Querido Bichano: Não quero de maneira nenhuma faltar à tradição, de mais de uma dezena de anos, de nesta época, duplamente festiva para ti, mandar-te a modesta lembrança de umas palavras que, regra geral, pretendem ser alegres, para as publicares no teu número extraordinário de Natal que é também comemorativo do teu aniversário natalício.
Este ano, desculpa, as palavras que te mando não são do bom humor propriamente dito que te caracterizam. A veia humorística deve ter secado e, neste último mês do ano, neste mês do Natal, só me ocorrem ideias sérias, o que não quer dizer necessariamente que sejam tristes.
E como é certo que de vez em quando abres um parêntesis na tua boa disposição – como tu próprio costumas dizer – e apresentas uma nota séria, atrevo-me a pedir-te também que faças um pequeno intervalo na tua habitual alegria e dês generosamente guarida às minhas palavras deste ano que vão pretender contar a traços largos uma pequenina e verdadeira história de Natal que por ser eminentemente cristã será certamente uma história cheia de alegria.
Nado e criado em Lisboa, não sei ao certo por que razão – talvez uma razão ancestral – tive sempre a paixão do campo. E nos dias longos do Natal, que infelizmente tão depressa passam, gosto de refugiar-me na província, ao calor da lareira, rodeado da família e de amigos.
Nunca quis ser como aquele menino da cidade a quem um dia perguntaram onde crescia a erva. E ele respondeu muito ancho: “A erva cresce nos telhados”. Coitado do garoto, certamente pálido e enfezado, da sua mansarda urbana só via a erva nos telhados vizinhos e desconhecia, tristemente, a erva livre e vigorosa dos campos.
Pois eu, felizmente, desde muito novo que sei que o lugar próprio para crescer a erva é nos campos sem fim, fora das cidades, e que só acidentalmente ela deve crescer nos telhados.
E, graças a Deus, também sei que é no campo onde se passam as melhores consoadas.
Há já alguns anos – ainda havia guerra – fui passar as férias do Natal à província e, nestes tempos conturbados, melhor sabia aquele Natal provinciano, tão português, tão cheio de Paz.
Naqueles dias, quase sempre frios e luminosos, dava longos passeios pelo campo e à tardinha visitava a ampla cozinha, onde se preparava toda a espécie de guloseimas próprias da quadra – filhós, coscorões, sonhos, rabanadas e uns fritos deliciosos, recheados de grão, a que chamavam azevias (mas que nada tinham que ver com o peixe do mesmo nome), de que eu petiscava gulosamente, pecadoramente, às escondidas, antes da ceia que só se servia depois da Missa do Galo.
Uma tarde fui dar um lindo passeio até um lugar muito pitoresco, situado num plaino, chamado “Senhora do Tojo”, onde havia um frondoso freixo e uma capelinha secular, construída em tempos imemoriais em honra de Nossa Senhora. Contava uma lenda muito antiga que a Mãe de Jesus havia ali aparecido, entre os tojos, também a uns pastorinhos. E logo o povo construiu a capelinha, toda branca, simples e graciosa, rodeada de arcadas em ogiva que davam uma fresca sombra nos dias quentes de verão. Era a capelinha de Nossa senhora do Tojo.
Costumava ir ler para aquele sítio, sentado numa pedra, debaixo de um dos arcos, donde se avistava a silhueta do velho e frondoso freixo.
O lugar era de pastorícia e com frequência pequenos pastores passavam lentamente, ao cair da tarde, conduzindo os seus rebanhos aos redis.
Por mais de uma vez tinha reparado no perfil sereno de um pastorzito de 10 ou 11 anos que, ao baterem as Avé-Marias no campanário da velha igreja da aldeia distante, se descobria respeitosamente, ajoelhava piedosamente e rezava em profunda meditação, ao lado do seu numeroso rebanho que milagrosamente se aquietava enquanto o seu guia estava postado em oração.
Numa tarde, depois da concentrada oração do pequeno pastor, interpelei-o e perguntei-lhe quem era e por que rezava com tanta devoção. O pequeno, de olhar inteligente, disse-me, hesitante, que o pai trabalhava no campo e, com muito acanhamento, acrescentou que rezava pela saúde dos pais, dos irmãos, pelo bem estar de todos... Proferia as palavras lentamente, como que envergonhado, receoso de que não compreendesse a sua grande Fé. Mas animei-o com palavras compreensivas e o pastorzito, de rosto iluminado por dois grandes olhos muito brilhantes, disse-me com entusiasmo: - Rezo com grande fervor o Padre Nosso, o Credo, a Avé-Maria e a Salvé Rainha e depois peço a Deus, com toda a força da minha alma, que me perdoe todos os pecados que devem ser muitos e que me torne cada vez mais perfeito, e agradeço-lhe todos os benefícios que tenho recebido pelos quais me confesso eternamente grato. Peço também a Deus que os meus pais, os meus irmãos, os meus amigos sejam sempre bons, assim como todos os homens, e rogo ainda a Deus que a guerra acabe depressa e que todos os países passem a ter homens bons a governá-los e que os governem tão bem que os povos vizinhos sejam sempre amigos não podendo haver, assim, mais guerras no Mundo.
O petizito calou-se e olhou-me timidamente com os olhos húmidos de comoção.
Afaguei-lhe a cabecita aloirada, cheia de caracóis, parecida com a de outro pastor que um dia Murillo pintou maravilhosamente, e só pude dizer-lhe que era linda a sua oração, que Deus a ouviria com certeza e com a ajuda dos homens haviam de ser vencidas as forças do Mal e em breve teríamos a Paz tão ambicionada.
Despediu-se o garoto e encaminhou-se para a aldeia, conduzindo serenamente o seu rebanho.
Instintivamente acudiu-me ao pensamento a frase evangélica: “Glória a Deus nas Alturas e Paz na Terra aos Homens de Boa vontade”.
Estava admirado da ponderação que revelavam as palavras daquela criança, mas lembrei-me que dois mil anos antes outra criança maravilhara ainda mais os Homens pela sua grande sabedoria e não me admirei mais.
Apressei-me então para casa, para as costumadas guloseimas do Natal que me esperavam e me atraíam e pelo caminho rememorei a oração do pequeno pastor – e achei-a tão generosa, tão bela, tão sublime que fiz dela a oração de todos os dias.
Cícero Galvão
Dezembro de 1959
Este ano, desculpa, as palavras que te mando não são do bom humor propriamente dito que te caracterizam. A veia humorística deve ter secado e, neste último mês do ano, neste mês do Natal, só me ocorrem ideias sérias, o que não quer dizer necessariamente que sejam tristes.
E como é certo que de vez em quando abres um parêntesis na tua boa disposição – como tu próprio costumas dizer – e apresentas uma nota séria, atrevo-me a pedir-te também que faças um pequeno intervalo na tua habitual alegria e dês generosamente guarida às minhas palavras deste ano que vão pretender contar a traços largos uma pequenina e verdadeira história de Natal que por ser eminentemente cristã será certamente uma história cheia de alegria.
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Nado e criado em Lisboa, não sei ao certo por que razão – talvez uma razão ancestral – tive sempre a paixão do campo. E nos dias longos do Natal, que infelizmente tão depressa passam, gosto de refugiar-me na província, ao calor da lareira, rodeado da família e de amigos.
Nunca quis ser como aquele menino da cidade a quem um dia perguntaram onde crescia a erva. E ele respondeu muito ancho: “A erva cresce nos telhados”. Coitado do garoto, certamente pálido e enfezado, da sua mansarda urbana só via a erva nos telhados vizinhos e desconhecia, tristemente, a erva livre e vigorosa dos campos.
Pois eu, felizmente, desde muito novo que sei que o lugar próprio para crescer a erva é nos campos sem fim, fora das cidades, e que só acidentalmente ela deve crescer nos telhados.
E, graças a Deus, também sei que é no campo onde se passam as melhores consoadas.
Há já alguns anos – ainda havia guerra – fui passar as férias do Natal à província e, nestes tempos conturbados, melhor sabia aquele Natal provinciano, tão português, tão cheio de Paz.
Naqueles dias, quase sempre frios e luminosos, dava longos passeios pelo campo e à tardinha visitava a ampla cozinha, onde se preparava toda a espécie de guloseimas próprias da quadra – filhós, coscorões, sonhos, rabanadas e uns fritos deliciosos, recheados de grão, a que chamavam azevias (mas que nada tinham que ver com o peixe do mesmo nome), de que eu petiscava gulosamente, pecadoramente, às escondidas, antes da ceia que só se servia depois da Missa do Galo.
Uma tarde fui dar um lindo passeio até um lugar muito pitoresco, situado num plaino, chamado “Senhora do Tojo”, onde havia um frondoso freixo e uma capelinha secular, construída em tempos imemoriais em honra de Nossa Senhora. Contava uma lenda muito antiga que a Mãe de Jesus havia ali aparecido, entre os tojos, também a uns pastorinhos. E logo o povo construiu a capelinha, toda branca, simples e graciosa, rodeada de arcadas em ogiva que davam uma fresca sombra nos dias quentes de verão. Era a capelinha de Nossa senhora do Tojo.
Costumava ir ler para aquele sítio, sentado numa pedra, debaixo de um dos arcos, donde se avistava a silhueta do velho e frondoso freixo.
O lugar era de pastorícia e com frequência pequenos pastores passavam lentamente, ao cair da tarde, conduzindo os seus rebanhos aos redis.
Por mais de uma vez tinha reparado no perfil sereno de um pastorzito de 10 ou 11 anos que, ao baterem as Avé-Marias no campanário da velha igreja da aldeia distante, se descobria respeitosamente, ajoelhava piedosamente e rezava em profunda meditação, ao lado do seu numeroso rebanho que milagrosamente se aquietava enquanto o seu guia estava postado em oração.
Numa tarde, depois da concentrada oração do pequeno pastor, interpelei-o e perguntei-lhe quem era e por que rezava com tanta devoção. O pequeno, de olhar inteligente, disse-me, hesitante, que o pai trabalhava no campo e, com muito acanhamento, acrescentou que rezava pela saúde dos pais, dos irmãos, pelo bem estar de todos... Proferia as palavras lentamente, como que envergonhado, receoso de que não compreendesse a sua grande Fé. Mas animei-o com palavras compreensivas e o pastorzito, de rosto iluminado por dois grandes olhos muito brilhantes, disse-me com entusiasmo: - Rezo com grande fervor o Padre Nosso, o Credo, a Avé-Maria e a Salvé Rainha e depois peço a Deus, com toda a força da minha alma, que me perdoe todos os pecados que devem ser muitos e que me torne cada vez mais perfeito, e agradeço-lhe todos os benefícios que tenho recebido pelos quais me confesso eternamente grato. Peço também a Deus que os meus pais, os meus irmãos, os meus amigos sejam sempre bons, assim como todos os homens, e rogo ainda a Deus que a guerra acabe depressa e que todos os países passem a ter homens bons a governá-los e que os governem tão bem que os povos vizinhos sejam sempre amigos não podendo haver, assim, mais guerras no Mundo.
O petizito calou-se e olhou-me timidamente com os olhos húmidos de comoção.
Afaguei-lhe a cabecita aloirada, cheia de caracóis, parecida com a de outro pastor que um dia Murillo pintou maravilhosamente, e só pude dizer-lhe que era linda a sua oração, que Deus a ouviria com certeza e com a ajuda dos homens haviam de ser vencidas as forças do Mal e em breve teríamos a Paz tão ambicionada.
Despediu-se o garoto e encaminhou-se para a aldeia, conduzindo serenamente o seu rebanho.
Instintivamente acudiu-me ao pensamento a frase evangélica: “Glória a Deus nas Alturas e Paz na Terra aos Homens de Boa vontade”.
Estava admirado da ponderação que revelavam as palavras daquela criança, mas lembrei-me que dois mil anos antes outra criança maravilhara ainda mais os Homens pela sua grande sabedoria e não me admirei mais.
Apressei-me então para casa, para as costumadas guloseimas do Natal que me esperavam e me atraíam e pelo caminho rememorei a oração do pequeno pastor – e achei-a tão generosa, tão bela, tão sublime que fiz dela a oração de todos os dias.
Cícero Galvão
Dezembro de 1959
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