de Coimbra. A Rosinha, desiludida, começou a entristecer, a definhar e aconteceu o inevitável - um dia tentou pôr termo à existência com veneno dos ratos. Valeu-lhe uma lavagem de estômago, feita de urgência, no Hospital da Universidade. Depois deste lamentável acidente, a Rosinha fez por esquecer tudo e nunca mais saiu de casa, a murchar de saudades...
Mas não julgue o leitor que esta foi a última aventura deste D. Juan. Mas também não vou aqui contar-lhe a biografia. Esse trabalho deixo-o a qualquer escritor especializado nesse ramo literário e que queira pegar na sua personalidade. No entanto, sempre relatarei mais um episódio da sua brilhante carreira amorosa que esse, sim, deve ter sido o último da acidentada vida deste conquistador inveterado.
Depois de formado, o Alípio abriu escritório de advogado na cidade do Porto e continuou a coleccionar aventuras.
Na sua roda de amigos, à tarde, na Praça, no Café Império, o Alípio blasonava, pontificava, sobre as suas qualidades de sedutor. Para ele, à semelhança do Cardeal Rufo da “Ceia dos Cardeais”, a conquista era tudo, o resto quase nada.
Uma ocasião, ao fim da tarde, ao sair do escritório, depois de um dia de trabalho intenso, o Alípio sentia-se disposto à conquista.
Ao descer a Rua dos Clérigos parou na montra de uma loja de modas. “A Noiva”, se chamava a casa. E o Alípio admirava o triste manequim vestido de noiva com um ar melancólico que há anos naquela montra esperava que alguém a levasse à Igreja. O Alípio pensava para si que nunca levaria noiva ao altar... celibatário impenitente como se considerava. Mas nisto, ao lado dele, parou também a ver a montra uma elegante senhora. O Alípio reparou nela. Oh! Céus, que maravilha! que perfeição de criatura! Que porte, que distinção, que serenidade, que silhueta... O Alípio esqueceu-se de tudo. A sua vocação de conquistador veio ao de cima. Todo ele se per- turbou. Instintivamente pigarreou para chamar a atenção da beldade. Endireitou o nó da gravata, ajustou o casaco. A elegante senhora continuou a descer a rua, em direcção à Praça, e o Alípio lançou-se na perseguição só com um pensamento a dominar-lhe o cérebro: - À conquista, à conquista...
A formosa dama foi tomar chá à Ateneia. As casas elegantes de chá eram o campo ideal de manobra do nosso conquistador.
O Alípio sentou-se a uma mesa de onde dominava bem a sua conquista. Castigava-a com o olhar, aquele irresistível olhar profundo, muito estudado, que já lhe tinha dado tantos sucessos. Mas ela, discreta, fingia que não reparava na corte. Depois do lanche, saiu da pastelaria e o Alípio foi-lhe na esteira. Atravessou a Praça e dirigiu-se à Estação de S. Bento. - Iria meter-se no comboio, pensou intrigado. E é que ia mesmo para o comboio. Assim que entrou na estação dirigiu-se para as bilheteiras e comprou um bilhete de primeira classe para Miramar, uma aprazível praia a quinze quilómetros do Porto. O Alípio que a seguia de perto viu para onde ela ia, rebuscou umas moedas na algibeira do casaco e comprou também um bilhete de primeira para Miramar.
A viagem foi rápida e na carruagem continuou a corte, embora prejudicada pela presença de outros passageiros. No entanto, ainda teve oportunidade para fazer a gentileza de fechar a janela, tentando meter conversa a propósito do tempo que se apresentava ventoso. Mas ela correspondeu com um breve e frio sorriso de agradecimento e não deu saída.
Chegados a Miramar, ela saltou lépida do comboio e o Alípio seguiu-a no encalço. Foi então que ela teve a certeza da descarada perseguição que lhe era movida. Estugou o passo e dirigiu-se rapidamente para casa. Morava numa vivenda relativamente perto da estação, rodeada de um fresco jardim. Logo que chegou ao portãozito, sumiu-se para mais não ser vista. Em vão o Alípio andou uma boa meia hora a rondar a casa, rua abaixo, rua acima, mas nem uma janela buliu nem uma cortina se mexeu. O Alípio sentia-se nervoso com este primeiro desaire, mas não desarmava. Quanto mais difícil se lhe deparava uma conquista, mais interesse punha nela, mais apurava a sua técnica de sedutor. Neste caso, já possuía preciosos elementos - sabia onde morava, devia ir ao Porto de vez em quando e frequentava uma casa de chá. Era só questão de persistir. Quantas conquistas se lhe tinham deparado mais difíceis e tinham acabado em glória!
Anoitecia. Por hoje a coisa não dava mais nada. No domingo viria passar o dia àquela praia e devia voltar a vê-la. Fazia-se tarde e tinha de regressar ao Porto. Quando chegou à estação e ia comprar o bilhete verificou com espanto que não tinha a carteira. Buscou em todas as algibeiras mas não a encontrava. (Nesta altura o leitor está a pensar que teriam roubado a carteira ao nosso herói e que a ladra seria, nada mais, nada menos, do que a beldade perseguida. Num impulso precipitado o Alípio também pensou isso. Mas não, o desfecho da nossa história é outro mais original como vão ver de seguida).
Então o Alípio lembrou-se perfeitamente que guardara a carteira na gaveta da secretária e quando saiu do escritório esquecera-se de a trazer. Se, por um lado, ficou descansado, por outro sobreveio-lhe nova preocupação. Tinha comprado um bilhete no Porto com uns trocos que lhe restavam no bolso, mas agora estava sem dinheiro para o regresso. Não conhecia ali ninguém... De súbito, recordou-se de um velho companheiro de Coimbra, médico, que se fixara em Miramar, o Freitas! Pensava que ainda havia de lá viver e seria a sua salvação naquela ligeira dificuldade. Dirigiu-se a um pequeno Café, perto da estação, e perguntou onde morava o Dr. Freitas. Solicitamente um empregado deu-lhe a preciosa informação: Na Vivenda Amélia, na Rua das Acácias - duas ruas logo adiante. O Alípio meteu-se a caminho e cedo deu com a rua e com a moradia. Mas, oh Céus! Podia lá ser! Era a moradia da perseguida! Lá estava numa artística placa de azulejos – “Vivenda Amélia”, e ele que momentos antes nem tinha reparado no nome: Então a sua conquista era a mulher do Freitas! E chamava-se Amélia! Gostava do nome - fazia-lhe lembrar mel e camélia, doçura e flor, ao mesmo tempo. Que desgraçada coincidência. Ia a retirar-se, sem saber que fazer, mas nisto abriu-se o portão da vivenda e surgiu o Freitas que saía de casa. O Alípio não pôde evitá-lo.
- Tu, por aqui!? perguntou o Freitas espantado.
E as perguntas sucederam-se: Que fazia por ali? Há quanto tempo se não viam? O Alípio balbuciava umas explicações: tinha vindo à tarde com um cliente e dera uma volta pela vila, a observar as vivendas. Havia lindas casas, na verdade, e a dele era de muito bom gosto. E para obter uma confirmação:
- Casaste, não é verdade?...
O Freitas respondeu afirmativamente... Agora já não restava qualquer dúvida.
O antigo colega de Coimbra mostrava-se satisfeito com o encontro e queria acamaradar:
- Olha, vou num instante ao correio expedir umas coisas, vem também e depois jantas comigo! Quero apresentar-te a minha mulher e mostrar-te a casa! O Alípio por mais que se esforçasse para escapar, não conseguiu furtar-se ao convite. E foi um mau bocado aquele em que o Freitas lhe apresentou a mulher. O Alípio beijou tímida e respeitosamente as pontas dos dedos da senhora e tinha dado toda a sua fortuna naquele momento para se poder sumir pelo chão abaixo!
Que figura ridícula estava a fazer! Mas a mulher do Freitas era uma autêntica senhora, como tinha demonstrado durante o terrível assédio que o Alípio lhe fizera, e não deixou transparecer a mínima admiração pelo que acontecia. Teria sido uma noite adorável se não fossem os antecedentes. O Freitas continuava a desfazer-se em amabilidades e o Alípio ansiava por se raspar. Perto da meia noite perguntou pelo horário dos comboios. Eram horas de se retirar. Não tinha trazido o carro. E justificava-se: Tinha vindo com um cliente de Espinho ver uma propriedade perto da praia (e improvisava uma mentira à custa de um letreiro que dizia “Vende-se” em que tinha reparado ao chegar a Miramar). Depois o cliente seguira para Espinho e ele ficara um bocado a ver a terra. O Freitas oferecia-se para o levar ao Porto, mas ele não podia aceitar. Era tarde e a viagem de ida e volta era demorada, não valia a pena. O Freitas insistia: Ao menos, levo-te num instante à estação. Foi um martírio para o dissuadir da idéia, se bem que o Alípio, sem dinheiro e sem coragem para explicar ao amigo a sua situação, não sabia como havia de chegar naquela noite ao Porto.
Por fim, lá conseguiu partir sozinho, com nova despedida cerimoniosa da senhora. O Freitas garantia-lhe que o comboio que estava a chegar era rápido e que daí a vinte minutos estava no Porto. O Alípio dirigiu-se para a estação, por se dirigir, pois sem dinheiro para o bilhete não podia ir no comboio. Viu-o de facto chegar e partir sem demora, à tabela, para maior raiva, assobiando estridentemente na negrura da noite.
Tinha passado um resto de dia arrasante. Todo ele era nervos. Que grande peça o acaso lhe pregara... Sentia-se sem sono, a apetecer-lhe tomar ar fresco. A noite estava boa, precisava de cansar-se, moer-se, castigar o corpo, penitenciar-se da figura ridícula que tinha feito naquele dia e tirar a melhor moral possível daquela história... Numa resolução tomou a estrada e heroicamente encaminhou-se para o Porto, a pé!
Pelas cinco horas da manhã chegou a casa exausto, depois de palmilhar durante mais de quatro horas quase quinze quilómetros. Com o fato em desalinho, os sapatos cambados, os pés a doerem-lhe horrivelmente, sentia-se bem castigado pela sua insensatez e deixou-se cair pesadamente sobre o leito, adormecendo profundamente, disposto a não meter-se mais em aventuras daquele género...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Na sua elegante moradia à Foz do Douro, o Alípio recebia agora com todas as honras o seu amigo Freitas e a encantadora esposa.
Tinha casado e retribuía ao simpático casal o jantar que lhe haviam oferecido algum tempo antes. Estava radiante com a sua nova situação e verdadeiramente apaixonado pela mulher, não menos encantadora que a do amigo. Quando as visitas se despediram, o Alípio abraçando o casal amigo agradecia-lhes efusivamente, do fundo do coração, a grande lição que lhe tinham dado - a lição da verdadeira felicidade conjugal, da harmonia de um lar, da realização dos mais puros sentimentos de amor... acrescentava verdadeiramente comovido.
Ao sair de casa, o Freitas, sensibilizado pelas palavras do amigo, segredava à esposa, encolhendo os ombros:
- Sempre exagerado este rapaz! Sempre romântico e sonhador... Que lição é que nós lhe poderíamos ter dado!?...
Mas a mulher, a encantadora D. Amélia, na sua dignidade de grande Senhora, não respondeu, embora soubesse qual a verdadeira lição que o Alípio tinha levado...
Cícero Galvão
Dezembro de 1961
Sem comentários:
Enviar um comentário