Um profundo pensador disse uma vez que as grandes cidades eram como glândulas descomunais que, além de outros produtos de secreção externa, segregavam principalmente a miséria. Ela é inevitável nas grandes urbes, chamem-se elas Nova-York, Londres, Paris, Roma, Madrid ou mesmo Lisboa.
Na verdade, atraídos como insectos alados pelas “luzes da cidade”, diariamente formam-se enormes correntes de uma espécie de emigrantes que fogem à terra, à terra propriamente dita, talvez movidos pelo egoísmo de não quererem sacrificar-se numa vida de baixo nível, mas quase sempre digna e sã, talvez na ânsia de melhorarem de vida na busca de trabalho menos duro nas grandes metrópoles, com os olhos postos no exemplo dum vizinho que, entre muitos milhares, conseguiu enriquecer, o que nem sempre quer dizer triunfar.
Se subíssemos muito alto (e não era preciso a altura de um satélite artificial) tenho a impressão que avistaríamos esse imenso formigueiro, essa enorme corrente de massas humanas, voltando as costas à terra, a caminhar para as cidades, carregando penosamente as suas mochilas, qual exército vencido em debandada.
E assim crescem as cidades e por maiores que estas sejam nunca têm casas que cheguem para albergar tantas almas. E a par das novas construções que vão ocupando as terras da periferia (a cidade a invadir o campo), surgem os bairros “champignons” de barracas de madeira, de lata, de tijolos usados, onde verdadeiramente se segrega a miséria.
As quintas, quintinhas, fazendas, hortas e pomares são rapidamente urbanizados e nas terras que davam frutas, legumes, hortaliças, surgem casas, muitas casas, de muitos andares que se alugam rapidamente por rendas astronómicas. Para os orçamentos domésticos suportarem essas rendas elevadíssimas praticam-se os maiores malabarismos: juntam-se famílias, para dividirem entre si o encargo da renda, dá-se hospedagem de toda sorte a conhecidos e desconhecidos, dorme-se na cozinha, na casa de banho, na casa de jantar, nos corredores e na maior parte das vezes verifica-se a promiscuidade. E por mais esforços que se despendam por entidades públicas e privadas, a luta é tremenda, a corrida é vertiginosa – mais casas, mais gente, mais casas, mais gente - numa situação de albergue sempre deficitária.
Um cidadão (quero dizer aqui o natural da cidade) que queira constituir família e arranjar sobriamente o seu lar, com dignidade e higiene, encontra tremendas dificuldades.
Mas os leitores desculpem este já longo arrazoado sobre problema tão importante e melindroso, tão fora da índole de “Re-nhau-nhau”. Trata-se do intróito a uma história que pretende ser risonha sobre tão sério assunto. E perdoe igualmente o leitor, possivelmente afectado nessa matéria, a irreverência, mas acode-me um brocardo latino que ouvi muitas vezes ao cauteleiro fardado – ridendo castigat mores – e vejamos o que aconteceu a quatro jovens casadoiros, nados e criados na cidade, que quiseram reagir energicamente ao magno problema da habitação.
* * *
A uma mesa de tampo de mármore polido no café Martinho da arcada, ali a um canto do Terreiro do Paço, encontravam-se nos fins da tarde quatro jovens empregados, no começo da vida e das desilusões, discorrendo sobre a maneira de instalar os seus futuros lares o mais economicamente possível, pois todos pensavam em casar e os seus modestos ordenados de princípio de vida não comportavam as rendas elevadíssimas que pediam por aí. Eram eles, o Álvares, o Fernandes, o Meneses e o Pacheco, indicados por ordem alfabética e pela de entrada em cena, como os artistas nos programas dos teatros, para não melindrar nenhum.
Encontravam-se ali reunidos para apreciar uma ideia do Álvares que, no dizer dele, resolvia de uma maneira eficiente e absoluta a sua grave preocupação de arranjar casa. Já que se verificava o êxodo das gentes do campo, das províncias, para as cidades, porque não iriam eles para o campo, num regresso à terra que se impunha para dar o exemplo numa salutar reacção.
Evidentemente que não poderiam deixar os seus empregos, mas aproveitando as facilidades de comunicação dos comboios eléctricos, agora não só na linha de Cascais, mas também na de Sintra, instalar-se-iam a vinte, a trinta quilómetros de Lisboa, em plena zona rural, dedicando-se nas horas vagas à lavoura, eles os citadinos, substituindo orgulhosamente os aldeãos que desertavam. Trabalhariam a terra e as suas mulheres auxiliá-los-iam na criação do gado e dos galináceos, no fabrico de manteiga e de queijo.
Haveria sempre frescas frutas e hortaliças que eles, com a sua vocação para a agricultura e o seu espírito aberto para os maiores progressos, haviam de tratar pelos métodos mais modernos e mais científicos.
O Álvares exortava os amigos àquele regresso à terra e já não se consideravam apenas os seus casos particulares. Havia que difundir a ideia, transformá-la em causa nacional, numa salutar reacção ao ambiente viciado das cidades, onde eles só permaneceriam as horas de trabalho obrigatório exigidas pelo horário de trabalho. E via já, aos milhares, os adeptos da sua ideia, terminado o trabalho quotidiano nos escritórios e nas oficinas, correrem à pressa para os comboios que rapidamente os levavam aos seus lares construídos em pleno campo, no meio de pequenas fazendas onde haviam de vicejar as alfaces, as nabiças, as cebolas, as batatas, as favas e os feijões, onde eles trabalhariam o resto do dia, a semear, a regar, a sachar, a mondar e a colher. A principal fonte de riqueza da humanidade – disso não tinha ele dúvidas – era a terra, e eles, modernos fisiocratas, fariam impor uma doutrina económica devidamente renovada.
Tornar-se-ia mesmo necessário criarem-se “Associações dos Amadores de Agricultura” (A.A.A. - como uma gargalhada viva lançada à cara dos cépticos), as quais defenderiam os seus interesses e haviam de expandir a ideia. Ele próprio já tinha começado a redigir os respectivos estatutos, e mostrava umas folhas de papel azul de vinte e cinco linhas, rabiscadas à pressa.
Para já, para a resolução dos seus casos concretos, o Álvares arranjara um hectare de terra, por baixo preço, no Algueirão, a vinte quilómetros de Lisboa, em plena charneca de Sintra. Mas eles desbravariam a terra, dividida em quatro lotes de 2.500 metros quadrados cada um, onde construiriam a casa, abririam um poço, plantariam uma vinha, árvores de fruto, etc., etc. É certo que a terra era rude e brava, só se viam pedras e tojo. Mas, se quisessem, já no próximo Domingo iriam munidos de picaretas arrancar todo aquele calhau e tornar aquela terra arável e fértil.
O plano do Álvares foi aprovado por unanimidade e todos se propuseram deitar mãos à obra. Juntaram todas as suas economias e compraram o terreno no Algueirão. O Fernandes tinha já há bastantes anos uma posição numa Cooperativa de Construção – a Cooperativa “Lar, doce lar” – e com ela fazia a casa no talhão que lhe competisse. Os outros contrairiam empréstimos particulares ou hipotecários com garantia no terreno e também construiriam as suas casas, modestas mas bem divididas e higiénicas. Livravam-se, assim, das rendas especulativas e já poderiam casar e fundar com todo o amor os seus lares.
Na reunião do dia seguinte, os projectos já vinham mais adiantados e todos traziam a sanção das respectivas noivas à ideia magnífica de irem viver para o campo e dedicarem-se – infelizmente só nas horas vagas – à agricultura. O Meneses que tinha um certo jeito para o desenho trazia já uns engraçados projectos de umas alegres casinhas, bem implantadas no terreno, com os indispensáveis anexos para arrecadações de alfaias agrícolas, vacaria, aviário, cocheira e a pocilga lá ao fundo, como mandavam as boas regras de higiene. O Fernandes já tinha requerido a construção à Cooperativa “Lar, doce lar” e esperava que dentro de pouco tempo a casa estaria pronta. Aquilo, segundo lhe dizia o empregado da secretaria, era um instante. Por seu lado, o Pacheco dava a boa nova que seu pai, que dispunha de algum dinheiro, entusiasmado com a ideia dos rapazes, pois também adorava a vida no campo, adiantava uma importância razoável, reembolsável a longo prazo e sem juros, para a realização das construções.
Em breve se realizava a escritura de compra do terreno e se iniciavam as obras, cumpridas as formalidades camarárias. Só o Fernandes esperava ansioso a aprovação do projecto pela Cooperativa “Lar, doce lar”. As obras seguiam em bom ritmo, com um entusiasmo transbordante do Álvares que até pediu as férias naquela altura para mais insistentemente fiscalizar as construções.
Já iam três moradias com o pau de fileira posto e o Fernandes ainda não tinha começado a sua, em virtude de sucessivas demoras e dificuldades levantadas pela Cooperativa. Eram anteprojectos, depois os projectos, caderno de encargos, orçamentos, pedidos de isenção de sisa, etc., etc., etc., um nunca acabar de formalidades que não permitiam o início da construção.
O Fernandes passava dias e dias a tratar dessa horrível papelada e se fosse invejoso, ficava cheio de inveja pelo andamento rápido em que se seguiam as obras dos outros.
Quando encontrava o Álvares, o Meneses ou o Fernandes que nas obras já mediam a passos as dimensões das novas divisões, estudavam a distribuição da instalação eléctrica e outros pormenores dos acabamentos das vivendas, ele até se sentia envergonhado porque acabava de receber a notificação com a exigência de uma formalidade burocrática – agora era uma nova avaliação do terreno feita em forma pela Repartição de Finanças, com a intervenção de louvados e tudo, sem a qual a Cooperativa não celebrava escritura. Ao Fernandes ia-lhe faltando a paciência e os amigos já brincavam com ele e quando se falava das exigências da Cooperativa esta era designada ironicamente pela mula da cooperativa....
Como o atraso na construção da moradia do Fernandes estava já a passar o que seria razoável e, principalmente, não permitia a execução do plano previamente estabelecido, houve que tomar uma resolução heróica pelo Conselho dos quatro. Evidentemente que o Fernandes não tinha culpas na demora da Cooperativa. Ele bem se esforçava para cumprir escrupulosamente todas as suas exigências burocráticas, mas satisfeita uma, só passado muito tempo recebia resposta, acompanhada da exigência de outra. A ideia de fazer a casa através da Cooperativa era boa – ninguém o negava – e como o Fernandes não precisava de adiantar dinheiro, pois a Cooperativa pagava tudo, até tinha posto as suas economias à disposição dos outros. Agora encontrava-se descalço. Havia que deitar-lhe a mão e o Conselho dos quatro deliberou que se vendesse a posição da Cooperativa e com esse dinheiro e o produto de uma hipoteca sobre os terrenos e as moradias quase construídas fazia-se a vivenda para o Fernandes. O pai do Pacheco, sabendo da contrariedade, prometeu mais uns dinheiros sem qualquer interesse.
As coisas passaram-se assim mesmo, metódicos e organizados como eram, e em breve fazia-se solenemente o lançamento da primeira pedra da casa para o Fernandes, com o empenho de todos por que a construção seguisse no ritmo mais acelerado possível.
Passados poucos meses, as moradias eram dadas como habitáveis e nos seus acabamentos, bem como no arranjo dos terrenos e na plantação das árvores, trabalharam activamente os próprios proprietários.
Fiéis ao acordo celebrado, os quatro amigos iam agora contrair matrimónio e com suas mulheres voltar à terra, àquela terra desbravada com o suor do seu rosto e os calos das suas delicadas mãos de que se sentiam tão orgulhosos.
Os casamentos realizaram-se em semanas seguidas, celebrando-se em primeiro lugar o do Álvares, o pioneiro da ideia nova, a cujo esforço, espírito de iniciativa e capacidade de organização, se ficava devendo a construção daquela aldeia de quatro fogos, de lareiras bem acesas e de chaminés fumegantes.
A pequena festa do casamento foi simples e cheia de ternura e o Álvares, contra todas as pragmáticas, no fim do copo de água, fez um discurso: a obra não devia ficar por ali. Milhares de jovens, como eles, debatiam-se naquele momento com o mesmo problema que eles corajosamente enfrentaram e resolveram. Tornava-se necessário, agora, fazer a propaganda, divulgar a fórmula que haviam descoberto e de que não faziam segredo e convidar a juventude a regressar à terra, não se devendo esquecer a criação, quanto antes da Associação dos Amadores de Agricultura , a A.A.A., e a alegre e optimista gargalhada que havia de redimir tantos jovens apreensivos. Numa tirada eloquente, que comoveu os convidados até às lágrimas, terminou assim: “Voltemos as costas à cidade impura e regressemos à terra generosa e troquemos o ar viciado dos Cafés pelo ar puro dos campos. Deixemos, por momentos a caneta de escriturários, empunhemos orgulhosamente a enxada de lavradores e fortifiquemos o espírito e o corpo a cavar, a cavar, a cavar...”
O orador foi muito cumprimentado e, dito isto, o Álvares safou-se com a noiva para a viagem de núpcias, o que já não era sem tempo.
Passou-se algum tempo e os quatro amigos devidamente instalados nas sua fazendas, dedicavam-se zelosamente à sua cultura. Vicejavam alegres jardins, cresciam verdejantes e frescas hortas, já floriam as pequenas árvores de fruto. O aldeamento ficava um tanto longe da estação de caminho de ferro. Fora sempre um inconveniente que o seu optimismo nunca salientou, mas o que era certo é que as casas ficavam longe do comboio “como burro” como dizia o Pacheco, o menos entusiasta pela vida rural, amigo de ficar na cama de manhã e a quem custava muito a caminhada diária de mais de meia hora, quase de madrugada, para apanhar o comboio que o havia de pôr no Rossio antes das nove da manhã. As faltas ao escritório sucediam-se por este motivo, e o chefe advertira-o já por várias vezes de que aquilo não podia continuar assim. Igualmente o Álvares faltava muito à Repartição, mas esse era por causa das suas ocupações de superintendente dos casais, em que se tinha arvorado, e do activo exercício das funções de Presidente da Associação de Amadores de Agricultura (A.A.A.) cujos estatutos já estavam superiormente aprovados.
Para obviar aos inconvenientes do afastamento das casas do comboio e do lugar, o que afectava grandemente não só os maridos como também as donas de casa, o Álvares teve a ideia de comprar uma charrette e um cavalinho manso que fazia por dia vários trajectos das casas para a estação e vice-versa. A compra do cavalo já há muito que estava prevista pela necessidade dos trabalhos agrícolas e para produzir matéria orgânica. Assim, juntava-se o útil ao agradável e aproveitava-se o cavalinho para o acesso à vila. No entanto, o animal andava agora numa roda viva, para cá e para lá, e a sua função de produtor estrume estava altamente prejudicada – ficava todo pelo caminho. Foi ainda o Álvares que salvou a situação – imaginou um engenhoso aparelho de alumínio fundido, com canalização e um depósito, que se instalava por debaixo da charrette, onde se recolhiam, sem qualquer perda, os dejectos do animal. O sistema deu tanto resultado que o Álvares tirou patente da invenção.
Entretanto o Meneses e a mulher é que não andavam muito satisfeitos. O Meneses sempre fora muito dado a cafés e gostava muito de uma estreiazinha no Parque Mayer ou de uma boa fita num cómodo e elegante cinema da capital, não lhe ficando atrás, neste gostos, a mulher. Frequentemente passavam longas temporadas em Lisboa, em casa da mamã, para se porem em dia com a civilização, como irreverentemente dizia a mulher do Meneses, com indignação mal contida do Álvares. E, se viviam no campo, as férias eram sempre gozadas na cidade. O Álvares bem se esforçava para fixar aquela gente à terra. As noites é que custavam mais a passar e o Álvares convidava-os para a sua casa, para jogarem a canasta, mas muitas vezes, subrepticiamente, raspavam-se para Lisboa. Num esforço de atracção, o Álvares comprou a prestações um aparelho de televisão.
Ao fim de dois anos de vida rústica, praticamente já nenhum trabalhava a terra. Pagavam boas jornas ao pessoal e compravam caro os adubos e as sementes. Cepticamente o Meneses, um dia, fez as contas e viu que as batatas, o feijão e as hortaliças, ficavam-lhe duas ou três vezes mais caras do que se fossem compradas no mercado.
Como era natural já haviam aparecido os primeiros rebentos dos casais. E o que o Álvares julgava que seria motivo “para fixação à terra”, só veio trazer mais oportunidades de fuga para a capital.
A propósito de tudo e de nada, à menor indisposição dos bebés, as jovens e inexperientes mamãs refugiavam-se em Lisboa, em casa dos pais, e demoravam a estadia o mais que lhes era possível, com a aquiescência e satisfação dos próprios maridos e a raiva do Álvares que cada dia se sentia mais abandonado na aldeia que com tanto carinho e tantas esperanças havia fundado.
Mas um dia veio a machadada final. Há tempos que se viam pelas imediações do povoado, com certa frequência, uns indivíduos estranhos, de botas grossas e polainas de cabedal, transportando complicados aparelhos e altas réguas graduadas com traços vermelhos que espetavam na terra. Faziam observações, tiravam medidas e tomavam apontamentos. Eram engenheiros e topógrafos que faziam estudos sobre o traçado da auto-estrada de Lisboa a Sintra.
E um dia, um dos improvisados agricultores recebeu a notificação sobre a expropriação dos seus terrenos. Estavam situados justamente no local que melhor convinha ao perfeito traçado da auto-estrada que, aliás, progredia a olhos vistos. Máquinas enormes, escavadoras, terraplanadoras, gigantescos “bull-dozers” levavam tudo à sua frente. Foram baldadas todas as diligências e empenhos para evitar as expropriações. Não era possível alterar o traçado da nova estrada. O Álvares estava desolado. Era o fim de toda a sua obra. Seriam capazes de recomeçar? Por ele, estava nessa disposição, mas desconfiava muito dos outros. Tinha quase a certeza de que se aproveitariam daquele “caso de força maior” para voltarem para Lisboa, para justificadamente voltarem as costas à terra e recomeçarem a vida dos “Cafés”, das “matinés” das seis horas, enfim, uma vida inútil e sem um fim superior.
E realmente assim sucedeu. O Fernandes, o Meneses, e o Pacheco, agarraram a ideia pelos cabelos e rapidamente aprontaram as coisas para voltarem para Lisboa, para casa dos respectivos pais. O Álvares, qual último abencerragem, manteve-se a pé firme até o fim, até a escavadora lhe derrubar a última árvore e a última telha. Mas não teve outro remédio senão o de fazer as malas e regressar à cidade. Não podia ir para casa dos pais ou dos sogros, pois não havia lá acomodações para si. A título provisório alugou umas águas furtadas perto do Castelo, acima do Miradouro de Santa Luzia, dominando Alfama, um pitoresco trecho de Lisboa antiga. Da sua trapeira, ao menos, gozava bom ar e um deslumbrante panorama. Em baixo, avistava o casario de Alfama; à direita, a quase milenária Sé; em frente, as águas prateadas do Tejo majestoso; ao longe os montes da outra banda; no alto de Almada, o pedestal altíssimo do monumento a Cristo Rei que havia de ficar maravilhoso quando lhe colocassem a estátua do Redentor.
O Álvares admirava aquilo tudo numa manhã luminosa. Não podia negar que tudo era belo e deslumbrante. Desceu até à Baixa. Lisboa nunca estivera tão linda como naquela manhã fria, mas radiante, de Fevereiro. As ruas estavam vistosamente engalanadas. Ao longo das ruas, vistosos mastros coloridos, decorados com o escudo nacional e as armas inglesas, estabeleciam um ambiente de festa que se comunicava à multidão. Das janelas pendiam ricas colchas e colgaduras e berrantes bandeiras portuguesas e inglesas. Lisboa estava realmente linda – preparava-se naquela manhã para receber a Rainha de Inglaterra. Instintivamente o Álvares dirigiu-se para o Terreiro do Paço que ostentava uma sóbria decoração do mais alto gosto. O Álvares admirava tudo com respeito e foi distraídamente que entrou no Martinho da Arcada.
Aí encontrou os seus companheiros de aventura – o Fernandes, o Mendes e o Pacheco – que aguardavam a hora do desembarque da Rainha, sentados, como antigamente, a uma mesa de tampo de mármore polido com os cafés à frente e as “moscas” do costume. Os quatro ficaram calados e pensativos. O Meneses tinha uns convites para ver o desembarque das janelas do seu Ministério, e lá foram os quatro ver a chegada do iate real.
E quando o bergantim dourado, a ramadas fortes e ritmadas se aproximava do Cais das Colunas, encimado por um maravilhoso pavilhão de cristal, o Álvares passou uma vista de olhos por toda aquela praça magnífica, o belo Terreiro do Paço, admirando os lindos torreões, o arco monumental, a artística estátua equestre, tudo naquele dia enriquecido pelas decorações em honra da Rainha. Com o seu feitio de entusiasmo, franco e expansivo, o Álvares não pôde conter e exclamou, sem se importar que os companheiros ouvissem: - Deixemo-nos de coisas, a cidade é sempre a cidade!...
Cícero Galvão
Dezembro de 1957
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