Lembro-me disto tudo e apetece-me escrever-te.
Da minha janela vi uma noite destas um gatarrão enorme a passear num telhado vizinho, com o focinho altivo, dorso arqueado e rabo eriçado, a desafiar este frio cortante dos princípios de Dezembro que este ano chegou tarde e lembrei-me de ti: lá tenho de escrever àquele malandro!
Não leves a mal esta expressão que ela não tem nenhum sentido pejorativo, pelo contrário, tem um sentido íntimo, de amizade, de muita admiração, quase ternura, como tu sabes como brilhante gato de letras que te prezas de ser. Acredita que me apetecia agora fazer-te uma longa festa pelo dorso, começando na cabeça até ao rabo que tu elevavas todo eriçado, para aproveitar a festinha até ao fim.
Mas deixemo-nos de preâmbulos e entremos no tema da conversa de hoje.
Este ano só me foi possível começar as férias muito tarde.
Mercê das circunstâncias só pude partir para férias em Setembro bem entrado, quase à beira do Outono. Ansiava por elas e como nunca mais vinham, meditei muito sobre o assunto.
Confesso que me sentia completamente esgotado depois de um ano de intenso trabalho e nunca como agora apreciei tanto o sagrado e humano direito ao gozo de um bom par de dias seguidos de descanso por todos aqueles que ganham o seu pão com o suor do seu rosto.
Já lá vai o tempo que qualquer empregado trabalhava do nascer ao pôr-do-sol e, se era empregado do comércio, a maior parte das vezes dormia em casa do patrão, quase sempre mesmo na loja, atrás do balcão sem horário de trabalho e sem qualquer direito a férias. Quando muito, num rasgo de grande generosidade, o patrão deixava ir o empregado à terra, uma vez por ano, aí durante uns oito dias, e era tão grande a generosidade que levava o resto do ano a deitar à cara do empregado, por dá cá aquela palha, a sua grande generosidade.
Recordo aqui aquele caso curioso de um petizito de quatro anos que chorava, chorava, desalmadamente e ninguém sabia porquê. Depois de muito instado pela mãe confessou que chorava porque os manos mais velhos, que já andavam na escola, estavam em férias e ele, coitadinho, nunca tinha direito a férias.
Efectivamente os tempos mudaram e hoje as férias constituem um indeclinável direito do trabalhador e não é aqui o lugar próprio para discutir sobre tão importante assunto económico-social ou sócio-económico como é agora mais moderno dizer.
Eis, pois, um ponto em que todos estão de acordo - o direito a férias seja qual for o seu credo ou a sua política, quer sejam católicos ou protestantes, budistas ou muçulmanos, democráticos ou socialistas...
Pois, caro Renhau-nhau, é também curioso observar como cada um utiliza as suas férias. Uns consomem-nas num sossego absoluto, no campo ou na praia, a recuperar energias despendidas, numa monotonia de vida, com os dias sempre iguais. Outros viajam no País, percorrem praias e campos, não estão sossegados em nenhum lado, mas descansam à sua maneira com o seu espírito irrequieto de salta-pocinhas...
As pessoas com esta mesma disposição, quando mais abonadas, não se contentam com o espaço nacional, saltam as fronteiras e lá os temos aí por essa Europa fora, de combóio, autocarro, de automóvel ou de avião, num despender de férias contra relógio, para chegarem a casa com alguns dias ainda de folga para gozar umas férias das férias...
Então o nosso feriante salta da Gran Via de Madrid para os Campos Elísios de Paris, daqui para o Hyde Park ou o Piccadilly Circus de Londres, depois para o Atomium de Bruxelas ou mais um salto para ver os hippies de Amsterdão. No regresso, se possível, atravessa a Alemanha, faz um cruzeiro romântico no Reno, veleja no lago de Genéve na Suíça e chega a Itália. Delicia-se uma tarde em Veneza, passa uma noite em Florença, um bocadinho em Siena e chega a Roma, à pressa para deitar uma moeda na Fontana di Trevi, para lá voltar, mas volta é directo a casa cansadíssimo mas viajadíssimo, para aproveitar um ou dois dias de sobra das férias para descansar e recomeçar novo ano de trabalho.
Pois, querido Re-nhau-nhau, por mim sou partidário das férias estáticas, das férias ramerrão, daquelas em que durante duas ou três semanas se faz sempre a mesma coisa, se descansa da mesma maneira, na praia ou no campo, num fresco e sombrio pinhal, na parte da manhã, se dorme a sesta depois do almoço, se vai ao café ao fim da tarde e se joga a canasta em família ou se vai ao cinema da terra depois do jantar.
Neste estilo de férias não se deve esquecer a nota cultural. Assim, é conveniente antes da partida comprar um bom livro, uma novidade literária, um vient de paraître para passear com ele debaixo do braço durante todas as férias, ficando em regra as suas páginas por abrir e por ler...
Passei-as no campo as primeiras férias que gozei depois de começar a trabalhar. Tão encantado fiquei naquela região tão farta de fruta e rodeada de saudáveis e aromáticos pinheiros e eucaliptos, com um maravilhoso rio onde se remava e nadava desportivamente, que não resisti em mandar um presente aos meus colegas de trabalho que tinham ficado de serviço a suar as estopinhas, a aguardar a sua vez de partir para férias.
Preparei cuidadosamente um caixote de fruta, recheado de lindas maçãs, aromáticas pêras e perfumados pêssegos, acamados em folhas de vide e de figueira, a que por graça juntei frescas folhas de eucalipto e agulhas de pinheiro.
Pois os meus colegas apreciaram e saborearam o presente e em retribuição mandaram-me com a legenda “Quem dá o que tem a mais não é obrigado” uma caixa de fósforos daquelas grandes de cozinha cheia de aparos e clips ferrugentos, pequenos restos de lápis gastos e pontas de cigarros ainda com cinzas... Não resisti e respondi-lhes que quando abri a caixinha e vi o seu conteúdo a ideia que me acudiu foi a de uma repartição dentro de uma caixa de fósforos...
* * *
Conta-se que o nobre inglês na sua juventude tinha sido um ágil cavaleiro, campeão de concursos hípicos e do jogo do pólo.
Quando passava as férias nos seus domínios, organizava todos os anos um grande festival hípico que abria com um galope desenfreado por quilómetros e quilómetros de corta mato e relvados, com obstáculos naturais de pequenos ribeiros sebes e valados.
O nosso lord ganhava todos os anos esse número de abertura, pois apenas a este concorria porque dada a sua extraordinária perícia da arte de bem cavalgar a toda a sela deixava as suas provas como oportunidades de vencer aos outros concorrentes, seus convidados.
Todos os anos o nobre inglês fazia com prazer no seu melhor cavalo aquela desfilada, mas como os anos fossem passando e pesando, por fim tomava apenas a iniciativa da organização dos festivais, quando chegava a férias, oferecia lindas e valiosas taças para os melhores classificados e abria o festival com uma galopada, em que percorria sozinho um corta mato com os tais obstáculos constituídos por sebes, valados e ribeiros. Era uma exibição perfeita, o nosso lord durante muitos anos manteve a forma e, embora sem ser em competição, naquela prova conseguia performances notáveis. Os anos parecia que não passavam por ele e já nos sessenta bem entrados, a caminho dos setenta, dava gosto vê-lo no seu traje impecável de cavaleiro a abrir o festival num belo cavalo e galopar com uma desenvoltura extraordinária.
O nosso nobre inglês gabava-se da sua agilidade e dizia que o seu método para manter a forma, era simples, pois consistia em treinos aturados dentro do princípio de que o que se pode fazer num dia pode fazer-se no dia seguinte e portanto o que se pode fazer num ano pode fazer-se no ano seguinte.
Contava ele até a história de uma frágil rapariga que era capaz de pegar ao colo um valente touro de mais de quinhentos quilos. E a coisa era fácil, segundo ele explicava. Quando o animal nasceu pesava apenas uma escassa vintena de quilos e mal se podia ter nas pernas. A filha do dono, a tal rapariga franzina, pegava no bezerro ao colo e tratava dele. Pegava no animal várias vezes ao dia e é evidente que se podia pegar nele de manhã, podia pegar-lhe também à tarde. E se podia pegar-lhe à tarde também podia pegar-lhe no dia seguinte e assim sucessivamente, de tal forma que o animal foi crescendo e aumentando de volume e de peso que a breve trecho já pesava umas boas centenas de quilos e a pequena habituada como estava a pegar-lhe todos os dias, erguia-o com toda a facilidade, como no dia em que tinha nascido...
Era tudo uma questão de hábito, concluía o lord...
Se non é vero, é bene trovato, pois a história é contada como a contava o nobre inglês, sem tirar nem por, quer dizer, é vendida pelo mesmo preço, pois não se acrescentou ao conto nenhum ponto... Entretanto o nosso lord continuava todos os anos a organizar o festival hípico quando ia para férias e a fazer a cavalgada de abertura, pois seguindo o exemplo da franzina rapariga estava sempre em forma.
Passaram mais anos, o fidalgo inglês reformara-se e fixara-se de vez nas suas terras numas férias permanentes. Dobrara há muito a casa dos setenta, caminhava a passos largos para os oitenta e lá continuava por alturas do Verão quando chegavam os seus convidados a fazer a sua prova individual de corta mato, admiração de quantos presenciavam a sua agilidade...
É evidente que começaram a aparecer ao velho lord os achaques próprios da idade, como a tradicional bronquite britânica que o não poupava todos os anos mal começava o Inverno e se arrastava pela Primavera adiante até entrar no Verão, de forma que, em certo ano na data da tradicional prova hípica, o nosso lord encontrava-se muito acanaviado. Já tinha feito os oitenta anos mas não desistia de fazer a sua correria a cavalo, o que alarmava a família. Tomaram-se providências. Ao longo do percurso, aqui e além, postavam-se os boy scouts da terra, de prevenção para acudir a qualquer acidente e junto dos obstáculos, as sebes, os ribeiros e os valados, estavam mesmo ambulâncias da Cruz Vermelha, com equipes médicas e de enfermagem devidamente apetrechados e até maqueiros...
À volta dos obstáculos tinha-se espalhado palha solta e grandes quantidades de folhas secas para afofar o terreno, de forma que em caso de queda, esta fosse o menos perigosa possível, embora todas estas medidas contrariassem a vontade do valente e tenaz cavaleiro.
E infelizmente aconteceu o que já se esperava. Nesse ano, o nosso lord ao saltar uma sebe não teve pernas para se aguentar no cavalo e deu um valente trambolhão, valendo-lhe para lhe salvar a vida as providências tomadas pela família. Foi parar ao hospital, muito combalido e muito fracturado e foi o fim de uma brilhante, corajosa e honrosa carreira...
* * *
Pois comigo ia acontecendo caso semelhante, querido Re-nhau-nhau.
Efectivamente, durante muitos anos seguidos passei as férias sempre na mesma praia.
Era uma praia aprazível, de mar com uma ondulação suave, onde se nadava à vontade se remava e velejava e se fazia ski aquático.
Ao largo, a uns bons trezentos metros da praia mas a um bom quilómetro do sítio onde tinha a minha barraca, os banheiros montavam todos os anos uma bela jangada, flutuando sobre bidons vazios e fortemente amarrada por fortes correntes e pesadas âncoras que pousavam no fundo do mar. A jangada tinha uma boa plataforma, onde se tomavam saudáveis banhos de sol, e um trampolim e uma torre de saltos que serviam de agradável recreio à rapaziada.
Todos os anos, passados os primeiros dias de férias em que tomava banho e fazia alguns exercícios de natação, “para aquecer”, cometia a proeza de ir a nadar até à jangada. Percorria a distância em braçadas bem ritmadas sem me agarrar a qualquer dos muitos barcos que se me deparavam ancorados pelo caminho.
Com respiração ofegante mas certa lá chegava à jangada onde tinha o merecido repouso de um riquíssimo banho de sol, tomado regaladamente de papo para o ar.
Depois voltava a nadar para terra, mas descansadamente, sem me esforçar.
Estava feita a minha proeza e só no ano seguinte repetia a graça. E ano após ano lá me metia pelo mar a dentro a caminho da jangada, já por capricho ou tradição. A família e os amigos ficavam na praia a seguir a minha travessia, rumo à jangada, e só descansavam quando me erguia para a plataforma e punha-me a tomar o banho de sol.
Confesso que ao fim de muitos anos era já sem entusiasmo nenhum que me metia ao mar mas não tinha coragem para desistir, tal como talvez tivesse acontecido ao velho lord inglês...
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E não calculam o alívio que senti e a alegria que tive quando um certo verão ao iniciar as férias verifiquei que os banheiros tinham deixado de montar a jangada, proibidos pelas autoridades marítimas para maior segurança da navegação.
Se isto não se verificasse, ainda era capaz de me acontecer o que aconteceu ao inglês - cair esfalfado e não ser capaz de alcançar a meta. O acaso obrigava-me a retirar a tempo. E é sempre uma grande virtude saber-se retirar a tempo...
Respirei fundo e comecei sossegadamente a gozar as minhas férias.
Cícero Galvão
Dezembro de 1970
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