Os contos e crónicas recolhidos neste blog foram todos publicados no jornal “Re-nhau-nhau”, trimensário humorístico do Funchal, nos números do seu aniversário, coincidente com a época do Natal. Recolheram-se 36 contos e crónicas publicados no jornal nas edições dos meses de Dezembro dos anos de 1946 a 1977.

Partida para o Funchal em 1946

A MANIA DAS ANTIGUIDADES

O gosto de coleccionar foi de todos os tempos, mas nunca como agora se tornou uma quase epidemia. Sem já falar nos clássicos coleccionadores de selos, há coleccionadores de tudo: desde as mais humildes caixas de fósforos e tampinhas metálicas de refrigerantes até às mais belas peças de cerâmica e aos mais ricos artefactos de prata. Há os que coleccionam cachimbos, bengalas, relógios de bolso de todos os feitios (quadrados, bicudos, redondos), com despertador e sem despertador, os que marcam as horas dos vários fusos horários, os que têm uma chavinha especial para se dar corda, os que têm tampa com lindas gravuras – paisagens, flores, figuras históricas e políticas, etc., etc., etc. ...

Um amigo meu, chamado Pacheco, coleccionava pequenas coisas que tinham pertencido ou tinham sido usadas por pessoas célebres. Se num banquete ficava ao lado de uma sumidade política, literária, artística ou científica, aguardava uma oportunidade no decorrer do repasto para, subrepticiamente, furtar uma ponta de cigarro, um bocadinho de pão mordiscado, um palito usado, uma bolinha de pão que essa alta personalidade tinha formado entre os dedos enquanto discorria sobre os mais transcendentes problemas (entre o prato de peixe e o prato de carne, ou entre o loiro Aveleda e o vermelho Dão), uma fina espinha de robalo que qualquer primeira dama retirara delicadamente dos dentes com seus dedos esguios e pousara na beira do prato com cuidado, ou a ementa com um autógrafo sumido e alguns pingos de vinho desvanecidos e umas nódoas de gordura de molho branco.

No entanto, a mais valiosa colecção de Pacheco era de bocadinhos de pão mordidos por grandes personalidades, pois o pão endurecido tem um poder de conservação extraordinário. Num museu de Nova Iorque existe um pedaço de pão que é considerado o mais antigo do Mundo. Foi encontrado no túmulo de uma mulher egípcia que viveu 1.500 anos antes de Cristo!

Quando chegava a casa, depois de ter conseguido qualquer das recordações acima referidas, o meu amigo Pacheco preparava a peça com esmeros de conservador de museu - com uma agulha fina, enfiada num lustroso fio de seda, passava um fiozinho pela ponta de um cigarro, pelo pedacinho de pão ou pela bolinha de miolo, ou atava o palito ou a espinha de robalo, e colocava-lhes uma etiqueta identificadora que mais ou menos dizia assim: “Ponta de cigarro que fumou o Ministro A... no jantar realizado em tal parte, em tal data...”. Ou então: “Pedacinho de pão mordido pela compositora B... no jantar...”. Ou ainda: “Bolinha de miolo de pão enrolada entre os dedos pelo escritor C... durante o almoço...”. Ou mais: “Palito de madeira de choupo com um pedacinho de carne na ponta, com que o ilustre poeta D... palitou os dentes na recepção...”. Seguia-se a nota na espinha de robalo que a cantora E... tinha tirado dos dentes quando se realizou o pic-nic... Depois preparava a ementa suja de vinho e de gordura, com um autógrafo ou um boneco infantil do pintor abstracto F...

E era um nunca acabar de recordações de pessoas célebres, por vezes de renome mundial.Um dia fui jantar a casa de Pacheco com outros convidados, amigos comuns.No fim do jantar fomos ver o museu. Em várias vitrines amontoavam-se as recordações pessoais acumuladas em anos e anos de convívio.

Eram pontas de cigarros e de charutos, eram bocados de pão em grandes quantidades, eram palitos, espinhas, ossos de galinha e de perú, ementas impressas com autógrafos, que sei eu?, um lixo medonho que o anfitrião nos mostrava, embevecido com a sua colecção, evocando efemérides muito gratas ao seu espírito. Nós observávamos circunspectos, mas um tanto enojados de todos aqueles restos. Quando terminou a visita ao museu, que tinha sido uma evocação de altas personalidades e de factos mais ou menos graciosos ocorridos em ocasiões festivas, um dos convidados, o Freitas, também amigo de infância, de temperamento alegre e folião, piscou-me o olho e disse-me a meia voz: Vamos fazer-lhe uma partida! E apanhando uma vitrine aberta, arrebanhou uma mão cheia daquela tralha e foi à cozinha pô-la no caixote do lixo, com a conivência da mulher do dono da casa que detestava aquelas velharias. O Pacheco não deu por isso e quando, mais tarde, nos despedimos, gabámos muito a sua colecção e a sua extraordinária paciência...

Dias depois, estando o grupo à porta da Bertrand, no Chiado, encontrámos a mulher do Pacheco que descia, numa volta de compras.

- Então, minha senhora, o seu marido já deu pela falta daquelas peças da sua colecção que foram para o lixo? – perguntou o Freitas, o autor da proeza.

- Ora deixe-me cá – respondeu a senhora. – Logo que os senhores saíram, ele deu pela graça, foi direito ao recipiente do lixo e ainda foi pior: além de recolher novamente todas as peças que os senhores deitaram fora, ainda aproveitou outros restos e levou até altas horas da noite a prepará-los e catalogá-los muito contente porque foram enriquecer-lhe a colecção.

É assim o espírito do coleccionador, não há nada a fazer...

A Dona Luísa era funcionária do Estado e vivia sozinha modestamente, como permitia o seu modesto vencimento. Os acasos da vida tinham-na deixado só neste Mundo. Não se casara e restava-lhe uma amiga íntima, muito rica e também solteira, que visitava amiúde e a quem fazia companhia. Dona Luísa tivera uma educação esmerada. A família tinha boas relações e desde nova que frequentava boas casas, recheadas de móveis de bom estilo, de obras de arte e de peças raras que lhe despertaram o gosto pelas coisas belas e pelas antiguidades. A sua amiga rica e também solteira, a Dona Palmira, era uma antiga colega do colégio, uma amiga de infância, que sempre vivera abastadamente. Quando ambas perderam os pais ficaram a viver, a D. Palmira, com uma velha governanta e uma criada, e a D. Luísa praticamente sozinha, porque os seus fracos recursos não lhe permitiam manter pessoal, e passaram a dar-se mais, fazendo companhia uma à outra, tornando-se amigas inseparáveis.

D. Palmira tinha uma casa rica mas sem gosto e, pouco a pouco, a sua amiga Luísa foi-lhe renovando o mobiliário e convenceu-a a decorar a casa, ajudando-a a escolher os belos móveis que a breve trecho passaram a rechear a sua bela casa. Foi assim que em pouco tempo a casa de D. Palmira se transformou num rico museu, com peças de mobília antiga, bem escolhidas e autênticas, belos quadros e esculturas dos melhores artistas, e faianças e porcelanas de real valor.

Não querendo viajar sozinha, D. Palmira convidava sempre para as suas excursões anuais ao estrangeiro a sua velha amiga Luísa que com ela escolhia nos antiquários de Madrid, de Paris, de Londres, de Amsterdão, de Viena, de Veneza, de Florença, de Roma, ano após ano, as peças mais raras, os mais maravilhosos quadros, os cristais mais finos, enfim as obras de arte mais requintadas. De Portobello Road de Londres, à Via Nazionale de Roma, passando pela Mariahilfer Straße de Viena, a Lista di Spagna de Veneza e as lojas do Ponte Vecchio de Florença, sobre o Arno, onde Dante suspirou há setecentos anos, a D. Luísa comprou para a sua amiga com o seu gosto e a sua cultura as maiores preciosidades artísticas que podem encher uma casa para deleite dos donos e das suas visitas. E se não trouxe “O Rapto das Sabinas” da Loggia della Signoria, de Florença, e o imponente Neptuno da Fontana di Trevi, de Roma, foi porque o Governo italiano não os vende por preço nenhum.

Pois era num ambiente assim requintado que D. Palmira recebia frequentemente os seus amigos em serões magníficos e inesquecíveis a que compareciam, acompanhados das mulheres, diplomatas, poetas, músicos, pintores e outros artistas, e para os quais também era convidada a D. Luísa que ajudava a anfitriã a fazer as honras da casa.

Eram frequentadores certos destes serões o comendador Azevedo, também conhecido pelo Azevedo das posses, pois tinha por hábito comparecer às posses de altos funcionários do Estado, ou de Presidentes dos Conselhos de Administração das grandes empresas, o embaixador Hernandez, de uma República da América Central, o poeta Adrião, sócio correspondente da Academia de Letras, o escritor Correia, laureado com um prémio internacional, o compositor Graciano, também regente de orquestra de renome mundial, e tantas outras figuras da melhor élite portuguesa.

O embaixador Hernandez, com o seu sangue castelhano nas veias, animava sempre de uma maneira extraordinária aquelas recepções. Falava, falava, contava histórias picarescas da sua carreira diplomática, fazia comentários e observações que prendiam a atenção durante horas a fio dos circunstantes. Uma noite foi apenas ele quem falou, contando as suas peripécias quando foi embaixador em determinado reino árabe. Entre outros pormenores, como o regulamento do harém real e as negociações para a exploração dos jazigos petrolíferos, contou que o impressionara especialmente uma recepção que o sultão oferecera na qual os convidados, sentados no chão em volta de magníficas iguarias, se serviam com as mãos, causando-lhe certa impressão o hábito dos convivas árabes, de pés nus, pois para se sentarem nas almofadas tinham tirado as babuchas, de se entreterem a escarafunchar os dedos dos pés com os dedos das mãos! E de vez em quando lá iam com aqueles mesmos dedos que coçavam o pé de atleta entre o dedo polegar e o dedo maior de um dos pés, arrancar uma lasca à perna de carneiro assado que, juntamente com outros manjares, estava servida numa mesa baixinha.

Os convidados de D. Palmira ouviam enjoados a descrição deste banquete e, como já era tarde, o maestro Graciano que era dotado de certo espírito e tinha o estômago fraco disse que se retirava “já iam sendo horas e no dia seguinte era dia de trabalho”. Ao despedir-se do embaixador declarou-lhe que havia gostado muito daquele serão, felicitando-o porque ele havia feito naquela noite “toda a despesa da conversa”. O embaixador não gostou muito da graça e quando o maestro deixou a sala, ainda a matutar na frase, perguntou: Mas o que queria dizer este jovem músico com aquela de que eu tinha feito toda a despesa da conversa?

Explicou-lhe o poeta Adrião que era um simples modo de dizer, sem qualquer intenção especial, quando uma pessoa pela sua verve era escutada numa reunião atentamente pelos outros convidados. Era até uma espécie de cumprimento atencioso. O embaixador Hernandez, muito diplomaticamente aceitou a explicação e passou adiante contando agora as suas dificuldades quando teve de negociar um tratado de navegação entre o seu País e um novo Estado do interior africano.

Entretanto chegara o Azevedo, o Posses, muito apressado e a pedir desculpa do atraso, mas é que jantara tardíssimo – tinha ido à posse do Presidente do Conselho de Administração da “Sociedade de Fomento do Nordeste” e aquilo tinha dado para muito tarde. Discursos e mais discursos! E logo à hora de jantar! Estava já tudo cheio de fome.

O comendador Azevedo era um “habitué” das posses solenes. Era um meio de arranjar conhecimentos para depois exercer a sua influência, aliás sempre desinteressada. A maior parte das vezes não conhecia o empossado. Mas na altura dos cumprimentos punha-se na bicha, apresentava-se, e fazia um grave discurso “– Comendador Azevedo. Tenho muita honra em cumprimentar V.Exª. Desejo do coração a V.Exª as maiores prosperidades no cargo para que tão merecidamente foi designado”. Baixava a cabeça solenemente e retirava-se com a maior gravidade. Ficava logo com mais um conhecimento e se mais tarde lhe faziam um pedido cuja satisfação dependia de tal personalidade – lá solicitava ele uma audiência e punha a questão com todo o interesse e toda a solicitude. Mas tudo isto só pelo prazer de ser útil, sem qualquer interesse, pois era senhor de sólida fortuna, grangeada nos bons tempos do Brasil, onde conseguira também o título de comendador de que tanto se orgulhava. Pois naquele dia chegara tarde justamente por causa de uma posse. E fingia-se agastado: “Uma tremenda maçada! Discursos e mais discursos! E depois uma pessoa não pode faltar: Noblesse oblige! Velhos conhecimentos, parecia mal não comparecer, depois ficavam ofendidos... Que a sessão só valeu pelo discurso do empossado. Na verdade, um magnífico discurso! Só o programa exposto para o desenvolvimento do Nordeste deve provocar uma apreciável alta das acções. Boa posse, boa posse!” Era o estribilho dele, pois considerava todas as posses como “boas posses”. Mas naquele dia fingia-se um tanto aborrecido pela hora tardia em que se deu a posse, o que lhe atrasou o jantar e o fez chegar tarde ao serão de D. Palmira. E opinava ele: – Esta cerimónia das posses devia ser acompanhada com uma espécie de cocktail. Depois do acto deviam servir uns whyskies, um Madeira, um Porto, ou mesmo Champagne, umas sanduíchezinhas, uns canapés variados, umas salsichinhas quentes, umas linguiças assadas e outras iguarias e assim, de copo na mão, naquela fase final dos cumprimentos ou nas conversas com as pessoas que só se vêem nestas ocasiões, a coisa tornava-se muito mais agradável... Enfim, talvez ainda ninguém se tivesse lembrado disso. Quem sabe, às vezes era só um começar...

Entretanto, e a propósito da referência do comendador Azevedo aos comes e bebes, D. Palmira e D. Luísa disseram que o chá estava servido. O poeta Adrião, que se preparava para recitar o seu último poema ainda inédito, declarou que recitaria depois do chá, o que faria certamente com mais inspiração... Porque chá, era assim como quem dizia, pois as iguarias eram sempre boas, abundantes e variadas e propriamente chá só tomavam as senhoras porque os homens dispunham de uma garrafeira ricamente abastecida, à qual faziam sempre as melhores honras.

Passavam-se assim aqueles serões agradáveis, quase no estilo do final do século passado, num ambiente requintado de bom gosto, onde umas vezes recitava um poeta, outras se ouvia o som melodioso de um piano e uma voz feminina a cantar uma doce melodia, quase sempre se discernindo com graça e sem má língua sobre os acontecimentos do Mundo.

Mas um dia interromperam-se as reuniões. D. Palmira adoecera com certa gravidade. D. Luísa foi incansável em atenções e desvelos para com a sua amiga. Tornou-se uma enfermeira dedicadíssima. Os amigos interessavam-se dia a dia do estado de saúde da respeitável senhora. Também apareceram uns parentes afastados, mas estes interesseiros como todos os parentes afastados, que interrogavam a D. Luísa sobre o que ela tinha e o que ela não tinha, mirando cubiçosamente todo o precioso recheio daquela rica casa que eles avaliavam já em milhares e milhares de contos...

E o mau momento que os amigos verdadeiros receavam e que os interesseiros parentes ansiavam chegou finalmente. D. Palmira exalou o seu último suspiro nos braços da sua querida amiga de infância, a serena e culta D. Luísa que tinha sido toda a sua vida uma espécie de conselheira de cultura e bom gosto daquela tão abastada senhora.

D. Palmira deixou testamento. Mas neste seu gesto não tinha intervindo D. Luísa. Quando uma vez, muitos anos atrás, D. Palmira lhe falara nisso, recusara-se a dar qualquer conselho e sugeriu que tratasse de tudo com o procurador, o Saavedra, homem sério e com experiência da vida, e que por certo lhe daria a melhor orientação para o caso. Assim procedeu D. Palmira e D. Luísa nem sabia ao certo se ela chegara a fazer testamento. Mas na verdade tinha-o feito e, quando do falecimento, o Saavedra apressou-se a participar o facto à família, informando que ele próprio tinha sido nomeado testamenteiro.

Aberto o testamento numa reunião que o Saavedra tinha convocado com toda a solenidade, verificou-se que a D. Palmira tinha contemplado com legados o pessoal da casa, os amigos mais íntimos e parentes, deixando bens de raiz a instituições de caridade que já protegia em vida. À sua amiga D. Luísa deixou todo o recheio da sua casa de Lisboa, “como prova de gratidão pela dedicação de uma vida inteira desta sua amiga que tanto amava as suas colecções de arte que ela própria ajudara a reunir com superior bom gosto e competência”, como rezava o testamento.

Fez uma extraordinária sensação esta decisão de D. Palmira. De toda a sua enorme fortuna, não havia dúvidas que a maior parcela era constituída pelo recheio da sua casa. Valia muitos milhares de contos e a modesta D. Luísa estava rica, riquíssima. Se se fizesse um leilão de todas aquelas preciosidades, realizar-se-ia uma avultada fortuna cujo rendimento permitiria uma vida desafogadíssima à feliz legatária. Por isso, foi com surpresa geral que D. Luísa declarou que nada se venderia, que era um crime desfazerem-se colecções e conjuntos que levaram tantos anos a reunir. Antevendo todos os sacrifícios decidira conservar tudo intacto, como deixara a sua proprietária, pois estava certa que a sua amiga teria grande desgosto se visse todo o seu trabalho desfeito. Não se considerava mais do que uma fiel depositária daquele importante legado, pois só nestas condições poderia entender a generosidade tão grande da sua amiga. A nobreza de carácter de D. Luísa foi ao ponto de fazer um lote de objectos de arte que não faziam parte de colecções ou de algumas colecções de menor valor, como uma colecção de bengalas e outra de chapéus de homem de variadíssimos modelos, que pôs à disposição de familiares e amigos para, à sua escolha, ficarem com uma recordação de D. Palmira. O procurador Saavedra tinha feito meticulosamente o inventário de todo o recheio e uma lista das peças que os amigos e familiares poderiam escolher. O comendador Azevedo, o poeta Adrião, o maestro Graciano, o embaixador Hernandez e outros amigos limitaram-se a levar pequenas lembranças, numa homenagem que era simultâneamente à memória de D. Palmira e à delicadeza de sentimentos de D. Luísa. Mas os familiares, esses, atiraram-se como aves de rapina, destroçando as colecções de bengalas e de chapéus, discutindo o valor de cada peça, fazendo pressão sobre o procurador e sobre a D. Luísa para que certas peças que não estavam na lista fossem nela incluídas para seu benefício. Entre a parentela apareceram primos em vários graus e em tão elevado número que os amigos não faziam idéia que D. Palmira tivesse família tão numerosa...

Feita por fim a distribuição das recordações, que por vezes decorreu quase tumultuosamente, vendo-se o procurador em embaraços para manter a ordem e a disciplina entre familiares tão gananciosos, lá se foram embora os interessados, que melhor ficaria chamar-lhes interesseiros...

Ficaram no fim daquela tarde triste o procurador, a D. Luísa, o comendador Azevedo, lamentando no seu íntimo todas aquelas cenas de rapinagem. O procurador foi o primeiro a despedir-se e quando ia a retirar-se deu por falta do seu chapéu de coco. No bengaleiro estavam só os chapéus moles das outras visitas, e o procurador já não se lembrava onde tinha posto o seu. Tinha uma vaga ideia de o ter colocado em cima de uma mesinha de abas, na sala, mas não estava lá.

Perto, em cima de outra mesa larga, tinha estado a colecção de chapéus que tinha sido distribuída. Chegaram à conclusão que os parentes de D. Palmira, na voragem, tinha levado também o chapéu do procurador, confundindo-o com uma relíquia da moda masculina do século passado...

D. Luísa passou a viver para a sua colecção de arte, uma valiosa fortuna em potência mas que nada lhe rendia. A sua amiga D. Palmira tinha tido o cuidado de deixar em dinheiro, ao procurador, a importância necessária para não ter encargos com os elevados direitos de transmissão. Apesar de muito rica, não vivia em casa própria. A sua excelente casa era arrendada, uma renda antiga que D. Luísa com a ajuda do procurador teve de negociar com o senhorio, fazendo um novo contrato, que apesar de toda a boa vontade teve um apreciável aumento. O seu modesto vencimento de funcionária pública mal chegava para pagar a renda e D. Luísa passou a fazer todos os sacrifícios para conservar dignamente toda aquela enorme riqueza improdutiva. Para poupar uma renda, mudou-se para a casa da amiga, agora legitimamente sua. Os amigos admiravam a sua dedicação mas, apesar disso, mesmo os menos materialistas não compreendiam o sacrifício enorme que a D. Luísa fazia, num viver modestíssimo para não se desfazer de tantas obras de arte que estimava como se fossem entes queridos. As dificuldades foram-se avolumando, e D. Luísa, para manter a casa, passou a desfazer-se de pequenas peças de mobília ou decorativas, peças de porcelana antiga, coisas de que à primeira vista não se notava a falta, que às escondidas vendia a antiquários e cujo produto lhe dava para se aguentar mais uns meses. Mas, a breve trecho, estava endividada, pois os encargos com a renda da casa e a sua própria manutenção não eram compatíveis com o seu magro vencimento. Vieram despesas inesperadas, doenças, e era uma tristeza saber da vida daquela senhora, rodeada de uma enorme fortuna constituída por mobílias ricas, quadros valiosíssimos e obras de arte de toda a espécie e, paradoxalmente, a viver quase na miséria. O sacrifício durava há uns anos, quando o comendador Azevedo e o procurador Saavedra a convenceram a fazer leilão de todo aquele património. Todos reconheciam o seu espírito excepcional de sacrifício, mas não estava certo passar a senhora enormes privações por amor de objectos que não podia manter. De resto, postas em leilão, aquelas preciosidades seriam adquiridas por outros coleccionadores, pessoas de bom gosto e saber e, embora dispersas, continuariam a ser estimadas e a valorizar outras colecções.

D. Luísa condescendeu, reconhecendo que era inútil continuar aquela existência inglória, pois as necessidades já a haviam obrigado a desfazer-se lentamente de algumas preciosidades, resolvendo vender tudo e desistindo, de uma vez para sempre, do seu gosto pelas antiguidades. Encarregou o procurador de tratar com uma agência de leilões a realização da hasta pública.

Chegado o dia da almoeda, tão tristemente esperado pela D. Luísa, uma multidão de entendidos e curiosos invadiu a casa, percorrendo todas as dependências para observar aquelas maravilhas, cuidadosamente catalogadas numa luxuosa publicação que a agência se esmerara em preparar e que o público entendido consultava com o maior interesse.

O leilão fez-se na sala, onde cada peça era posta em praça por um pregoeiro de voz clara, tendo diante de si uma pequena tribuna portátil em cujo tampo batia umas pequenas marteladas para chamar a atenção do público e no final dava três pancadas fortes para anunciar a arrematação.

Era auxiliado por um empregado que mostrava as peças a leiloar, enquanto o pregoeiro fazia trocadilhos com o nome das peças para dispor bem a assistência. A D. Luísa, o procurador Saavedra e o comendador Azevedo, que a acompanhavam naquela hora dolorosa só comparável ao momento em que falecera D. Palmira, tinham-se refugiado numa pequena sala onde havia reunido algumas peças de mobília de maior estimação que D. Luísa decidiu não vender para ficar com algumas recordações.

O pregoeiro pôs em praça em primeiro lugar um armário Boulle, do século XVII, de fabrico francês, com lindos embutidos dourados. E o pregoeiro explicava: - Este móvel foi feito nas próprias oficinas de André-Charles Boulle, marceneiro real de Luís XIV, que trabalhava no próprio Louvre! O móvel atingiu um preço exorbitante e foi arrematado por um coleccionador entendido. Mas em cima do móvel estavam algumas peças de porcelana que se seguiram na almoeda.

Gritava o leiloeiro: - Agora temos aqui uma saboneteira autêntica de Sèvres que pertenceu a Madamme Pompadour! E esclarecia: - Tem certificado! O ajudante pegava na pequena peça e exibia-a por cima da cabeça, mostrando-a ao público interessado. Nisto notou qualquer coisa na saboneteira e chamou a atenção para o pregoeiro – é que a peça tinha um pequeno cabelo, o que a desvalorizava um pouco (aos leitores menos versados em matéria de antiguidades esclareço que os especialistas chamam cabelo a uns riscos que por vezes aparecem nas peças de cerâmica e que, na verdade, se assemelham a cabelos).

O pregoeiro então esclarecia: - A saboneteira tem um pequeno cabelo! Mas o último licitante manteve o lance. O leiloeiro fez graça: - Ah, meus senhores, se este pequeno cabelo da saboneteira fosse autêntico e da própria Madamme Pompadour, não havia aqui dinheiro que o comprasse! Mas o ajudante rectificava: Afinal o pequeno cabelo era mesmo cabelo e já tinha caído. E o pregoeiro acompanhava os sucessivos lances que eram dados quase imperceptivelmente por meio de olhares, pequenos sinais com os dedos, por ligeiros acenos de cabeça. Entusiasmado, o dirigente da almoeda prosseguia: - Vejam, meus senhores, que é uma peça autêntica da Manufactura Nacional de Sèvres, das primeiras fabricadas, e esta especialmente para Madamme Pompadour, como reza o atestado! Esta grande dama francesa protegeu especialmente esta fábrica e lançou a moda das porcelanas em França e em toda a Europa do seu tempo! Por isso lhe foi oferecida esta maravilhosa peça que tem pintadas lindas ninfas no banho. Consta tudo do certificado!

Dava gosto ter ido àquele leilão só para ouvir a erudição do pregoeiro!

Seguiu-se uma cafeteira de porcelana da Companhia das Índias com decoração a ouro, sépia e azul. O ajudante exibia a peça, erguendo-a bem alto para todos a verem e observou: - Tem cabelo, esta é que tem cabelo! Tem mesmo um grande cabelo! É de facto um grande cabelo, até se vê daqui! É quase um cabelo “à Beatles”. Aproveitem, meus senhores, esta oportunidade para adquirir esta riquíssima peça, por um valor insignificante! E a cafeteira atingiu um preço exorbitante, tal como se não tivesse cabelo nenhum.

Depois vieram outras peças impecáveis sem quaisquer defeitos ou cabelos: - Carecas, como jocosamente comentava o leiloeiro. Seguiu-se um prato oitavado de porcelana da China, com uma linda decoração policroma com flores e aves. Mas tinha uma pequena falha num bordo: – Uma boca!, como tecnicamente o leiloeiro classificava o pequeno defeito. E emendava: - É uma boquinha que até lhe dá graça! Se fosse grande chamava-lhe bocarra! Não tem importância nenhuma em relação à antiguidade da peça, licitem meus senhores!

E sucessivamente foram-se arrematando cerâmicas, móveis e quadros de bons autores que a D. Palmira e a D. Luísa pacientemente coleccionaram durante anos e anos.

Chegou a vez de destroçar todo um serviço de jantar para 24 pessoas de porcelana da Companhia das Índias que estava artisticamente exposto sobre a mesa da sala de jantar como se fosse para servir um lauto banquete. Tinha sido avaliado em trezentos e sessenta contos, que era a base de licitação. Mas ninguém se abalançava a licitar sequer a importância base. Alguns interessados sugeriram que se licitasse o lote peça a peça, o que até globalmente viria a render mais dinheiro. – Só com autorização da proprietária, declarou o leiloeiro que interrompeu a praça para consultar a D. Luísa. Esta, abatida como estava, sofreu enorme choque ante a expectativa de ver tresmalhadas aquelas centenas de peças que levara anos a juntar por todas as partes do Mundo. – Doutra maneira não se vende, observava o pregoeiro. O desgosto de D. Luísa era evidente, a sua hesitação era trágica mas, a conselho do comendador Azevedo e do procurador, autorizou a venda do serviço peça a peça. O pregoeiro voltou logo à sala a dar a boa nova aos interessados, e ao serviço foi um ar que lhe deu. Arrematado aos poucos, rendeu mais de quinhentos contos!

Então o procurador foi junto do pregoeiro e do escriturário que ia registando as vendas, para ver como iam as coisas. Já estavam realizados mais de cinco mil contos e ainda não se tinha vendido nada do que se parecesse com a terça parte do inventário!

Correu a dar a boa nova à D. Luísa que desde agora, sim, ficava riquíssima. Mas quando saía da sala, acabava de ser arrematada por uma fortuna uma estatueta do século XVII de mármore de Carrara, de Bernini. Encontrou D. Luísa pálida, enxugando as lágrimas ao seu lencinho de renda, amparada pelo comendador. Quis animá-la e sorridente deu-lhe a novidade: - Alegre-se minha senhora! Já se fizeram mais de cinco mil contos e acabou agora de se vender a estatueta de Bernini...

D. Luísa lembrava-se bem daquela estatueta. Tinha sido comprada por ela em Florença, vinte anos atrás. Fora ela que a identificara e convencera a D. Palmira a comprá-la por qualquer preço...

Num instante perpassou pela sua mente todos os trabalhos e canseiras de investigações e negociações para, embora com o dinheiro da sua amiga, reunir todas aquelas preciosidades. Não podia mais! Deu-lhe um afrontamento.

Levantou-se da cadeira onde tentava abater todos os seus desânimos e ficou de pé, muito hirta... O comendador, assustado, amparava-a carinhosamente. D. Luísa interrogou apenas: - Também a estatueta de Bernini?!... E, no meio de todas aquelas riquezas, caiu desamparada na poltrona, prostrada por um ataque cardíaco – o seu cansado coração não suportara o que era para os seus olhos o destroçar da sua obra de tantos e tantos anos...

Li esta história, em voz alta, à Mathilde, a minha velha ama, que é a mais severa crítica das modestas coisas que escrevinho. E agora aqui Mathilde com th em homenagem à maneira como ela escreve sempre o seu lindo nome de origem germânica.

Pois a Mathilde reagiu muito mal à conclusão da minha história...

- Não há direito, menino, morrer assim aquela pobre senhora, toda a vida sacrificada, que sofreu tanto com a venda daquelas riquezas todas, justamente numa altura em que ficava tão rica e podia viver muito sossegada e muito feliz os últimos anos da sua vida... Não há direito, menino, chega a ser uma grande injustiça!...

Pensando bem, a bondosa Mathilde tem razão. A D. Luísa merece um fim melhor.

Resolvi fazer a vontade à Mathilde... Volte o leitor mais acima, àquele período em que o procurador vai ter com a D. Luísa e lhe diz que o leilão já rendeu mais de cinco mil contos e se acabara de vender a estatueta de Bernini, e salte depois para o período que se segue...

D. Luísa sofreu um choque tremendo com a notícia, sobretudo com a venda daquela maravilhosa escultura e teve um ataque convulsivo de choro. O comendador continuava a ampará-la carinhosamente e, aos poucos, D. Luísa foi sossegando. Depois, numa resolução, disse ao procurador que acompanhasse o resto da transacção e quis sair daquela casa.

O comendador Azevedo, solícito como sempre, ofereceu-se para a ir levar à sua própria casa. Sua mulher acompanhá-la-ia com todos os desvelos.

Dias depois o procurador Saavedra fazia escrupulosamente as contas da almoeda. Pagas todas as despesas, impostos e taxas, o produto líquido rendera mais de dezoito mil contos! Aconselhava-a a comprar uns prédios de rendimento e uns papéis de crédito da maior segurança. D. Luísa deu-lhe carta branca para ele tratar de tudo como quisesse e uma boa gratificação para comprar um chapéu de coco em substituição daquele que os herdeiros levaram, episódio que ficou conhecido entre os amigos pelo caso do chapéu do procurador.

D. Luísa reformou-se do seu lugar e ficou com rendimentos superiores a cem contos por mês, graças à boa administração do bom e leal Saavedra. Quis ficar a morar na mesma casa que já tinha sido da sua amiga. O procurador conseguiu mesmo comprar o prédio para ela.

Mas agora a casa estava nua. Apenas uma salinha, o último reduto de D. Luísa, conservava algumas pequenas peças de maior estimação.

E D. Luísa, sem dar por isso, sem reparar que se contradizia no seu propósito de não se interessar mais por antiguidades, como tinha de mobilar de novo aqueles salões, recomeçou com todo o seu gosto e toda a sua paciência a recheá-los com outras preciosidades que pouco a pouco foi comprando nos melhores antiquários do País e de todo o Mundo, aplicando desta maneira os seus elevados rendimentos...

É assim o espírito do coleccionador, não há nada a fazer...


Cícero Galvão
Dezembro de 1965

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