Os contos e crónicas recolhidos neste blog foram todos publicados no jornal “Re-nhau-nhau”, trimensário humorístico do Funchal, nos números do seu aniversário, coincidente com a época do Natal. Recolheram-se 36 contos e crónicas publicados no jornal nas edições dos meses de Dezembro dos anos de 1946 a 1977.

Partida para o Funchal em 1946

UM MOMENTO PSICOLÓGICO

Era um alvoroço quando chegava o verão e se aproximava o dia da partida para férias. Tinha-me libertado, depois de muitos pedidos, da obrigação de ir com a família para a praia e todos os anos ia passar três semanas, pelo menos, ao campo, em autêntico ambiente provinciano, numa aldeia perdida entre eternos pinheirais, frondosos eucaliptos e castanheiros, perto do maravilhoso rio Zêzere. O acesso à aldeia era difícil, a mais de vinte quilómetros do caminho de ferro, por uma velha e esburacada estrada de macadame, sinuosa como uma serpente, à qual não se atreviam carreiras regulares de camionetas.

Depois do combóio, faríamos a viagem numa pequena e desengonçada camioneta de carga que, no regresso à aldeia, nos levava em cima de caixotes de sabão, barris vazios de vinho, retorno do principal produto de exportação do lugar, sacas de adubo e outras cargas próprias das actividades agrícolas, por amável condescendência do proprietário do veículo, o simpático Manuel Pedro, que levava mais de uma hora para percorrer aquela curta distância.

Reuníamos, então, na aldeia, sete, oito, dez rapazes, colegas dos estudos, que durante algumas semanas, numa vida livre, saudável, numa inesquecível camaradagem, tirávamos o maior partido dos bens com que Deus tinha dotado, generosamente, aquela região. Nós dizíamos que praticamente estávamos acampados. Vivíamos sob telha, numa velha casa de taipa a que nós chamávamos o “palácio” e que alugávamos à época, pela importância irrisória da décima, uns dez ou quinze escudos. Mas éramos bons inquilinos, pois era raro o ano em que não introduzíamos apreciáveis melhoramentos que pouco a pouco transformavam aquele casarão num autêntico palácio.

No “palácio” que todos os anos recheávamos rapidamente com móveis emprestados – camas, mesas, cadeiras, armários – só dormíamos e a limpeza e o arranjo dos quartos estavam a cargo da zelosa tia Maria Augusta que Deus já lá tem, também conhecida pela tia Sabido. Comíamos em casa da Tia Maria Augusta, que tinha o precioso dom da imediatidade, pois tudo fazia com tal rapidez e perfeição que causava a admiração e os louvores de todos. Bastava pedir um ovo estrelado, uma chávena de café, uma torrada, uma peça de fruta ou qualquer guloseima que ela aparecia imediatamente do fundo da sua cozinha, negra da fuligem, qual mágico experimentado, com o que nós queríamos, tudo bem preparado e apetitoso.

De dia passeávamos pelos campos, pelos pinheirais; comíamos a fruta colhida das árvores pelas nossas próprias mãos, fazíamos vindima antecipada por nossa conta e nosso proveito, uma parreira de uvas “dedos de dama” ficava ao nosso dispor e tínhamos um prazer indescritível de saborear aquela deliciosa fruta que jamais havia de passar pela mercancia. Debaixo duma copa da figueira devorávamos quantos figos maduros ela nos oferecia. E eram beberas, uns figos compridos, com pinga de mel no olho, madurinhos a que o povo chama “abêberas”.

Fazíamos longas excursões a pé, de muitos quilómetros, a visitar os arraiais que se organizavam naqueles meses de verão nas freguesias das redondezas e assistíamos enlevados a interessantes concertos dados pelas bandas sempre aos pares, - duas bandas duas, como diziam os programas – e sempre rivais que à compita nos deliciavam com competições audaciosas de Mozart, Beethoven, Wagner e outros compositores consagrados. Não raro, devido à rivalidade das sociedades filarmónicas vizinhas, havia grossa pancadaria entre os partidários das várias “músicas”. Não poderei esquecer que um dia vi rachar a cabeça a um campónio que não simpatizava com o chefe de certa banda mas que, não podendo dizer mal da música que era do geral agrado, criticou os longos intervalos que a banda fazia, exclamando para um contraditor: “Tá bem: eles toquim bem, mas párim muito”. Queria dizer na sua que os músicos tocavam bem mas “paravam” muito. O desabafo custou-lhe a cabeça rachada e o desencadear do maior arraial de pancadaria que jamais me foi dado ver...

Quase todos os dias, manhã cedo, caminhávamos para o famoso Zêzere, para tomar banho no sítio da Barca, um pego profundo e largo que separava as duas margens e que devido às facilidades de navegação dera a indústria de barcagem havia muitos anos a uma família de barqueiros. Ainda mal estava construída a barragem do Castelo de Bode, a juzante, que mais tarde veio a inundar aquelas formosas encostas, cobertas de pinheirais e oliveiras, transformando o lindo vale em V na maravilhosa albufeira que hoje lá existe. Na Barca tomávamos longos banhos, numa água límpida e morna de 25 graus, nadávamos e fazíamos regatas com as pesadas bateiras de madeira tosca, bezuntadas de pez, da tia Loureira da Barca, que não tinha uma mão, levada por uma bomba de foguete, quando, clandestinamente “pescava” por esse criminoso processo. Pagou caro essa grave falta, mas Deus certamente já a perdoou e nós na nossa insignificância também a perdoávamos pelas saborosas caldeiradas que nos preparava com fresco peixe do rio, agora pescado com legalidade, à linha e à rede.

As noites eram passadas na mercearia do Sr. José Victória ou na loja de Joaquim Latoeiro, mais progressiva, que já tinha telefonia, alimentada a baterias, pois a aldeia ainda não tinha electricidade.

Na tenda do Sr. José Victória que Deus também já lá tem em sua divina guarda, jogávamos a bisca, o solo e a sueca. Era parceiro o Sr. João Portela, caixeiro da loja e encarregado do telefone e do correio, tão conservador que nunca arrancava as etiquetas, com os preços, dos objectos que comprava. Durante anos usou óculos com uma etiqueta pequenina, colada numa das lentes e um chapéu de feltro com a copa em bico, também devidamente etiquetado.

A loja de Joaquim Latoeiro era o centro de cavaco por excelência, à falta de farmácia. Além da oficina de latoaria, arte em que o Joaquim era mestre, ali também se vendia de tudo – bom vinho, boa aguardente, refrescos, em que predominava a velha saudosa “pirolita” com um berlinde no gargalo, lenços estampados de algodão para a cabeça das aldeãs, chitas, fazendas – que sei eu ? – que se encontravam numa desarrumação prodigiosa em prateleiras toscas que se curvavam sob o peso das mercadorias.

Em Janeiro, pelos Reis, íamos também passar dois dias à aldeia a convite do Latoeiro, que nessa altura matava sempre o seu anafado porco. Por alturas da ceia, um saboroso sarrabulho, aparecia a miudagem da terra a cantar as Janeiras, cenas inesquecíveis que o nosso Gil Vicente, que eu saiba, não se lembrou de registar. Passavam à porta, em grupo, e com as suas vozes finas, bem timbradas, numa natural afirmação, em côro, cantavam assim:

Quem tem ovelhas tem lã;
Quem tem lã tem carrapiços;
Quem tem cabras tem anacos;
Quem tem porcos tem chouriços.

E como conclusão lógica destas premissas:

Ó minha rica senhora,
Dê lá volta ao seu “fumêro”
Se não quiser dar a “mêtade”,
Dê o chouriço “intêro”.

Nós dávamos o chouriço inteiro e deitávamo-lhes moedas que eles apanhavam numa algazarra, cantando a seguir num agradecimento:

Esta casa é,
Casa de um homem de bem,
Cristão que teme a Deus
E reparte do que tem

E seguiram a cantar a outra porta. E quando alguma vizinha mais sovina não lhes dava nada, batendo-lhes com a janela na cara e fechando a porta cantavam-lhe assim:

Esta casa é,
Casa dum avarento,
Em vez de pão, dá-nos pedras:
Olha o velho bolorento.

Pois foi aqui, na loja do Latoeiro, verdadeira academia de férias, onde se discutia política, filosofia, arte e literatura que, numa noite de Verão se passou a cena que passo a contar, e já não é sem tempo depois de tanto maçar o leitor com esta pálida descrição do meio ambiente que em homenagem à terra, humilde mas nobre, passo a identificar: Trata-se da freguesia do Souto, do concelho da histórica cidade de Abrantes, correio da risonha vila do Sardoal, em pleno coração do país entre o majestoso Tejo e o seu magnânimo tributário, o portuguesíssimo rio Zêzere, nado e criado em plena Serra da Estrela, que desde o berço até à foz, fecunda e faz progredir as jeiras, as indústrias e os lugares, dando-se em regas, em força e em luz...

* * *

Uma noite entrámos na loja do Joaquim Latoeiro, iluminada fortemente por um claro “Petromax”, e encontrámos lá apenas três camponeses, barba por fazer, em mangas de camisa, o colete meio vestido, caindo para o lado sentados ao balcão em cima de sacas de batatas e de fardos de bacalhau miúdo, rilhando um queijo duro, que cortavam aos bocadinhos com uma navalha de podar, de lâmina bem afiada. O latoeiro escutava um atentamente, por detrás do balcão, em cima do qual estava uma cafeteira de esmalte branco, arrocheada do vinho que escorria, pois era pela cafeteira que ele ia enchendo aos fregueses os copinhos de grossa base com puro vinho tinto da sua lavra. Os camponeses tinham nomes pitorescos – eram eles o Chico Três-Têtas, o Manuel Curto, e o José Côdea. O Curto é que estava a falar quando entrámos e todos o ouviam com curiosidade. Mas calou-se quando nos viu. Depois das “boas noites” houve uns momentos de silêncio, não sei porquê, num estranho e num invulgar acanhamento. Foi a dona da loja quem quebrou o silêncio dizendo para o Curto:

- Vá, homem, continua a tua história que estes senhores hão de gostar e são de confiança.

E explicou-nos:

- Estão aqui a contar as suas aventuras de amor. O Três-Têtas já contou como raptou a mulher, porque o pai dela se opunha ao casamento, o Curto está a acabar de contar porque se não casou com a Josefa, do Vale da Ana Toda, depois de um amor de muitos anos... E o Curto acabou de contar que a Josefa o trocara por um aventureiro com quem fugiu. E o que a encheu mais de raiva é que o valdevinos nada valia, “nem no ter nem no ser”, querendo dizer que não tinha bens, nem era beleza nenhuma.

Faltava agora o Côdea contar a sua aventura.

Não sei porquê lembrei-me da “Ceia dos Cardeais” e quis ver naqueles homens do campo os Cardeais Gonzaga, Rufo e de Montmorency, e certifiquei-me de que esse misterioso fluido que é o amor, tanto toca o letrado, o erudito, o altamente dotado pela inteligência, como o rude, o ignorante, o bronco por natureza.

Estaríamos, pois, a assistir à “Ceia dos Cardeais”. Mas eram seres totalmente diferentes: em vez das vestes cardinalícias, envergavam os seus sujos fatos de trabalho, em vez de faisão, Velho-Reno, e Xerês ou Champagne, ceavam queijo duro da região e bebiam vinho tinto vulgar, carrascão, cheio de tanino. Mas os sentimentos, esses sim, eram os mesmos – o prazer de recordar paixões antigas, cenas de amor que não esquecem mais, tanto assalta o divino como o reles.

Chegou a vez do Côdea contar a sua história.

Hesitava, acanhava-se porque já não estavam sós, tendo como única testemunha o discreto latoeiro. Mas este encorajou-o servindo-lhe mais vinho:

- Vá, homem, estes senhores são de confiança, não tenhas vergonha.

O Côdea engoliu dum trago o copo de vinho, limpou a boca às costas da mão, cheia de negros pêlos, e resolveu-se a contar o seu caso de amor.

Era no verão e ele desde os Santos que andava de namoro com a Ana, do fundo da aldeia, moçoila linda, clara, de grandes olhos castanhos, cabelos compridos e sedosos. A Ana era a cobiça de todos os rapazes da sua geração. O namoro não era ainda declarado, oficial, mas falavam-se a miúdo, ficavam tempos esquecidos na conversa quando se cruzavam nos caminhos. Havia uma atracção irresistível um pelo outro e ambos já faziam projectos para o futuro. Eram da mesma condição, o casamento seria muito igual, os pais fechavam os olhos às demoras da rapariga e ao desleixo do rapaz... Que diabo, já todos haviam passado por aquilo...

Às romarias e aos arraiais lá iam os dois sempre juntos, formando um lindo par, ele mais engomado e bem vestido do que o costume, ela, como sempre, radiante, vistosa, bem arranjada, desenxovalhada.

Um dia, no fundo da aldeia, perto da casa da Ana, o Côdea arrumava a palha da colheita desse ano num grande casarão que o pai aí tinha e servia de palheiro. A porta estava aberta , de par em par, e o sol, forte e luminoso, entrava a jorros pela casa dentro. O Côdea , entretido a empilhar os fardos, nem deu pela chegada à soleira da porta da sua conversada que o despertou do zelo da sua faina:

- Quer uma ajuda, trabalhador?

O Côdea reconheceu logo a voz fina e melodiosa de Ana, que o perturbava sempre, e interrompeu o trabalho. Cheio de alegria, aceitou a oferta:

- Ana, anda daí a ajudar-me a levantar este fardo.

A Ana, decidida, entrou no palheiro a dar auxílio ao namorado.

Pegaram ambos com força num pesado fardo. Mas a rirem-se, perderam as forças e não conseguiram erguê-lo. O fardo acabou por cair e, sobre ele, a Ana e o Côdea, cansados do esforço e do riso, esfuziantes de alegria e de contentamento. Os cabelos da Ana que se soltaram, envolviam a cabeça do Côdea. Instintivamente o Côdea beijou-os, depois beijou-lhe a pele fina das faces rosadas, os olhos, a boca, o colo. A Ana cansada, prostrada, deixava-se beijar. Nisto, o Côdea interrompeu aquele idílio. Aquele sol que entrara pela porta dentro, aquela porta, completamente aberta, eram um perigo... E se alguém passasse e os visse... E em voz alta exclama para Ana:

- Aquela porta aberta... Vou fechá-la!

A Ana, beijando-o por sua vez, rendida ao seu amor, disse-lhe apenas num completo abandono:

- Deixa lá a porta!...

Mas o Côdea não suportava aquele risco e, dum salto, afastou a namorada e foi fechar a porta. Quando acabou de a aferrolhar bem e se voltou de novo, encontrou a Ana erguida, ao fundo do palheiro, ajeitando os cabelos, limpando-os das palhas, sacudindo o vestido, compondo o corpete, numa atitude cheia de dignidade. O Côdea admirado só pôde dizer:

- Então?...

E a Ana, bruscamente, com ar sério:

- Então, o quê?!

O Côdea, humilde, suplicante, justificou-se titubeando:

- Fui fechar a porta...

Respondeu-lhe a Ana, com firmeza, fugindo pela porta das traseiras, graciosa e ligeira como sempre:

- Olha! não a tivesses fechado...

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Passaram-se anos. O Côdea, envergonhado, não procurou mais a namorada. Não se casou com a Ana e, pela vida fora, quando recorda aquela cena, sente sempre a sensação, tão bem definida pelo meu ilustre colega Júlio Dantas, o insigne académico e laureado autor da “Ceia dos Cardeais” já citada, que o melhor beijo é aquele que nunca se chega a dar...


Cícero Galvão
Dezembro de 1956

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