Os contos e crónicas recolhidos neste blog foram todos publicados no jornal “Re-nhau-nhau”, trimensário humorístico do Funchal, nos números do seu aniversário, coincidente com a época do Natal. Recolheram-se 36 contos e crónicas publicados no jornal nas edições dos meses de Dezembro dos anos de 1946 a 1977.

Partida para o Funchal em 1946

O BUROCRATA

Débil, enfezado e olheirento, o Tarquínio, desde muito novo, foi sempre um rapaz sossegado, cumpridor e excessivamente metódico e arrumado.

Em criança era apontado aos meninos endiabrados e irrequietos das relações da sua família, como exemplo a seguir. Os seus fatos, os brinquedos e os seus livros e cadernos estavam sempre irrepreensivelmente conservados e limpos.

Quando o Tarquínio entrou no liceu, rapidamente se distinguiu dos colegas, pela atenção que prestava às lições dos mestres, a assiduidade, e pontualidade e o inteiro desprezo pelas brincadeiras dos outros rapazes.

As suas aspirações também eram moderadas.

Ao passo que os rapazes da sua idade aspiravam ser, quando homens, militares, marinheiros, engenheiros e médicos, o Tarquínio sentia uma estranha vocação – ser funcionário público como o papá. Trabalhar sossegado no rame-rame metódico do estudo de processos numa Secretaria, era o seu ideal de vida.

E o Destino satisfez-lhe essa ambição. Não podendo prosseguir os estudos, a conselho dos médicos, o Tarquínio, já homenzinho, ingressou na secretaria Geral da Fazenda e do Fomento e dois anos depois, com o seu futuro assegurado, casou. A sua actuação como funcionário zeloso foi logo alvo da atenção dos superiores. E a sua carreira foi rápida. Sucessivamente galgou a escala hierárquica, ultrapassando os colegas de trabalho, pela dedicação e estudo que dedicava aos serviços.

Metódico como era, regulava o aparecimento dos frutos do seu matrimónio com as suas possibilidades financeiras – e cada promoção no seu emprego era celebrada com o aparecimento de um rebento.

Os seus três filhos eram designados pelos colegas de Tarquínio pelo 3º, pelo 2º e pelo 1º oficial, conforme as épocas do nascimento correspondiam às categorias do papá.

A sua vida particular, desde o casamento, passou também a ser regulada com a mesma disciplina burocrática que o seu trabalho impunha.

Assim, o Tarquínio dividia todos os meses o seu vencimento, honestamente ganho, em trigésimos, e cada parte tinha de ser gasta dia a dia, com o melhor critério administrativo.

Viveu anos assim e parecia que era feliz com a vida pautada entre a casa e a repartição, sem relações e sem dívidas. A mulher adaptara-se àquele estilo de vida e era uma leal colaboradora – mais, era uma fiel secretária e tesoureira dos bens do casal.

Mas um dia o Tarquínio foi mais uma vez premiado. Atingira, enfim, a meta da sua carreira burocrática – por distinção fora nomeado chefe da Repartição. Já não tinha idade para premiar o acontecimento com mais um rebento na sua árvore genealógica e o desafogo financeiro que advinha do novo vencimento iria proporcionar-lhe uma vida mais larga. Assim o pensava a sua fiel companheira. Pensava mas enganava-se redondamente.

O Tarquínio continuava a administrar avaramente a sua casa, cada vez apertando mais as despesas domésticas. A mulher conhecia as disponibilidades do marido e um dia atreveu-se a pedir-lhe um casaco de peles. Era a única ambição de toda a sua vida de casada. O marido franziu o sobrolho com aquela extravagância mas, no fundo, concordou com o desejo tão feminino da mulher e mandou saber o preço de três casas fornecedoras do artigo para ser comprado naquela que fizesse mais barato.

Mas as pequenas exigências da mulher começaram a surgir – os pedidos para compra de uns sapatos com 7 centímetros, 2 pares de meias de vidro, um vestido de noite, um chapéu modelo, etc., foram objecto de cuidadoso exame do Tarquínio que, embora contrariado, foi sempre deferindo.

Mas uma resolução inabalável foi tomada no foro íntimo de Tarquínio: não autorizar mais despesas sumptuárias da mulher. E ao seu primeiro pedido depois desta resolução – um casaco de bombazina, como era então moda – o Tarquínio respondeu secamente, - “Faça-me a proposta por escrito”. E por escrito o Tarquínio respondeu, desancando as extravagâncias da mulher que há tempos a esta parte, vinha a tornar-se impossível com tantas exigências, aconselhando-a a ser sóbria e comedida nos seus gastos particulares como tinha sido até ali.

As relações matrimoniais sofriam horrivelmente.A atmosfera do lar tornou-se carregada. A mulher já não podia fazer qualquer pedido verbal. A aquisição do artigo mais simples, quer fosse para seu uso pessoal, ou dos filhos ou ainda para fins domésticos tinha de ser sempre feita por escrito. E o Tarquínio a indeferir, indeferir, indeferir.

A vida tornou-se insuportável para a pobre senhora. Alguma autorização que lá apanhava de vez em quando, para adquirir qualquer coisa de inadiável obtenção, estava cheia de peias burocráticas, por despacho do marido:

Consultas a várias casas fornecedoras, anúncios nos jornais, exigências de garantias, etc., etc... E a senhora não podia com tais trabalhos.

Esta maneira de viver levou-a a praticar um acto de desespero – abandonar o lar conjugal e refugiar-se em casa da mamã. Mas antes de praticar tal acto deixou uma carta ao marido – a clássica carta destes momentos graves – em que, numa boa dúzia de laudas de papel, se queixava amargamente da vida miserável que o marido sempre lhe dera, dos sacrifícios feitos e da falta de gratidão e de generosidade dele, num momento em que não havia preocupações de ordem financeira, e em que ele podia perfeitamente satisfazer pequenos desejos, durante tantos anos recalcados.

O Tarquínio leu tranquilamente a carta de ponta a ponta. E como o casamento nunca tinha sido para ele mais do que um contrato em que, nos termos do Código Civil, deviam verificar-se as condições essenciais da capacidade dos contraentes, do mútuo consenso e do objecto possível, friamente despachou à margem da carta: “Rescinda-se o contrato” e devolveu o documento à mulher.

O processo do divórcio correu os seus termos e foi rápido.

O Tarquínio, vítima do seu método e arrumação, encontra-se hoje sozinho e sente falta do calor, da ternura e do desalinho duma mulher no seu lar. E em cumprimento da deliberação tomada, mais uma vez por unanimidade, no seu foro íntimo, resolveu de novo casar. Mas dentro dos rígidos princípios nos quais toda a sua vida decorre, vai abrir concurso público para a admissão de uma esposa e as condições são as seguintes: Não ter mais de 40 anos de idade nem menos de 25; ter robustez física e não sofrer de doença contagiosa, especialmente tuberculose evolutiva; ter sido vacinada há menos de 5 anos, devidamente comprovado por atestado de vacina, e possuir algumas habilitações literárias, científicas e de arranjos domésticos.

As leitoras que estejam interessadas em ocupar o lugar podem enviar os seus requerimentos, com assinatura devidamente reconhecida, juntando todos os documentos necessários.

Mas desconfiamos bem que o Tarquínio venha a ter uma tremenda desilusão porque o concurso, vai com certeza, ficar deserto.


Cícero Galvão
Dezembro de 1947

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