Os contos e crónicas recolhidos neste blog foram todos publicados no jornal “Re-nhau-nhau”, trimensário humorístico do Funchal, nos números do seu aniversário, coincidente com a época do Natal. Recolheram-se 36 contos e crónicas publicados no jornal nas edições dos meses de Dezembro dos anos de 1946 a 1977.

Partida para o Funchal em 1946

O PRESTAMISTA

Aquela tabuleta suja e de letras desbotadas que os humildes habitantes daquele bairro pobre se habituaram a ver no primeiro andar de um prédio mal conservado, tinha pintadas apenas três palavras tão sumidas que já mal se podiam ler e que diziam simplesmente: “Empréstimos sobre penhores”.

Que dramas, que tragédias, que tristes histórias já se teriam passado por detrás daquela tabuleta que fora pendurada ali havia mais de vinte anos e nunca levara uma limpeza, um retoque ou uma reparação? Nunca ninguém o saberia ao certo, mas contavam-se histórias terríveis.

O dono da casa de penhores era um tal Silva e havia-se estabelecido ali há mais de duas décadas. O Silva era misantropo, misterioso, nunca se relacionara com ninguém do sítio, não se lhe conheciam amigos, raras vezes o viam na rua. Não tinha família, vivia sozinho. Vestia com grande modéstia, quase pobremente, e no seu negócio não tinha empregados.

Morava ali mesmo, naquele primeiro andar, onde tinha o estabelecimento de atender o público, com duas cabinas bastante discretas, com portas de vidro fosco que faziam tocar uma campainha estridente quando se abriam. Ali passava os dias de manhã à noite, sem férias, nem domingos, nem feriados, a atender a clientela, a limpar e a conservar os objectos penhorados, a fazer as suas contas e a dar balanço ao dinheiro que era um trabalho que nunca mais tinha fim.

A freguesia, no entanto, era pouca. O Silva era exigente na aceitação de objectos para ficarem de penhor, oferecia muito pouco, era azedo e rabugento e, assim, afugentava a clientela necessitada do bairro. Corria entre os moradores o boato que aquela casa de penhores era um disfarce. Um disfarce para um negócio mais rendoso, com menos trabalho e menos responsabilidades, mas também muito mais repelente. Dizia-se que o Silva emprestava dinheiro a juros, juros altos, especulativos, verdadeira agiotagem. Só assim se explicava tanta gente que lá entrava que não era do bairro e não levava nada para empenhar e era vista, por vezes, à saída a contar o dinheiro ou a arrumar na carteira os impressos das letras que tinha resgatado.

A gente pobre do bairro só lá ia em extrema necessidade ou num caso de urgência, pois preferia socorrer-se de casas mais distantes mas onde era tratada mais humanamente.

Contava-se a história triste de um violinista cego que adoecera e em último recurso a mulher fora-lhe empenhar o violino. Noutros lados não lhe tinham pegado, mas o Silva condescendeu e entregou uma miséria por ele. Passados tempos o cego roído de saudades do seu companheiro foi pedir ao penhorista se lhe emprestava o violino por um dia.

Que não – foi a resposta. Se quisesse tocar, tocasse ali mesmo e indicava-lhe um canto escuro do armazém. E aproveitou a conversa para lhe lembrar que os juros estavam em atraso. O cego prometeu um pagamento em breve, agradeceu a autorização e tocou toda a tarde. Na semana seguinte, o cego renovou o pedido e o Silva chamou-lhe novamente a atenção para os juros em atraso: - Por hoje, vá lá! Mas para a semana, sabe, só o deixo tocar se pagar os juros em falta. E toque baixinho, para não incomodar algum cliente, faça pouco barulho!

O pobre cego lá foi para o seu canto a afagar o seu velho amigo, ali prisioneiro de um miserável agiota. “E faça pouco barulho!” Barulho! A sua música era barulho! Só para aquele coração empedernido. E com a cara encostada à base do violino, o velho artista tocava baixinho uma doce melodia e dos seus olhos vazios escorriam duas grossas lágrimas.

Muito humilde e delicado o velho artista habituara-se a ir todas as semanas no mesmo dia visitar o seu bom companheiro. Mas numa semana o cego não apareceu. E o Silva notou a falta. Intrigado, mandou um gaiato a casa dele indagar porque não vinha. Compareceu o cego a desculpar-se. Não tinha vindo, porque não arranjara o dinheiro para os juros em atraso. Não lhe tinha sido possível. Então o Silva cometeu talvez a única generosidade da sua vida: - Veja lá se arranja isso e vá tocar um bocado se lhe agrada.

O pobre cego não sabia como agradecer e precipitadamente foi acariciar o seu velho violino, balbuciando a sua gratidão: “ Deus lhe pague Sr. Silva, Deus lhe pague.” E nesse dia o cego ao tocar chorou lágrimas de alegria.

A verdade é que o Silva habituara-se à música do cego e o seu coração de pedra cedera ao desejo de ouvir por uns momentos a música triste e melodiosa daquele velho violino.

E enquanto o cego tocava, alheado de tudo, embevecido de contentamento por ter junto do seu rosto o seu tão fiel companheiro, o Silva meneando a cabeça ao compasso da música, teve a franqueza de confessar em voz alta, mas só para si: “ E o que é verdade é que o diabo do velho não toca nada mal...”

O Silva estava estabelecido naqueles sítios havia mais de vinte anos. Ninguém sabia de onde tinha vindo . Não se lhe conheciam amigos, não se abriu com ninguém. Dizia-se que tinha uma grande fortuna e que emprestava dinheiro a juros. Era tudo.

Mas à guisa do moderno cinema italiano, ou ao alto estilo do genial Orson Welles, contemos a história retrospectivamente e vejamos o que se passou há vinte e tantos anos, numa Repartição Pública, em Lisboa, algures no Terreiro do Paço.

* * *

- Não, Senhor Silva, isto é demais! Dizia-lhe o Chefe de Repartição, no seu gabinete, onde o tinha chamado, pelos vistos, para o admoestar.

O Silva balbuciava umas desculpas ininteligíveis. Mas o Chefe interrompia-o energicamente: - Não, Senhor Silva! O que o Senhor tem feito é inqualificável! Já perdoei por duas vezes, já fechei os olhos por outras duas, não tenho dado ouvidos a não sei quantas queixas, mas agora é demais. Não posso deixar de agir e não devo permitir a sua presença na Repartição por mais tempo.

O Silva, vexado, corado até à raiz dos cabelos, humildemente desculpava-se.

- Mas Senhor Duarte, creia V. Ex.ª que há exagero nas acusações, foram pessoas que me querem mal que me vieram acusar...

Mas de que era ele acusado ? Emprestava dinheiro aos colegas a elevados juros. E várias já tinham sido as queixas chegadas ao Chefe da Repartição. Colega que estivesse em apertos podia contar com ele. Emprestava-lhe o que fosse preciso a 30 ou 40 %. Também se dedicava ao “desconto” dos ordenados, como ele chamava. Consistia a “operação” no seguinte: Mediante a entrega do recibo do ordenado, bastantes dias antes do respectivo vencimento, o Silva adiantava o dinheiro. Mas descontava importante maquia, segundo uma tabela. Pelos ordenados de 1.200$00, pagava 1.000$00; pelos de 1.500$00, entregava 1.250$00; pelos de 1.800$00 dava 1.500$00 e assim por diante, segundo a tabela laboriosamente confeccionada por ele e aprovada tacitamente pela sua desgraçada clientela. É claro que o Silva, no dia do pagamento dos ordenados, lá os recebia inteirinhos, para daí a dias recomeçar as suas lucrativas operações de desconto quase sempre aos mesmos infelizes clientes.

Além disso mantinha também um execrando negócio de tabacos. Nas gavetas da sua secretária e num armário ao lado, guardava grandes quantidades de tabaco que comprava a pronto pagamento, aproveitando todos os descontos, e vendia fiado aos colegas com o lucro normal. Mas se estes se atrasavam no pagamento a conta era aumentada com 10% de juros de mora...

Porém, um dia acabou-se o negócio dos tabacos. Tinha entrado pessoal novo para a Repartição e a rapaziada tinha-se revoltado contra aquela forte especulação. Um grupo tomou a iniciativa de fundar uma cooperativa de consumo e chamara logo a si o negócio de tabacos. Os sócios podiam continuar a comprar fiado e ainda tinham um desconto no tabaco e quem não pudesse pagar no fim do mês, não via a conta aumentada com os tais juros de mora.

Foi um acto que teve foros de revolução e levou o Silva a liquidar o negócio dos tabacos. – Fechou-se a loja! – exclamavam os colegas ridicularizando-o. E o Silva nunca mais vendeu uma onça de francês, um maço de cigarros ou um livro de mortalhas.

Subrepticiamente começou a circular entre os funcionários um soneto de autor anónimo, em versos de pé quebrado que glosava o acontecimento. Chamava-se “O Tabaqueiro” e rezava assim:

Havia um tabaqueiro, um matulão,
Que vendia por grosso e por miúdo.
Levava coiro, cabelo, levava tudo
E não pagava, sequer, contribuição.
O negócio rendia um dinheirão
E o tabaqueiro rico, homem taludo

Guardava a fortuna num canudo
E andava gordo, corado, folgazão.
Mas um dia, os fregueses, nobremente,
Fundaram sociedade concorrente,
Revoltados, qual seiscentos e quarenta
E o tabaqueiro já arruinado,
Ou vende tudo à pressa, quase dado
Ou abre falência fraudulenta!

Foi também esse grupo de gente nova que entendeu que se devia acabar com o escandaloso negócio do dinheiro a juros e o desconto dos ordenados. E abertamente expôs o assunto ao Chefe de Repartição. Este, homem bondoso e tolerante, resolveu agir e chamara o Silva a capítulo e ali estava agora a admoestá-lo severamente no seu gabinete.

Os colegas mais velhos, do tempo do Silva, consideravam que este estava em maus lençóis. Mas como entre os acusadores não havia nenhum cliente, se houvesse inquérito, as vítimas provavelmente iriam dizer que não, que o Silva emprestava o dinheiro sem qualquer interesse, fazia aquilo por amizade e camaradagem. E talvez o Silva ainda escapasse desta.

Mas o Senhor Duarte, o Chefe de Repartição, apesar do seu temperamento bondoso, sabia mais do que o Silva e de todos os seus clientes juntos, e resolvera acabar de vez com aquela especulação, mas adoptando métodos dissuasórios.

O Silva diante do Chefe, tremia de vergonha, como varas verdes, e continuava a desculpar-se: - Mas, Senhor Duarte, creia que são falsos testemunhos, são calúnias...

- Não, Senhor Silva – repetia-lhe o Chefe – há muito tempo que sei de tudo e o senhor tem de se ir embora desta casa. Mas olhe, não lhe quero mal. O Senhor tem quase cinquenta anos de idade e tem perto de trinta de serviço. Além disso é doente, já várias vezes se tem queixado do coração. Porque é que não se reforma? Requeira a sua aposentação hoje mesmo. Não haverá inquérito, não haverá escândalo. O senhor não perde muito e põe-se uma pedra sobre a questão.

O Silva ainda esboçou uma contra-argumentação, mas sentiu firmeza no Chefe e decidiu render-se: - Está bem, Senhor Duarte. Amanhã começarei a tratar das coisas e já cá não voltarei se me dispensa.

E, de cabeça baixa, saiu do gabinete, congestionado, vociferando, em surdina, palavras de ódio contra o seu superior.

No corredor, perto da porta, aguardavam vários colegas do Silva, ansiosos por saber o que se passara.

Então o Silva desabafou: - Aquele malandro, aquele filho duma cabra, obriga-me a aposentar-me. Mas há de pagar-mas! Ainda há de vir bater à minha porta!

E punha um tom de voz especial e fazia uma expressão estranha ao rogar aquela praga que repetia incessantemente: - Ainda há de vir bater à minha porta, ainda há de vir bater à minha porta...

O Silva nunca mais voltou à Repartição e decidiu montar o negócio de penhorista. Desfez-se de tudo o que possuía, converteu tudo em dinheiro. Móveis, livros, fatos, até um relógio de ouro que o pai lhe oferecera quando passou no 5.º ano do liceu. Custou-lhe um bocado desfazer-se dele, mas o relógio valia bastante e ele precisava agora mais do que nunca de muito dinheiro, para se vingar da traição dos colegas e daquele malvado chefe que o escorraçara do emprego. Realizou assim mais uns contos de réis que aplicou no seu negócio de empréstimos.

Ficou reduzido ao que trazia no corpo, uma cama, uma pequena mesa e a uns velhos trastes de cozinha. Montou, então, a casa de penhores, onde mesmo vivia, num quarto interior, miserável. Ele próprio cozinhava os alimentos reduzidos ao essencial.

E a necessitada clientela começou a aparecer: primeiro os antigos colegas endividados, depois a vizinhança por um pequeno empréstimo sobre o penhor de um modesto utensílio doméstico.

O Silva era de uma argúcia extraordinária para averiguar as possibilidades de crédito dos seus clientes. E para segurança nos negócios de usura, chegava a recomendar medidas de prevenção quanto ao futuro.

A um dizia: - Porque não faz um seguro de vida? Olhe que com uma pequena importância mensal pode deixar à família, em caso de morte, vinte ou trinta contos. E, assim, a família poderá ficar livre de embaraços e de...dívidas.

E, feito o seguro, no qual o Silva também tinha comissão, lá emprestava o dinheiro pedido, que desta forma ficava mais garantido. Se o cliente era funcionário recomendava que se inscrevesse no Cofre de Previdência. E aliciava à medida cautelar:

- Veja que é muito interessante, paga-se uma pequena quota, que vem já descontada no vencimento e, se morrer, pode deixar umas dezenas de contos à família. É preciso acautelar-se o futuro, é preciso...

Mas mais do que o futuro da família dos seus clientes, interessava-lhe a sua própria segurança, a garantia do pagamento da dívida em caso de morte do mutuário...

E, naquelas ocasiões, o Silva chegou a passar aos olhos dos clientes, ingénuos e necessitados, por pessoa de bem e bom conselheiro.

Os anos foram passando, desenvolvendo o Silva cada vez mais o seu negócio pela aplicação em empréstimos de todo o dinheiro de que dispunha, cobrando cada vez mais juros que logo convertia em novos empréstimos que lhe rendiam mais juros, num ciclo diabólico de especulação...

* * *

Entretanto, o Senhor Duarte, o antigo chefe da Repartição, também se reformara. Vivia com uma filha casada e um netinho que era o seu enlevo. E a adversidade batera-lhe à porta. Teve doenças em casa. A filha enviuvou, o neto teve uma longa e dispendiosa doença. A vida do antigo chefe começou a andar para trás. A sua pensão de reformado tornara-se insuficiente para tantas despesas e apareceram as primeiras dívidas. A situação foi-se agravando e o senhor Duarte lembrou-se de contrair um empréstimo para salvar os compromissos. Mas não encontrava a quem pedir. Pensava num amigo, num antigo colega, mas receava muito incomodar pessoas com um assunto tão particular e, na sua maneira de ver, tão sério. Principalmente tinha medo de lhe dizerem que não.

Numa associação de ideias, de repente, lembrou-se do Silva. O Silva era um profissional de emprestar dinheiro. Se lhe fosse pedir, não iria propriamente solicitar um favor - ia propor um negócio. E não daria a sua vida a conhecer a ninguém. Além disso, o Silva era discreto, lá isso era uma verdade. É certo que tinha aquela questão, mas já lá iam mais de vinte anos. Era tempo mais do que suficiente para prescreverem dívidas, quanto mais ressentimentos. E ao fim a ao cabo, o Silva só tinha ganho com a saída da Repartição. Ficara com uma pensão razoável, estabelecera-se, ganhara muito dinheiro, embora continuasse com seu aquele feitio avarento. De resto, o Silva devia ter reconhecido a razão do seu procedimento. Nunca lhe constara que tivesse dito mal dele, apesar de tudo, e as raras vezes que o vira na rua, cumprimentara-o sempre respeitosamente.

Decidiu-se a ir pedir um empréstimo ao Silva. Sempre era mais seguro, não se arriscava a levar uma negativa, não dava a conhecer a ninguém as suas dificuldades e o Silva não exageraria nos juros, concerteza.

E, pensando assim, encaminhou os seus passos para a casa do Silva, quebrado o seu orgulho, vencidos os seus escrúpulos pela necessidade. Chegou, teve uma hesitação na porta da rua, mas decidiu-se a subir os degraus carcomidos daquele sórdido primeiro andar. A porta da escada retiniu quando entrou e, ao fundo da sala, logo viu o Silva sentado a uma secretária velha, cheia de papéis, muito desarrumada. Achou o Silva mais velho, mais alquebrado, mais seco dentro da sua bata cinzenta de pano barato.

O Silva levantou os olhos para quem entrara e logo reconheceu o antigo chefe. Correu a mandá-lo entrar: - O senhor Duarte, o Senhor Duarte! Mas venha por aqui, sente-se, faça favor.

O velho Duarte acalentado pela boa recepção, ganhou coragem para formular o pedido.

- Pois é verdade Silva. A vida tem destas coisas. Tenho tido umas dificuldades, doenças em casa, o diabo...Vinha cá pedir-lhe um favor... Não me poderá emprestar aí uns dez contos ?...

O pedido tinha saído abruptamente, sem mais rodeios, de um jacto, mas estava feito. O Duarte fechou os olhos e sentiu por momentos um grande alívio. Sentiu-se como se fosse um réu a aguardar a sentença de um severo juiz. Chegou a arrepender-se do seu acto. Estava ali, naquele momento, à mercê de um homem que vinte anos antes tinha admoestado, cheio de indignação. O Silva não respondia e o Duarte quase desorientado, voltou a falar:

- Compreende, dou garantias. Tenho uma casa razoável, sou sócio do Cofre da Previdência, pagarei os juros habituais...

Mas o Silva ficou ainda calado por uns instantes, estarrecido, varado pelo Destino que punha na sua frente, a pedir-lhe dinheiro, humildemente, o homem que o escorraçara, vinte anos antes...

Acabou por responder, acabando com a tortura que involuntariamente estava a causar ao seu antigo superior:

- Oh, Senhor Duarte, o que quiser, o que quiser e não pagará um centavo de juros.

O Duarte proferiu umas palavras a agradecer e deu mais umas justificações.

Mas o Silva já se apressara a concretizar a transacção e explicara que já lhe tinha constado por antigos colegas, das infelicidades do Senhor Duarte. As doenças são o diabo... Mas estivesse descansado, podia contar com ele e – repetia – nem um centavo de juros queria aceitar e amortizaria a dívida como pudesse.

No fundo, o Silva sentia uma enorme alegria. Via realizada a sua terrível praga, quando o antigo chefe praticamente o despedira:

- “Ainda há-de vir bater à minha porta!... Ainda há-de vir bater à minha porta!”.

E ele ali estava, acabrunhado, humilde, submisso, a bater-lhe à porta!...

Passado o primeiro choque, o Silva sentia agora uma forte emoção de ver satisfeito um antigo e recalcado desejo. Sentia até vontade de lhe dar os dez contos, quanto mais não lhe levar juros...Não fazia sacrifício nenhum com aquela generosidade, o homem que na sua vida nunca dera um tostão a um pobre.

Ruborizado, o coração batia-lhe apressadamente no peito cheio de alegria.

Dirigiu-se ao cofre, a um canto da sala, tirou um maço de notas, deu-as ao Duarte. Não quis qualquer documento e a custo dizia, acompanhando o Duarte à porta numa despedida nervosa.

– Vá, Senhor Duarte, endireite a sua vida... Não se preocupe com o pagamento... Creia que tenho o maior prazer em ser-lhe útil...

O Duarte despediu-se com um gesto, não podia articular palavra... Compreendia perfeitamente que o Silva procedia por vingança. E estava bem vingado, não havia dúvida. Desceu as escadas apressadamente, ansioso por se livrar daquele martírio.

Então o Silva voltou para dentro. Um ataque de riso sacudiu-lhe o corpo, nervosamente, de alto a baixo. Foi arrumar o cofre, abriu-lhe mais a porta que ficou escancarada, mostrando, numa grande desordem, enormes maços de papéis, de letras, de notas de banco que ele, com as mãos crispadas, remexeu de contentamento. E, congestionado, eufórico de alegria, em convulsões de riso, caiu redondamente, fulminado por um colapso do coração....

Cícero Galvão

Dezembro de 1955

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