O leitor certamente já passou umas férias numa pequena terra do campo. Quando os nervos perdem o vigor após meses de trabalho na cidade buliçosa, um fim de semana, umas curtas férias ou umas férias grandes no campo são o tratamento indicado. Não há nervos que resistam à terapêutica por mais franjados que se apresentem.
Os costumes simples das gentes, o ar fresco e sadio filtrado por pinheiros antes de chegar aos nossos pulmões, a água cristalina das fontes que bebemos na origem sem passar por quilómetros de canalização e a fruta que se come colhida das árvores e das cepas sem passar pela mercancia, põe-nos outra vez em condições de voltar à cidade para estragar todo o bem que obtivemos no campo.
Levanta-se uma pessoa com o sol e, à noite, depois da ceia, se se perde a cabeça e se joga uma partida de bisca de três e nos vamos deitar às 10 horas – foi uma noitada!
Mas também há a sua política na aldeia.
As instituições locais são o pároco, o regedor, o dono da venda (centro de má língua) e numa ou noutra terra a Sociedade Filarmónica local.
Foi numa aldeia onde passei umas férias...
As férias estavam no fim e após sucessivas noites em que nada havia que fazer, a notícia da realização da Assembleia Geral da “Sociedade Filarmónica os Amigos da Semi-Colcheia” causou sensação e despertou enorme interesse entre os 30 veraneantes que se tinham deslocado até ali.
A Assembleia Geral da Sociedade foi convocada “para a apreciação da atitude assumida pelo regente da banda no último concerto” (pois corria o boato que o maestro não suportando uma fífia dum músico durante a execução do “Bailado das Horas”, lhe tinha enfiado a flauta pelas goelas abaixo, gesto que mereceu a reprovação de toda a banda e a eclosão duma greve de todos os artistas).
A Assembleia estava marcada para as 9 horas, mas “os passantes” para não perderem pitada já tinham ocupado, às 8,30, todas as cadeiras da sala onde se realizava a sessão.
Pouco antes das 9 começaram a chegar os sócios, os componentes da banda, os membros da Direcção e do Conselho Fiscal e por fim a mesa da Assembleia Geral que ocupou a presidência da sala. Mas os sócios, os músicos e os directores, dada a exiguidade da sala, tinham ficado mal instalados - ocupavam as coxias rentes às paredes, e atravancavam as portas num cacho de pessoas. Dali era impossível participar nos debates da Assembleia sobre problema de tamanha acuidade: se o regente devia ser demitido ou não. Era bem um problema de regência.
Os sócios mal instalados, “bilhardavam” entre si.
Uns pensavam que o regente tinha razão. Que diabo o “flauta” tinha estragado a execução do “Bailado das Horas”, que todos tanto apreciavam e era a coroa de glória dos “Amigos da Semi-Colcheia”. Não tinha entrado a tempo e, por culpa dele, o da “bateria”, teve de bater mais horas do que as marcadas pela partitura do “”Bailado”. Foi de perder a cabeça!
Mas o público que realmente tinha de participar na Assembleia sentia-se mal. A sala pequena asfixiava. E eles ali mal instalados à entrada das portas ou espalmados contra a parede ao longo das coxias! Como é que o Freitas, orador de fama, podia pedir a palavra e fazer um dos seus brilhantes discursos, uma das suas catilinárias de arrasar montanhas, instalado como estava em cima dum banco cozinha, à entrada duma porta, por detrás dum magote de sócios?! Era demais! E aqueles veraneantes, que nada havia de lhes interessar os assuntos que motivaram a assembleia, ali repimpados nas cadeirinhas, comodamente instalados no meio da sala!
O Presidente da mesa declarou aberta a sessão e, depois de lida e aprovada a acta da sessão anterior, um sócio pediu a palavra para tratar dum assunto no período de “antes da ordem do dia” – como disse o Presidente. – “Da noite”! emendou o Freitas, ortodoxo em matéria de Assembleias Gerais.
- Seja da noite, Sr. Freitas! Exclamou o Presidente.
O orador começou a falar mas não se ouvia nada. A indignação aumentou pois cada vez era mais angustiosa a situação dos sócios que tinham de participar na Assembleia e que estavam sentados! O banco onde o Freitas estava empoleirado partiu-se e houve estrondo e burburinho. Felizmente foi só o susto.
- Pede a palavra, pede a palavra e reclama!
O Freitas que com todo o carinho tinha fundado aquela sociedade, que estimava como se fosse uma filha, sacudindo-se da poeira e esfregando um cotovelo que magoara na queda, pediu a palavra.
Fez-se silêncio na sala. O Freitas ia falar. Os veraneantes que, optimamente instalados, havia já uma boa meia hora gozavam tudo aquilo com todos os requintes de malvadez, viraram-se para trás e apuraram os ouvidos para escutar o verbo do Freitas tão gabado.
O Freitas, dominando o silêncio, rumorejou, afinando a garganta, endireitou as lunetas, passou os dedos finos pelos lábios e pelo bigode e falou assim:
- “Senhor Presidente: Nesta sala há sócios que não são sócios e que estão sentados e sócios que são sócios e estão de pé. Eu, Manuel Joaquim de Freitas Cara d’Anjo, que fui sócio fundador desta Academia e seu tesoureiro durante 25 anos sem praticar um desfalque – estou de pé. Tenho disse!”
Cícero Galvão
Dezembro de 1946
Os costumes simples das gentes, o ar fresco e sadio filtrado por pinheiros antes de chegar aos nossos pulmões, a água cristalina das fontes que bebemos na origem sem passar por quilómetros de canalização e a fruta que se come colhida das árvores e das cepas sem passar pela mercancia, põe-nos outra vez em condições de voltar à cidade para estragar todo o bem que obtivemos no campo.
Levanta-se uma pessoa com o sol e, à noite, depois da ceia, se se perde a cabeça e se joga uma partida de bisca de três e nos vamos deitar às 10 horas – foi uma noitada!
Mas também há a sua política na aldeia.
As instituições locais são o pároco, o regedor, o dono da venda (centro de má língua) e numa ou noutra terra a Sociedade Filarmónica local.
Foi numa aldeia onde passei umas férias...
As férias estavam no fim e após sucessivas noites em que nada havia que fazer, a notícia da realização da Assembleia Geral da “Sociedade Filarmónica os Amigos da Semi-Colcheia” causou sensação e despertou enorme interesse entre os 30 veraneantes que se tinham deslocado até ali.
A Assembleia Geral da Sociedade foi convocada “para a apreciação da atitude assumida pelo regente da banda no último concerto” (pois corria o boato que o maestro não suportando uma fífia dum músico durante a execução do “Bailado das Horas”, lhe tinha enfiado a flauta pelas goelas abaixo, gesto que mereceu a reprovação de toda a banda e a eclosão duma greve de todos os artistas).
A Assembleia estava marcada para as 9 horas, mas “os passantes” para não perderem pitada já tinham ocupado, às 8,30, todas as cadeiras da sala onde se realizava a sessão.
Pouco antes das 9 começaram a chegar os sócios, os componentes da banda, os membros da Direcção e do Conselho Fiscal e por fim a mesa da Assembleia Geral que ocupou a presidência da sala. Mas os sócios, os músicos e os directores, dada a exiguidade da sala, tinham ficado mal instalados - ocupavam as coxias rentes às paredes, e atravancavam as portas num cacho de pessoas. Dali era impossível participar nos debates da Assembleia sobre problema de tamanha acuidade: se o regente devia ser demitido ou não. Era bem um problema de regência.
Os sócios mal instalados, “bilhardavam” entre si.
Uns pensavam que o regente tinha razão. Que diabo o “flauta” tinha estragado a execução do “Bailado das Horas”, que todos tanto apreciavam e era a coroa de glória dos “Amigos da Semi-Colcheia”. Não tinha entrado a tempo e, por culpa dele, o da “bateria”, teve de bater mais horas do que as marcadas pela partitura do “”Bailado”. Foi de perder a cabeça!
Mas o público que realmente tinha de participar na Assembleia sentia-se mal. A sala pequena asfixiava. E eles ali mal instalados à entrada das portas ou espalmados contra a parede ao longo das coxias! Como é que o Freitas, orador de fama, podia pedir a palavra e fazer um dos seus brilhantes discursos, uma das suas catilinárias de arrasar montanhas, instalado como estava em cima dum banco cozinha, à entrada duma porta, por detrás dum magote de sócios?! Era demais! E aqueles veraneantes, que nada havia de lhes interessar os assuntos que motivaram a assembleia, ali repimpados nas cadeirinhas, comodamente instalados no meio da sala!
O Presidente da mesa declarou aberta a sessão e, depois de lida e aprovada a acta da sessão anterior, um sócio pediu a palavra para tratar dum assunto no período de “antes da ordem do dia” – como disse o Presidente. – “Da noite”! emendou o Freitas, ortodoxo em matéria de Assembleias Gerais.
- Seja da noite, Sr. Freitas! Exclamou o Presidente.
O orador começou a falar mas não se ouvia nada. A indignação aumentou pois cada vez era mais angustiosa a situação dos sócios que tinham de participar na Assembleia e que estavam sentados! O banco onde o Freitas estava empoleirado partiu-se e houve estrondo e burburinho. Felizmente foi só o susto.
- Pede a palavra, pede a palavra e reclama!
O Freitas que com todo o carinho tinha fundado aquela sociedade, que estimava como se fosse uma filha, sacudindo-se da poeira e esfregando um cotovelo que magoara na queda, pediu a palavra.
Fez-se silêncio na sala. O Freitas ia falar. Os veraneantes que, optimamente instalados, havia já uma boa meia hora gozavam tudo aquilo com todos os requintes de malvadez, viraram-se para trás e apuraram os ouvidos para escutar o verbo do Freitas tão gabado.
O Freitas, dominando o silêncio, rumorejou, afinando a garganta, endireitou as lunetas, passou os dedos finos pelos lábios e pelo bigode e falou assim:
- “Senhor Presidente: Nesta sala há sócios que não são sócios e que estão sentados e sócios que são sócios e estão de pé. Eu, Manuel Joaquim de Freitas Cara d’Anjo, que fui sócio fundador desta Academia e seu tesoureiro durante 25 anos sem praticar um desfalque – estou de pé. Tenho disse!”
Cícero Galvão
Dezembro de 1946
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