Quando, acabado o seu curso, o meu colega Diamantino partiu para Luanda onde ia iniciar a sua vida, os amigos ao despedirem-se, no cais da Areia, em Lisboa, não lhe disseram Adeus nem sequer Até à vista ou Até logo. Gritaram-lhe simplesmente Até já porque não queriam admitir que aquele afastamento fosse por muito tempo. Tínhamos vivido anos numa camaradagem inesquecível, num convívio diário que se prolongava pelas férias, pois o Diamantino, com a família em África e sozinho em Lisboa, nas férias grandes aparecia sempre numa convivência de irmãos.
Aquela amizade não provinha, pois, só dos estudos. Tinha-se cimentado fraternalmente e em relação a mim não queria acreditar na separação que iria pôr termo a passeios, a divertimentos, a discussões sobre todos os assuntos, no café, ao fim da tarde. Estava convencido que o até já da despedida era a expressão exacta. Havia projectos optimistas de irmos a África, ou ele no exercício das funções que ia desempenhar voltar em breve a Lisboa de forma que a nossa convivência não seria interrompida por muito tempo.
Do cais, acenávamos-lhe com os lenços e gritávamos Até já, Até já!, até o barco se sumir para os lados do Terreiro do Paço, a descer o Tejo, a caminho do mar, a caminho de Angola.
Mas aquele Até já foi longo. Transformou-se num verdadeiro Adeus. Veio a significar uma ausência física de muitos e muitos anos.
A caminho de Luanda o barco que levava o Diamantino aportou, como quase todos aqueles que demandam África, ao Funchal onde ele desembarcou e percorreu durante algumas horas a cidade na sua qualidade de passante. Passeou e comprou como bom passante que era. E escreveu-me um lindo postal ilustrado com uma vista do Funchal, tirada de um miradouro, vendo-se ao fundo o cais da Pontinha com um lindo barco acostado e em grande plano um grupo de bordadeiras a bordar ao ar livre uma linda toalha de mesa. Saudava-me, entusiasmado com a cidade e dava-me notícia que pelo mesmo correio me enviava uma surpresa...
Só daí a dias recebi a surpresa - uma pequena garrafa de Madeira, de boa marca, meticulosamente embalada numa lata muito bem fechada. Logo me acudiu a idéia de que aquele vinho só havia de ser bebido quando o Diamantino e eu estivéssemos de novo juntos. E se bem pensei melhor o fiz porque guardei religiosamente aquela latinha com uma pequena garrafa de Madeira num velho armário de minha casa.
Entretanto cada um de nós seguiu a sua carreira e o acaso do trabalho não nos proporcionou um encontro tão próximo quanto esperávamos à despedida. Na verdade, só quando eram passados dez anos (muito tempo para um até já) tive a grata notícia de que o Diamantino voltava a Lisboa.
Já nos havíamos casado e ele voltava acompanhado da mulher para uma missão oficial em vários países da Europa e estaria uns dias em Lisboa. Fazia a viagem de barco.
No entanto, por minha vez, o Destino tinha-me levado ao Funchal onde havia de passar alguns anos e pus-me em campo para assegurar um encontro com o Diamantino. A mim era-me impossível deslocar-me a Lisboa, mas a breve trecho soube que o barco em que o meu amigo fazia a viagem, tanto à vinda como à volta, tocava no Funchal.
Foi uma alegria ao encontrarmo-nos de novo quando o barco acostou no Funchal. Foi rápida a sua passagem e já à partida para Lisboa é que me lembrei da pequena garrafa de Madeira. Então pedi-lhe que ao passar por Lisboa fosse a minha casa e me trouxesse a pequena garrafa que dez anos antes me mandara do Funchal. Voltaria ao ponto de origem a fim de se cumprir a promessa de celebrarmos com ela o nosso encontro.
A missão do meu amigo Diamantino pela Europa foi demorada. Passaram-se meses e já se aproximava o Natal quando recebi um telegrama em que ele me dizia que no regresso a África tocava no Funchal onde se demoraria um dia inteiro.
Chegou precisamente na véspera do Natal. Quando de novo o fui esperar à Pontinha naquela fria manhã de 24 de Dezembro e o barco acostou, logo avistei o Diamantino, ao lado da mulher, a acenar-me esfuziante, do alto do tombadilho, com a pequena lata com a pequena garrafa de Madeira erguida bem alto, acima da cabeça, tal como um campeão ergue uma taça ganha como prémio do seu esforço desportivo e a exibe orgulhosamente.
Passamos a consoada juntos, no hotel onde me encontrava hospedado. Fiz de anfitrião e a minha mulher preparou, ela própria, uma magnífica ceia. Era extraordinário como o acaso nos juntava passados mais de dez anos de separação justamente em tão sagrado dia. Tal acontecimento era bem um presente divino à nossa fraternal amizade.
Depois da missa do Galo que ouvimos na Sé, apressámo-nos para a consoada, que o apetite já era muito e ela estava de apetecer. A pequena garrafa de Madeira fazia as honras de centro de mesa, em cima de um improvisado pedestal, decorada com uma linda coroa de azevinho.
À sobremesa abriu-se solenemente a garrafa. E dela escorreu para os quatro cálices que os encheu, sem faltar uma gota, um precioso néctar cor de âmbar escuro de aroma inebriante. Tal como o velho vinho da Madeira, chamado da roda, que passeava nos cascos nos porões dos barcos à vela, pelos trópicos e pelo Equador, das costas de África às costas do Brasil, até voltar novamente à ilha de origem onde era cuidadosamente armazenado, depois de bem amadurecido ao calor da zona tórrida tornando-se das mais belas bebidas do Mundo, o conteúdo daquela pequena garrafa de Madeira também amadurecera ao passar dez quentes verões dentro de um velho armário numa velha casa de Lisboa e era, na verdade, uma bebida deliciosa.
Com os cálices cheios do precioso néctar, brindamos pelo nascimento de Jesus que naquela noite nos dera o mais precioso presente que podíamos esperar e pela nossa amizade. E antes de levarmos os cálices à boca murmurámos em uníssono o preceito evangélico: Glória a Deus no mais alto dos céus e paz na terra aos homens de boa vontade.
Cícero Galvão
Dezembro de 1969
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