Os contos e crónicas recolhidos neste blog foram todos publicados no jornal “Re-nhau-nhau”, trimensário humorístico do Funchal, nos números do seu aniversário, coincidente com a época do Natal. Recolheram-se 36 contos e crónicas publicados no jornal nas edições dos meses de Dezembro dos anos de 1946 a 1977.

Partida para o Funchal em 1946

A PENSÃO DE MRS. DURLING

Naquele ano, não muito longínquo, tive que passar três meses – três bons e inesquecíveis meses – na linda e vetusta cidade de Coimbra. Essa oportunidade encheu-me de contentamento e antes de partir fui avistar-me com um amigo meu, antigo veterano consagrado da Lusa Atenas, para que me recomendasse à proprietária de uma pensão particular que ele muito gabava em todas as suas conversas saudosistas dos seus tempos de estudante.


Esse meu velho amigo passou-me o cartão, com grande alegria por me ser prestável e pela oportunidade de escrever umas linhazinhas amáveis a Mrs. Durling, a dona da casa que com fino gosto inglês governava aquela tão simpática pousada.

Mrs. Durling não é inglesa de origem – explicou-me o meu velho amigo – É viúva do antigo leitor inglês da Faculdade de Letras, o Dr. Durling, grande amigo das coisas portuguesas, como provou pelo seu casamento. Mas infelizmente não chegou a estar casado um ano, pois finou-se muito novo de uma febre tifóide.

A mulher, nada e criada em Coimbra, depressa adquiriu os hábitos fleugmáticos do marido e pouco tempo depois de enviuvar, como fosse insuficiente a mesada que o governo inglês lhe concedeu, começou a dar pensão a pessoas de respeitabilidade, em regra recomendados por catedráticos, antigos amigos ou admiradores do defunto marido.

Os hóspedes eram sempre poucos – quatro, o máximo cinco – pois a elegante moradia não tinha muitas divisões e Mrs. Durling conservava religiosamente os desafogos da habitação: o escritório, uma casa de estar e uma sala de visitas, cheias de comodidade inglesa e de muitas gravuras antigas lindamente emolduradas, a cobrir as paredes.

Era esse o ambiente que me convinha para passar os três meses de serviço na bela cidade do Mondego. E, na realidade, quando me instalei na casa de Mrs. Durling, depois de ter exibido o amável bilhete do meu amigo coimbrão, verifiquei com agrado que o ambiente correspondia inteiramente à expectativa. O meu generoso amigo ainda me havia recomendado: - O nome dela pronuncia-se “darling” com a fechado. Não confundas com “dárling”. Mas podes tratá-la por “darling”, desde que ela te dê consentimento.

Mrs. Durling também correspondeu à expectativa. Devia ter quarenta e tantos anos bem conservados, era atlética, sem deixar de ser muito feminina, amava os desportos, nadava muito no verão, fazia ginástica no Inverno e todos os dias, com calor ou com frio, logo ao levantar tomava duche forte muito frio. O inglês, a meu ver, tivera bom gosto.

Os hóspedes, com a minha entrada, passaram a ser cinco. Os criados eram quatro – a cozinheira, a criada de quartos, a que servia à mesa e um rapaz para voltas. A própria Mrs. Durling, como excelente dona de casa, era quem todos os dias tratava dos abastecimentos no mercado e determinava o menu das refeições.

Por virtude dos meus afazeres, em geral, comia sempre a deshoras, o que transtornava os hábitos da casa e, por isso, raras vezes via os meus companheiros de pensão.

Mas logo nos primeiros dias calhou estarmos todos reunidos ao fim do almoço e Mrs. Durling, gentil e solene, fez as apresentações: O Coronel Azevedo, reformado de artilharia e que se tinha ali aposentado; o Dr. Luís, licenciado em medicina que andava seriamente preocupado à procura de tema para uma comunicação que tinha sido convidado a fazer no “Circulo Médico-Cirúrgico”; O Engenheiro Silveira, das Obras Públicas, e o Dr. Veloza, o único estudante, que vagamente frequentava farmácia.

Mrs. Durling presidia sempre às refeições na mesa comprida da sóbria sala de jantar e nas raras vezes que jantei com tão agradáveis companheiros tive ocasião de observar como a anfitriã sabiamente lançava o “leit motiv” da conversa que conduzia e dominava, conversa que tratava, em regra, de política, arte, literatura e até de ciência.

Nesta última matéria quem pontificava mais era o médico, o Dr. Luís, que não havia meio de se decidir quanto ao tema da conferência.

Num fim de tarde em que eu, cansado, fui repousar a vista, durante uns minutos, nos dilatados panoramas que se avistam do Penedo da Saudade, encontrei lá, a estudar, o Dr. Luís. No regresso para casa falámos dos nossos simpáticos companheiros.

Fiquei então a saber que o Coronel Azevedo tinha sido praticamente o fundador da Pensão. Com efeito, fora o seu primeiro hóspede, constava mesmo que, no princípio, financiara a casa e – diziam – que a sua mensalidade era bastante mais elevada que a dos outros. Era um tanto agachado. A idade, uma bronquite asmática e um impertinente hemorroidal, obrigavam-no a ter um regime especial e não raro se sabia que Mrs. Durling tinha ido urgentemente, de noite, ao quarto dele para acudir a qualquer crise.

Assim o explicavam as criadas contristadas, pois a senhora, de manhãzinha quando saía dos aposentos do coronel, após uma noite de vigília, e se dirigia para o duche frio, esclarecia que o mesmo tinha passado a noite muito mal. “Tinha dado uma noite horrível” na sua expressão quase maternal.

Também tomei conhecimento, quanto ao Silveira, o Engenheiro das Obras Públicas, que tinha uma queda muito especial por Mrs. Durling e uns ciúmes terríveis do coronel, absolutamente injustificados, por causa das atenções especiais que a dona da casa lhe dedicava por virtude dos seus padecimentos.

No que respeita ao Veloza, já não se sabia há quantos anos cursava farmácia. Era da Madeira, o pai tinha uma botica na sede de um concelho do campo e raros anos se decidia a comparecer aos actos, pois como tinha uma inspirada veia poética, por essa agitada época do ano lectivo, perdia o melhor do seu tempo a compor poemas dedicados aos colegas para os álbuns de fim de curso e a fazer versos para as festas da queima das fitas.

Não tinha, assim, tempo para se preparar para os actos e quando chagava à botica do pai, na Madeira, desculpava-se com um certo nervosismo que não lhe dava a coragem necessária para se apresentar aos exames; que queria ir sempre bem preparado; que para o ano arrancaria uma nota melhor, etc., etc.

O pai boticário, zangado, ameaçava cortar-lhe os estudos, mas no fim das férias sempre lhe dava o dinheiro necessário para as matrículas e para uma 2ª classe no “Lima” ou “Carvalho”, uns cestos com belos cachos de bananas e umas caixas de Madeira velho (de que ainda cheguei a provar e que era uma maravilha) para os primeiros presentes e para consumo próprio.

Uma noite agravaram-se subitamente os padecimentos do Coronel Azevedo. Mrs. Durling já lhe havia acudido, como era costume, mas como a indisposição se agravasse de forma alarmante, viu-se obrigada a acordar as criadas e a chamar o Dr. Luís. O ruído dos passos no corredor, embora abafados, despertaram-me. Palpitei o que se passava.

Levantei-me e, de roupão, avancei até ao quarto do coronel, onde já se encontravam todos os hóspedes com excepção do Engenheiro Silveira.

O Coronel Azevedo, pálido e cheio de suores frios, contorcia-se com dores. O Dr. Luís, sentado na cama, já diagnosticara uma violenta cólica em determinado sítio, e solicitara um comprimido de qualquer anestésico, para tentar eliminar a dor. O Veloza correra ao quarto em busca do remédio e, lesto, apresentou-se de novo com um tubo de comprimidos em punho e um copo de água. O Dr. Luís preparava-se para lhe ministrar um comprimido e chegava-o à boca do paciente juntamente com água, mas o coronel negava-se a ingerir a droga e agitando-se convulsivamente no leito e aos gritos, tentava pôr-se em posição decúbito dorsal, pedindo com insistência que lhe aplicassem o comprimido directamente, pois só assim lhe faria bem.

Ficámos todos admirados, até o médico, que cedendo aos gritos do coronel, que mais eram vozes de comando, pousou obedientemente o copo de água na mesinha de cabeceira e preparou-se para lhe aplicar os comprimidos directamente no sítio dolorido.

Saímos todos do quarto, menos o médico é claro, e aguardámos, no corredor ansiosamente, o resultado da terapêutica. Os gemidos do coronel deixaram de se ouvir e passado pouco tempo saiu também o Dr. Luís, radiante, que informou a assistência de que após a aplicação seguida de três comprimidos a dor cessara por completo.

Era tardíssimo. Fomos dormitar um pouco até o amanhecer. E ao pequeno almoço desse dia o Dr. Luís, esfusiante, declarou aos circunstantes que encontrara o assunto para a sua comunicação ao “Círculo Médico-Cirúrgico” que se intitulava assim: “Um caso de eliminação total da proctalgia pela aplicação objectiva de comprimidos de Dimetilamina-fenildimetil-pirazolona-dietilmalonilúria”.

A comunicação causou um sucesso extraordinário.

O Dr. Luís foi muito felicitado e viu-se forçado a repetir a conferência em várias assembleias e numerosos centros de investigação científica do estrangeiro pediam-lhe insistentemente esclarecimentos sobre a técnica exacta da terapêutica para tal acidente.

Não obstante as melhoras do coronel, Mrs. Durling, que considerou aquela cólica inoportuna e provocadora de um escândalo, entendeu que ele estaria melhor numa casa de saúde. E, com efeito, passados poucos dias, o coronel despediu-se de todos e saiu da pensão.

Depois do coronel sair, Mrs. Durling reuniu a criadagem e deu instruções: O coronel deixara de ser seu hóspede; para o seu quarto mais amplo e mais cómodo passava o Engenheiro Silveira. E como este sofria também de lumbago e reumatismo, por vezes talvez precisasse dos seus cuidados de enfermagem. Portanto, se algum dia a vissem entrar ou sair do quarto do Engenheiro, não deviam estranhar e ficavam prevenidas desde já de que era expressamente proibido murmurar sobre o assunto sob pena de irem “para o olho da rua”.

Quando a criada dos quartos, em grande confidência, me contou isto, não quis acreditar que a fleugmática e correcta Mrs. Durling tivesse proferido semelhante plebeísmo. Mas a criadita garantiu-me e jurou-me pela alma de seus antepassados que ela dissera mesmo assim: “olho da rua!”. Ao jantar desse dia, apesar de nada ter alterado no ambiente, pelo menos de forma visível, notei que o Engenheiro Silveira, com uma expressão optimista que nunca lhe vira, intencionalmente, mas muito bem disfarçado, tratava a dona da casa por “Mrs. Darling” em vez de “Mrs. Durling”, pronunciando, como ela fazia questão a vogal fechada.

A casa de banho da Pensão de Mrs. Durling, era uma casa de banho vulgar, mas bem apetrechada. Somente a aparelhagem eléctrica para a água quente não funcionava bem com certa frequência. Além dos móveis, aparelhos, instrumentos e utensílios próprios de tal divisão fundamental, havia na parede um vulgar bloco de folhas de papel, suspenso engenhosamente por um cordel ligado a um lápis que ficava dependurado, de forma que quando se pegava no lápis e o puxávamos para nós, o bloco subia e ficava à altura conveniente para nele se escrever. No alto da primeira página do bloco está sempre escrito isto: “Rogo aos meus queridos hóspedes que anotem aqui os seus banhos”. Era um processo na verdade prático, correcto e confidente para a dona da pensão tomar nota dos banhos tomados por cada hóspede e passar a respectiva conta no fim do mês.

Já me tinha constado que o poeta Veloza aproveitava frequentemente aquele bloco e respectivo lápis para escrever os seus melhores versos, pois, creio que ainda não o disse, era justamente quando estava na casa de banho que lhe chegavam os momentos de maior inspiração.

No entanto, nunca notara nada escrito no bloco, quando, muito honestamente, assentava nele os meus banhos.

Mas certa manhã, precisamente num dia em que a água quente não funcionava e o duche foi assim uma coisa um tanto desagradável, nem quente nem frio, ou um pouco quente alternado com um muito frio, quando ia fazer o risquinho do banho, notei que lá estava escrito, pela letra do Veloza, este primor:

Eu abri da água quente
A respectiva torneira.
Vinha fria, de maneira
Que a dita torneira mente!
E para minha arrelia
Tomei duche de água fria!

Achei graça e passei todos os dias a olhar com mais atenção para o precioso bloco, onde figuravam os nomes dos hóspedes e risquinhos adiante, pelos quais se poderia saber o grau de higiene de cada um.

O facto passou despercebido ao ilustre poeta conterrâneo dos meus leitores e uma bela manhã, mal entrei na casa de banho, mirei o valioso bloco, como de costume, à espera de encontrar outra joiazinha. E, com efeito, deparei com esta:

Ó Luís licenciado,
Segundo está registado
Tu és o mais asseado
E o mais javardo sou eu!

E na verdade assim era, conforme testemunhava o bloco estatístico, autêntico índice do asseio dos hóspedes da pensão.

Mas, de repente, senti qualquer coisa de estranho em mim. Não estava virado para o espelho, mas tenho a certeza de que as minhas feições se alteraram profundamente.

Devia ter ficado extremamente pálido, com olheiras, os cabelos deviam ter crescido instantaneamente em grande e revolta guedelha a cobrir-me por completo a nuca, as mãos emagreceram, as unhas perderam o brilho. Enfim, devia ter ficado com um aspecto de um autêntico poeta. E animado, não sei por que forças, peguei no lápis e a minha mão, que não eu, escreveu no bloco os seguintes versos, à laia de comentário aos que estavam escritos:

Ó Poeta de eleição,
Ó vate de que tamanho
Que Camões num canto mete,
Quando tens inspiração?
Quando despes o roupão,
Quando te enfias no banho
Ou quando estás na retrete?

Caí em mim e voltei à normalidade. Não fui eu, com certeza, o autor daquela poesia que se não poderá classificar de muito bom gosto. Na minha vida nunca rimei duas palavras, a não ser por acaso na minha prosa rude e bárbara.

Fiquei sempre com a impressão de que o espírito de algum Poeta de eleição, daqueles que tanto viveram, tanto amaram e tanto cantaram Coimbra, pairava por ali e pegara na minha mão para traçar aquela ironia.

A minha estadia em Coimbra estava a terminar, infelizmente, e passados poucos dias retirei-me.

Mas estou ainda hoje firmemente convencido de que se fosse hóspede durante mais alguns meses da Pensão de Mrs. Durling e continuasse a frequentar aquela casa de banho, acabaria por ganhar, de certeza, o prémio de Poesia da Academia Nacional de Literatura.


Cícero Galvão
Dezembro de 1952

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